Adoção - O Caminhar pela
Cidadania: O Juiz Sujeito e o Sujeito Juiz
Somente graças aos sem esperanças é que nos é dada a esperança. W Benjamim
O presente texto busca resgatar (de forma panorâmica, é verdade) a
proposta de humanização das práticas judiciais, especificamente nos processos
de adoção, com a invocação do subjetivismo tão relegado pelo normativismo
prevalente. Para tanto, partindo do contexto da complexidade contemporânea
(Morin, Warat), da superação das práticas próprias da "modernidade"
enclausurada (sujeito solipsista), pretendo propor - com Warat2 -
um (dos) caminho(s) para que efetivamente se respeite o sujeito que se esconde
por detrás do estereótipo autor/réu, requerente/requerido, adotando/adotado
destacando a importância dos verdadeiros sujeitos do mundo da vida: as partes
envolvidas. E o papel desempenhado por nós - juízes, promotores, advogados,
assistentes sociais, psícologas, pedagogas, dentro outros profissionais - na
busca de salvação das crianças e, ouso dizer, da nossa própria!
Correndo os riscos próprios de não ser entendido e mesmo que
muitos tenham isso como uma provocação não posso deixar de dizer que percebo -
talvez equivocadamente - que muitos dos metidos nos processos de adoção buscam
a redenção: o exorcismo e seus fantasmas, incapacidades e frustrações pessoais.
Mesmo com a alteração do paradigma de abordagem da criança e do
adolescente, da situação irregular para o da proteção integral, ainda assim
este último é desconsiderado na prática forense, posto que adotantes e adotados
continuam sendo vistos - com honrosas exceções, claro - como objetos nas mãos
dos titulares da sabedoria do bom viver. Estes titulares, abrangidos/protegidos
em cargos públicos acabam fazendo valer, diante do espaço de
discricionariedade, vagueza e ambigüidade "do melhor interesse da
criança", as suas próprias/pessoais compreensões, dissociadas do contexto
constitucional da proteção integral: acaba prevalecendo a imposição da
"bondade dos que detém o poder, mais do que legitimamente poderia se
esperar.
Como bem destaca Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: "O
enunciado da 'bondade da escolha' provoca arrepios em qualquer operador do
direito que freqüenta o foro e convive com as decisões. Afinal, com uma base de
sustentação tão débil, é sintomático prevalecer a 'bondade' do órgão julgador.
O problema é saber, simplesmente, qual é o critério, ou seja, o que é a
'bondade' para ele. Um nazista tinha por decisão boa ordenar a morte de
inocentes; e neste diapasão os exemplos multiplicam-se. "Em um lugar tão
vago, por outro lado, aparecem facilmente os conhecidos 'justiceiros', sempre
lotados de 'bondade', em geral querendo o 'bem' dos condenados e, antes, o da
sociedade. Em realidade, há aí puro narcisismo; gente lutando contra seus
próprios fantasmas. Nada garante, então, que a 'sua bondade' responde à
exigência de legitimidade que deve fluir do interesse da maioria. Nesse
momento, por elementar, é possível indagar, também aqui, dependendo da
hipótese, 'quem nos salva da bondade dos bons?', na feliz conclusão, algures,
de Agostinho Ramalho Marques Neto. . (...) "Ora, a posição dos
'justiceiros' (abrigados discursivamente no malfadado Movimento da Lei e Ordem)
é semelhante àquela das mães esquizofrenógenas, 'que se colocam como 'Tudo' e
como 'Toda' para a criança, não havendo nenhuma Lei fora delas... (...) Ela
será a Lei para a criança e é quem dirá à criança o que é bom para ela. É ela
que dirá o que falta à criança e sempre terá o que lhe falta.' (LEITE, Marcio
Peter de Souza. A negação da falta: 5 seminários sobre Lacan para analistas
kleinianos, Rio de Janeiro : Relume-Dumará, 1992, p. 73). Para uma mãe assim é
preciso, mesmo, salvar a criança de sua bondade; daquela de certos juízes,
também!."
Da bondade de alguns profissionais com poder na escolha da adoção,
definitivamente, também precisamos salvar tanto adotantes quanto adotados.
Todos são - e o óbvio é preciso ser dito muitas vezes - crianças e adolescentes
pessoas com direito de escolher o que é melhor para si dentro de suas
limitações de desenvolvimento; o que não podem é continuar sendo tratadas como
mero objetos.
A Modernidade com seus discursos totalitários e de racionalidade
extremada fez com que se perdesse as referências sociais, com a paulatina
ausência de sentido e certeza das práticas judiciais. A doce ilusão da
aplicação da regra geral ao fato específico - raciocínio meramente dedutivo - é
incapaz de dar conta do intricando mundo em que vivemos. É preciso mais. É
preciso o engajamento social dos protagonistas do processo. Sem isso o processo
permanecerá sendo uma forma (ir)racional de, relegando os sujeitos, procurar
obsessivamente a imposição (ilegítima e contraditória) da paz social; uma paz
social que muitas vezes se aproxima a de um cemitério de pessoas.
Desconsiderando-se os sujeitos que se escondem por detrás do processo, sem lhes
dar voz, inexiste respeito estatal por suas individualidades, mas mero
exercício do Poder Estatal. Um poder que tal qual a guerra não encontra
fundamento jurídico, mas meramente político. É puro ato de força.
Da antiga racionalização e fragmentação de conhecimentos, binômio
caracterizador da modernidade, assistimos as descontinuidades de diversas
ordens, principalmente no campo tecnológico. Há, também, uma superação entre o
mundo da razão e o da subjetividade, com a preponderância absoluta da razão.
Implica na morte do sujeito. O positivismo surge como aniquilador do sujeito e
dando total respaldo à racionalidade. O mito da neutralidade, do conhecimento,
da verdade real se instalam com vigor no campo das ciências. Com a
compartimentação do conhecimento existem cada vez mais especialistas incapazes
de compreender o todo e vinculados, cada vez mais, aos aspectos sectarizados de
seus matizes. Em resumo, os paradoxos emergentes definem a crise instalada no
âmbito do Direito e, mais especificamente na área da Infância e Juventude.
Não se trata, todavia, de rejeitar as conquistas da modernidade.
Cuida-se de atualizar a proposta com uma pitada de amor. A manutenção da razão
combinada com o resgate do sujeito (objetividade + subjetividade). A lei e as
demais formas jurídicas possuem sua respectiva importância. Mas não estão mais
sozinhas. O sujeito e sua defesa se mostram como condição de possibilidade de
uma proposta efetivamente emancipatória e democrática. E mais: sem a imposição
dos "bons profissionais" das Equipes Interdisciplinares desatualizados,
donos da verdade, os quais "sabem o que é bom para a criança
adotada". Há aí, ouso dizer, com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, puro
narcisismo: gente lutando com seu próprio ego para buscar no outro a realização
de algo que não consegue em si, buscando pela "bondade" para com o
outro exorcizar os "pecados" e frustações de outrora.
Todos os protagonistas do processo judicial precisam ser
respeitados como pessoas humanas. E, como tal, pessoas em constante
desenvolvimento e evolução. Seres humanos com defeitos, crenças, idéias e
valores múltiplos.
E nós não estamos imunes a isso: temos que nos aperceber como
seres humanos e não super-heróis redentores da humanidade: os titulares do
poder de salvar. Tenho reparado em alguns textos e falações o caráter
messiânico dos atores judiciais do processo de adoção, na assunção de um papel
não conferido pelo Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, será que
estamos legitimados numa sociedade que se diz democrática, em estabelecer o
padrão de moralidade e normalidade das práticas sociais? Nós os normalpatas3
portadores da doença incurável de estabelecer um padrão de normalidade, pela
lógica que nós próprios impomos, jamais estaremos errados; afinal, nós somos os
normais. L.F. Barros colocando-se na condição de louco, mas dentro de uma
sociedade democrática, pergunta "Qual é o juízo de valor que você pretende
usar para estabelecer quais comportamentos manter, quais suprimir, quais
instaurar ? O meu juízo ou o seu ? Se for o meu, você é louco, se for o seu,
você é um tirano."4
Aceitar a diferença - e já está na hora de ditarmos a declaração
dos direitos humanos dos outros - rejeitando o narcisismo reinante, se mostra
absolutamente necessário para se democratizar o processo de adoção
Nesse contexto, a proposta da formatação da Justiça precisa ser
mais humana e pedagógica5 do
que simplesmente "resolutiva-na-forma-da-lei" dos conflitos e
encaminhamentos para colocação em família substituta. É preciso dar-se conta da
necessidade de (re)leitura da realidade contemporânea em face da superação dos
pressupostos da modernidade, geradores, como curial, de crises.
Procura-se, assim, desde dentro do Poder Judiciário, abrir-se suas
portas para permitir-se a humanização da justiça com a efetiva tutela do
direito de viver em sociedade e dela participar, rompendo-se com a perspectiva
de transferência da responsabilidade para resolução dos conflitos ao
Estado-Juiz, sob a forma do mero litígio jurídico, como no caso de destituição
do poder familiar. .
Com Warat posso dizer que a superação do normativismo cego é o
primeiro passo para recuperar o Humano nas práticas jurídicas6 .
Nem mesmo as partes são ouvidas nos processos judiciais, sendo que suas falas
ficam filtradas por formas jurídicas empregadas pelos porta-vozes autorizados
(procuradores), desconsiderando-se, assim, suas potencialidades e necessidades.
É inevitável dar voz à cidadania para que os conflitos possam ser a passagem
para felicidade e não o lugar das vozes reprimidas. E, essa escuta (= ato de
ouvir) estatal é condição de possibilidade para o respeito das
partes-humanas-e-processuais. Sem isso, as partes são desconsideradas como
pessoas.
A resolução dos conflitos necessita, assim, respeitar as dimensões
afetiva, cognitiva, social e de valores das partes, dos sujeitos do processo7 .
Antes de se realizar um simples raciocínio lógico, a responsabilidade ética dos
atores jurídicos8
exige o compromisso com o futuro, com o devir (MacCormick9).
A decisão, no contexto das partes, trará conseqüências aceitáveis? A situação
apresentada será solucionada? Haverá respeito pelas pretensões das partes? Sem
essas indagações e respostas sérias, a decisão judicial não passa de um ato de
arbítrio realizado "à sombra da Lei"10
O magistrado precisa, na linha dos demais atores jurídicos, então,
dar-se conta do intrincado mundo que (com)vive, o qual não é alheio ao dos
seres humanos com o qual exercerá parcela do Poder Estatal. Essa mudança
paradigmática (Kuhn) não se faz do dia para noite. É um processo contínuo de
dar-se conta de si mesmo e do outro. Um processo de auto-conhecimento
emancipatório e rompedor com o modelo prevalecente, no qual os conflitos são
equacionados em formas jurídicas genéricas e abstratas incapazes, assim, de
responder convenientemente ao mundo complexo que nos é apresentado.
Convencer os atores do cenário judiciário de que seu papel social
modificou-se; de que a interação com o social se mostra indispensável, é a via
que se mostra possível nesse momento de transição. Tomada a consciência de seu
respectivo papel, nos resta escutar e interagir com a sociedade, caminhando-se
no fio da navalha da democracia.
Penso que talvez bastasse um pouco mais de amor e carinho na
prática jurídica11
, marcado pela capacidade de abjurar as velhas práticas. Ser capaz de
compreender essa estrutura, rever os discursos do passado, aprender o que não
se sabe, desaprendendo o que se pensou saber (com tanta certeza). Barthes têm
razão: "É preciso saber perceber até que ponto se foi utilizado,
eventualmente, pelo poder. E então, se nossa sinceridade ou nossa necessidade
foram servilizadas ou manipuladas, penso que é absolutamente preciso ter a
coragem de abjurar."12
Assim, apostando no homem, no seu potencial, acredita-se na construção
de uma sociedade mais repleta de felicidade, com a superação inevitável do
passado, com absoluta vinculação à inserção social emancipatória, dado que sem
engajamento as práticas jurídicas são absolutamente ineficazes. As
possibilidades de mudança social pelo direito existem, principalmente quando há
o resgate da subjetividade, do humano, de forma democrática.
Essa é a tarefa, os caminhos são muitos, essa iniciativa é um, e a
estrada não tem fim... Enquanto isso: Quem nos salva da bondade dos bons?
1 Juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude de Joinville -
SC, Doutorando (UFPR), Mestre (UFSC) e Professor Universitário/SC. Texto
apresentado no 8o ENAPA - Encontro Nacional de Associações e grupos de Apoio à
Adoção - Itajaí, 1o de maio de 2003. E-mail: amr8052@tj.sc.gov.br
2WARAT, Luis Alberto. O Ofício do Mediado vol. I.
Florianópolis : Habitus, 2001, p. 217/241.
3BARROS, L. F. Os Normalpatas. Não matei Jesus e outros
textos. São Paulo : IMAGO, 1997, p. 25-47. A normalpatia é a síndrome mais universalmente
difundida nas sociedades modernas. Consistindo na plena convicção que a maioria
dos indivíduos nutre a respeito de sua total e absoluta sanidade, esta síndrome
não tem cura, posto que o conceito de cura só se aplica aos doentes. A
hipotética cura do normalpata seria paradoxal: só se daria pela aquisição de
uma disfunção de comportamento, pensamento ou emoções, o que o levaria a estar
doente e não estar curado.
4BARROS, L. F. Os Normalpatas. Não matei Jesus e outros
textos. São Paulo : IMAGO, 1997, p. 30.
5Conferir a Proposta de POURTOIS, Jean-Pierre; DESMET,
Huguette. A educação pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1999.
6Warat (Op. Cit. p. 220) esclarece: "A ciência jurídica
avançou, consideravelmente, em termos de sua matematização... juízes cada vez
menos preparados para articular seus processos decisórios aos grandes
interrogantes humanistas finseculares. A cabeça dos juízes não está feita para
fazer do jurídico um processo de humanização (desvinculando o inumano do
processo e das instituições que o comprometem).
7A mediação surge como um desses caminhos possíveis de
reencontro com o subjetivismo. Conferir: WARAT, Luis Alberto. O Ofício do
Mediador. Florianópolis : Habitus, 2001.
8Emprego o termo "ator jurídico" ao invés de
"operador jurídico" por entender que o primeiro pressupõe a
consciência da participação no fundo dos fatos pelo intérprete, enquanto o
segundo facilita a objetivação e o seu distanciamento.
Retirado de: http://www.garantismo.com.br/