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A IMPARCIALIDADE DO JUIZ
E A JURISDIÇÃO DE OFÍCIO

 

 

Adriano Enivaldo de Oliveira

 

John Raws tem um exemplo bem claro de aplicação da justiça: aquele que divide o bolo não pode ser o mesmo a distribuir as fatias. Esta mesma idéia tem orientado os estudos e os rumos do Direito sobre os limites que devem ser postos à atividade do juiz na condução e orientação do processo. O tema, portanto, não compete somente ao direito processual, mas a todo o Direito visto deitar raízes na Teoria da Justiça, “porque são havidos como justos os princípios selecionados em condições eqüitativas e através de procedimento imparcial”.

É importante que se tenha esta ótica ao analisar a questão para não ficar presos sob um único prisma esquecendo as múltiplas faces com que se apresenta a discussão a cerca da jurisdição de ofício e da imparcialidade do julgador.

 

1. Princípio dispositivo versus princípio inquisitivo

 

Freqüentemente se encontra na doutrina a distinção entre os princípios dispositivo e inquisitório como pertencentes a sistemas opostos2 . Tal polarização não é verdadeira porque na história do Direito se encontram raros exemplos da presença pura de um destes princípios em um ordenamento jurídico processual3 , como o ordenamento jurídico prussiano do século XVIII, em que vigorava o princípio inquisitório, em razão da crença de Frederico, o grande, de que a ineficiência da justiça se encontrava na conduta dos advogados4 . O que sói ocorrer é a preponderância de um ou outro princípio na ordem jurídica de um Estado.

Assim, quando o juiz deve julgar somente conforme os fatos afirmados e provados pelo autor e pelo réu proibindo-se-lhe buscar fatos não alegados, “cuja prova não tenha sido postulada pelas partes”, estamos diante do princípio dispositivo5 ; ao revés, quando o ordenamento jurídico permite que o magistrado vá além do requerido pelas partes, o princípio inquisitório se faz presente.

A característica principal do processo inquisitório é poder o juiz proceder de ofício e colher livremente a prova6 . Como observa de maneira crítica Cappelletti, a inquisitoriedade indica um tipo de processo onde o magistrado tem poderes de iniciativa oficial em matéria de provas.

Robert Wyness Millar comenta o procedimento no exemplo prussiano antes mencionado, dizendo que “as alegações das partes eram formuladas por um Juiz delegado – o Instrutor – ou por funcionários judiciais subordinados, chamados de comissários de justiça, os quais constituíam o único corpo de profissionais jurídicos reconhecidos. Tais comissários estavam presentes também no momento da colheita da prova, patrocinando as partes. A representação por outros advogados se limitou à discussão (por escrito) das questões jurídicas presentes na causa. Desta forma, a delimitação do material do juízo ficou sujeita ao controle do Tribunal”8 . O juiz, portanto, não ficava adstrito ao alegado pela partes,  podendo empreender investigações pessoais a fim de descobrir a verdade.

 

2. A tarefa de provar no Brasil

        

Entre nós há quem entenda, como o ministro Sepúlveda Pertence, que a coleta de provas pelo magistrado desvirtua a função do juiz de modo a comprometer a imparcialidade deste no exercício da prestação jurisdicional. Tal entendimento, contudo, não é respaldado pela Excelsa Corte9 .

Quando a Lei nº 9.034/95 foi objeto da ADIn 1.517-UF, onde a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL, questionava a constitucionalidade do art. 3º da referida lei (a qual atribui ao juiz, nas hipóteses de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, realizar pessoalmente e em qualquer fase de persecução criminal, diligências que compreendam o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais, como meios de prova e procedimentos investigatórios relativos à prática de crime resultante de ações decorrentes do chamado crime organizado), o primeiro argumento da parte autora foi o de que o juiz não pode agir de ofício,  indo em busca da prova, pois comprometeria a imparcialidade que é inerente à condição da magistratura.

Como acentuou o relator, ministro Maurício Corrêa: “Querer elevar à condição de processo inquisitorial ou à inovação de o juiz de instrução, mera diligência a ser efetuada pelo juiz, na apuração do deplorável crime organizado, a meu ver é ir longe demais. É extremismo que não se compatibiliza com a realidade das normas impugnadas que apenas traçam comportamento especial para o magistrado em situação excepcional, ou seja, lhe dá o remédio adequado para, sem delongas, permitir-lhe ação imediata no levantamento de dados e informações que podem se tornar indispensáveis no combate a este modo de delito hoje em pleno curso”.

Além disto, como notou o relator, a possibilidade da coleta de provas ser realizada pelo próprio juiz, não é nova em nosso ordenamento processual, pois os artigos 440 a 443 do Código de Processo Civil atribuem ao magistrado a inspeção judicial e tais mecanismos nunca foram argüidos do vício de inconstitucionalidade, por estar o juiz agindo de ofício. “Constata-se, pois, que a Constituição não veda o deferimento por lei de funções de investigações criminais a outros entes do Poder Público, sejam administrativos ou magistrados”.

“Da mesma forma a argumentação segundo a qual a colheita de provas feita pessoalmente pelo juiz compromete sua imparcialidade não merece prosperar. Colhê-las não implica valorá-las, o que há de ser feito de forma fundamentada e após o contraditório. Não antecipa a formação de um juízo condenatório, do mesmo modo como não o antecipa a decretação de prisão preventiva ou temporária”. (Informativo do STF n. 71).10 

 

3. As razões deontológicas da proibição da jurisdição de ofício

 

Tratando sobre a possibilidade da jurisdição de ofício Santo Tomás de Aquino, já no século XIII, observa que Deus quando julga usa como acusador a própria consciência do acusado11 . Procede por próprio conhecimento da verdade. O homem, ao contrário, não possui esta habilidade. Necessita, portanto, descobrir a verdade.

Tal verdade pode ser conhecida ao menos de dois modos: diretamente, quando o objeto da verdade é captado pelo próprio sujeito; indiretamente, quando o sujeito que percebeu a verdade a transmite a outro.

Para o Angélico o juiz é o intérprete da justiça. Esta justiça, explica o Santo, não se realiza em relação a si próprio, mas entre duas ou mais pessoas. Logo, a justiça é uma virtude desnecessária quando só há uma pessoa. Justiça é necessidade social em qualquer comunidade minimamente organizada. Como escreve Rawls, “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais”12 .

Ao explicar a organização do Estado, Aristóteles diz que a pólis se compõe de seis atividades: alimentação, comércio, defesa, religião, artesanato e justiça. A justiça se encarrega de resolver conflitos entre os cidadãos. “É a mais necessária de todas”, segundo o Peripatético. O juiz, nesta organização, desempenha o papel de determinar o que cabe a cada um, tarefa fundamental num mundo sem virtude e tradição. “Determinar o justo” para Aristóteles é dar a cada um o que é seu (dikaion, to). O juiz, portanto, deve julgar (determinando o justo) entre duas partes: autor e réu. Não pode, portanto, aplicar justiça a si próprio, pois ninguém é bom julgador de seus próprios atos por não estar alheio às inclinações que os motivaram.

        

4. O (des)entendimento dominante

 

O raciocínio utilizado no Ocidente para se impedir a jurisdição de ofício tem sido de que o interesse que move a atividade estatal pertence às partes, não ao Estado. Estaria vedado a este, portanto, intervir nos conflitos de interesse privado através do juiz. Especificamente no direito processual tem-se a idéia de que o processo serve à parte. Por exemplo:

 

“PROCESSO CIVIL – TRANSAÇÃO – SATISFAÇÃO DE OBRIGAÇÃO – ADIMPLEMENTO VOLUNTÁRIO PELO DEVEDOR – EXTINÇÃO DE AÇÃO DE EXECUÇÃO INEXISTENTE – PRINCÍPIO DISPOSITIVO.

I – Transação é o negócio jurídico onde as partes autocompõem a lide por meio de mútuas concessões, afastando a ‘vexata quaestio’, seja por meio de documento elaborado pelas partes, seja por meio de lavratura de termos nos autos, perante o Juiz.

II – Nesses termos, é, portanto, negócio jurídico de direito material (a teor do art. 1.025, do Código Civil Brasileiro), observando-se desse modo, que o magistrado não detém sobre a transação qualquer juízo de valor, porque é o dito negócio fundado unicamente na vontade das partes em litígio.

III – Na transação, o Juiz apenas pode e deve observar a existência dos requisitos genéricos autorizadores da homologação” (TRF-2ªR., AC 208308, 1ª T., rel. Juiz Ney Fonseca, DJ 30/05/2000).

        

Tal entendimento deve ser visto com reservas, pois se é verdade que o processo serve às partes, só as serve enquanto instrumento para a tutela jurisdicional. A partir do seu acionamento o instrumento (processo) adquire exigências próprias que podem não se compatibilizar com os interesses das partes litigantes, porque o conteúdo da tutela jurisdicional – seu fim – também não lhes está disponível, devendo os sujeitos que o utilizam adaptar-se ao seu “mecanismo interno”13 . Assim, ainda quando “se trata de direito disponível, e o autor requer o julgamento antecipado da lide, fica sujeito à limitação que impôs ao Juiz, não podendo – depois de sentença desfavorável em razão da insuficiência de provas – pretender a anulação do julgado; o Juiz arranharia a imparcialidade que lhe é exigida se, substituindo-se ao interessado, determinasse a realização da prova”14 .

        

5. Lide material e lide processual

        

Ainda hoje paira confusão entre a lide material e a lide processual. A lide material pertence às partes, e é pré-processual, podendo dela disporem, normalmente, como lhes convier. Não pode o Estado, presentado pelo juiz, nela intervir, pois estaria a invadir com sua estatalidade o âmbito privado, visto que pelo “princípio dispositivo, inscrito no art. 128 do CPC, o juiz não poderá decidir a lide além dos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte”15 .

Neste sentido, “se a parte simplesmente se limita a impugnar critérios de cálculo, em abstrato, descurando da análise dos depósitos, não é o Juiz que deverá fazer prova ou assumir encargos próprios dos litigantes”16 , salvo se o direito material for indisponível. Assim, “na execução contra a Fazenda Pública, não vige o princípio dispositivo, dada a indisponibilidade dos bens públicos, embora tempestivos os embargos, e até se não os houvesse, poderia o Juiz corrigir erro material evidente, hipótese em que a planilha de cálculo apresenta quantia absurdamente elevada”17 .

Entretanto, se este âmbito privado imiscui-se na esfera pública forma-se uma lide processual, onde a busca por uma tutela de interesse material deduzida em juízo deve conformar-se a com as normas de interesse formal pertencentes a estrutura pública do processo. Desta forma, “não afronta a qualquer princípio processual – notadamente o princípio da demanda – quando o Juiz limita-se apenas a ordenar que o autor promova a citação do litisconsórcio passivo necessário”18 .

 

6. A natureza pública do processo

 

Para uma correta compreensão a cerca da jurisdição de ofício deve-se observar que apenas “no primeiro momento a parte dispõe do seu interesse material; no segundo, há apenas escolha dos meios que lhe pareçam mais adequados”19 . O pensamento segundo o qual “o princípio dispositivo inscrito nos artigos 128, 292 e 460 do CPC, está vulnerado quando o julgador direciona os fatos para as conseqüências pedidas, mas por caminho jurídico diverso do indicado”20 está equivocado.

Por isto deve estar bem presente a distinção entre o poder que a parte possui de dispor do seu interesse material, levando ou não tal interesse à esfera pública, do poder de determinar o caminho interno e formal da prestação da tutela quando já inclusa no âmbito público, quando o juiz pode proceder de ofício, pois a técnica instrumental do procedimento pertence ao processo, cabendo-lhe a direção.

Como observou o min. Sávio de Figueiredo Teixeira: “O Código de 1973 acolheu o princípio dispositivo, de acordo com o qual o Juiz deve julgar segundo o alegado pelas partes (Iudex secundum allegata et probata partium iudicare debet), mas o abrandou, tendo em vista as cada vez mais acentuadas publicização do processo e socialização do Direito, que recomendam, como imperativo de justiça, a busca da verdade real. O juiz, portanto, não é mero assistente da batalha judicial, ocupando posição ativa, que lhe permite, dentre outras prerrogativas, determinar a produção de provas, desde que o faça com imparcialidade, sem ensejar injustificado favorecimento a litigante que haja descurado ou negligenciado em diligenciar as providências probatórias de seu interesse”21 .

Sem esta adequada compreensão, continuaremos a confundir direito subjetivo e processo, identificando o princípio dispositivo com a dispositividade do próprio direito subjetivo. Deve-se esclarecer de uma vez por todas que o princípio dispositivo ostenta natureza processual, não material, pois do contrário teríamos que admitir que além da relação jurídica deduzida em juízo ter caráter privado, também gozaria da mesma natureza privada a estrutura interna do processo, ou seja, a técnica processual, o que nos conduziria a aceitar a teoria material da ação.

Evidentemente que apenas o pretenso ou real titular do direito material dispõe do direito de ação, não sendo permitido ao juiz, agindo de ofício, exercitá-lo, quer para restringi-lo quer para ampliá-lo, pois quem delimita o pedido e a causa de pedir é a parte. Como expressa a vetusta parêmia sententia debet esse conformis libello. Por isto é firme a jurisprudência no sentido de que “no mandado de segurança, a errônea indicação da autoridade coatora, afetando uma das condições da ação (legitimatio ad causam), acarreta a extinção do processo, sem julgamento do mérito”, vendo vedado “ao juiz, verificada a equívoca indicação”, “substituir a vontade do sujeito ativo, afrontando o princípio dispositivo, pelo qual cabe ao autor escolher o réu que deseja demandar”22 .

Mesmo a “presença de litisconsorte passivo necessário na lide depende de iniciativa da parte autora, sob pena de violação do princípio da demanda, vedado ao juiz promover a citação de ofício”23 , pois “ao juiz é defeso chamar ao feito parte diversa daquela indicada pelo autor em seu petitório, sob pena de ferir o princípio dispositivo ou da iniciativa da parte”24 .

Entretanto, uma vez acionado o Estado, presentado no processo pelo juiz, a este cabe exercer os poderes de direção e condução não só formalmente, mas também do direito material, salvo se a parte quiser desistir de tal direito, pois “a prestação jurisdicional há que ser entregue em sua plenitude. É dever do magistrado apreciar as questões que lhe são impostas nos autos”25 . Afinal, “dar razão a quem a tem é, na realidade, não um interesse privado das partes, mas um interesse público de toda a sociedade”26.

Por esta razão está equivocado o entendimento “segundo o qual o Juiz depende, na instrução da causa, da iniciativa das partes quanto à afirmação e prova dos fatos em que se fundam os pedidos, uma vez que deve decidir segundo o alegado e provado por elas”27 . O juiz tem o dever de tentar descobrir a verdade independentemente das diligências requeridas pelas partes.

Assim, “absolutamente impertinente e inválida sentença terminativa que, declarando a satisfação da obrigação, decreta a extinção do processo de execução inexistente, vez que sequer requisitada regularmente pelo credor a atuação por via do direito de ação”28 . Mas equivocado o entendimento sumulado de que o juiz não pode alegar de ofício a incompetência relativa29 , pois trata-se, à evidência, de assunto público, referente a organização judiciária. Da mesma forma é errado o pensamento, unanimemente aceito – muitas vezes sem fundamentação – segundo o qual o juiz não pode alegar, por iniciativa própria, a existência de prescrição30 , a qual está indissociavelmente ligada a função estatal de judicar.

Isto ocorre porque embora o objeto do processo possa ser privado, o processo possui sempre natureza pública. Disto decorre que as partes privadas, que são livres para dispor do direito material levado a juízo (objeto do processo), não gozam da mesma liberdade para dispor do instrumento processual31 . O modo de desenvolvimento do processo é ditado pelo interesse público, cabendo ao magistrado a sua direção. Neste sentido as partes podem trazer o fato principal acompanhado de sua versão. O juiz não pode agregar outros fatos senão para melhor compreender o trazido pelas partes, mas a fim de melhor saber como o fato verdadeiramente ocorreu, deve pesquisá-lo pelo meios que achar necessários, até porque as partes podem tentar fraudar os fins do processo (colusão)32.

Assim, a natureza pública do processo convive harmonicamente com a natureza privada (normalmente) do objeto do processo, não se podendo falar em jurisdição de ofício, a qual só ocorreria se houvesse uma publicização do objeto do processo, o que traria como conseqüência a abolição do direito subjetivo das partes.

 

7. O risco de comprometimento

 

A proibição da jurisdição de ofício sempre teve como fundamento evitar a parcialidade do juiz, não no sentido de inércia ou desinteresse, mas no sentido de evitar que o exercício de um Poder-Dever fique previamente inclinado com o resultado da prestação jurisdicional. Por isto ao juiz é vedada a disponibilidade material (ingressar ou não com uma demanda – princípio da demanda). Entretanto, possui ele a disponibilidade processual, que consiste em se lhe atribuir “poderes autônomos quanto ao modo de exercer a sua própria função”33 . Assim, quanto à iniciativa probatória nada impede o juiz de promovê-la, visto que lhe compete descobrir a verdade a respeito dos fatos trazidos pelas partes. Violação ao princípio dispositivo ocorreria se o magistrado determinasse a iniciativa da demanda e limitasse o objeto dessa.

É verdade que o juiz deve julgar somente conforme o alegado pelas partes (contornos da lide), mas o trabalho de provar o alegado, embora ônus das partes, não excluir a atividade judicial frente ao próprio dever de decidir conforme estiver convicto.

Para muitos, especialmente os seguidores de Liebman, o fundamento do princípio dispositivo reside no fato de ser imprescindível manter o juiz desvinculado da matéria sobre a qual exercerá seu ofício.  A “estraneidade”, portanto, seria a característica mais predominante na atividade judicial34 . Esta busca pela neutralidade seria prejudicada se o juiz partisse de uma concepção já formada.

É preciso entender, contudo, que a proibição da jurisdição de ofício, conforme Cappelletti, é um princípio de oportunidade, e não de necessidade, podendo ser “...excetuável nas espécies em que o interesse público vem à frente”35. Tanto é assim que nos casos de suspeição não alegada por uma das partes, mesmo que se verifique a parcialidade do julgador, não cabe ação rescisória. Volta-se aqui ao ponto já observado antes: a imparcialidade do magistrado diz respeito ao objeto do processo, e não ao processo. Que o juiz deve ser imparcial com relação ao objeto do processo é uma necessidade. Que o juiz seja imparcial com relação ao processo é uma conveniência. Por esta razão é possível afastar-se, dependendo das circunstâncias do caso concreto, o monopólio das partes concernente a iniciativa probatória, sem que o processo perca o caráter dispositivo37 , o que ocorreria se o juiz pudesse iniciar a ação (subprincípio da demanda ou, na linguagem pontiana princípio do suscitamento pelas partes), ou argüir exceções de direito material.

Nem mesmo quando se determina o recurso independente da vontade das partes (reexame necessário), há ofensa à disponibilidade material que as partes possuem. Está-se, simplesmente, dispondo do processo. Até por este motivo muitos entendem que o necessário duplo grau de jurisdição não é recurso, por não veicular o desejo material das partes. Entretanto, em assim pensando, também não seria recurso aquele interposto pelo Ministério Público quando contrário a vontade das partes (quando houve colusão ou outro tipo de fraude).

8. Conclusão

        

Escrevendo especificamente da área penal o Aquinate é categórico ao afirmar que o juiz não pode condenar alguém em juízo se não há acusador38. Cita o Novo Testamento onde está dito que o costume, entre os romanos, ao condenar um homem, era ouvi-lo, bem como identificar seus acusadores39 .

Santo Ambrósio é usado como argumento de autoridade, pois ao comentar as Cartas aos Coríntios observa que o juiz não deve condenar sem que haja acusador, pois nem Cristo condenou Judas - que era ladrão - porque não houve acusador40 .

Se o juiz fizesse também o papel de acusador estaria comprometendo sua imparcialidade, que é a nota característica da jurisdição. Além disto, deve ter conhecimento da causa por ciência alheia, não por conhecimento próprio.

A necessidade de um acusador que instrua a causa é uma prescrição de direito natural, segundo os comentadores da Suma Teológica41 . Daí tendo surgido todo o desenvolvimento do processo judicial acusatório. Ademais, é uma garantia para o acusado que tem o direito natural a uma defesa42; e como poderia defender-se se quem julga é a mesma pessoa que o acusa?

Estes são os razoáveis fundamentos para impedir-se que o juiz possa iniciar uma demanda ou interferir na disponibilidade do direito material quando não haja interesse público, sem que o magistrado seja transformado em silente espectador da marcha processual. Da sua correta compreensão depende uma real aplicação da justiça por parte do Estado.

 

 

1     José Nedel, A teoria ético-política de John Rawls, EDIPUCRS, Porto Alegre: 2000, p.56.

2     Ovídio Araújo Baptista da Silva, Curso de processo civil, vol. 1, Sérgio Fabris Editor, Porto Alegre: 1987, p. 47: “Ao princípio dispositivo costuma contrapor-se o chamado princípio inquisitório”.

3     Cf. Antônio Janyr Dall´Agnol Júnior. O princípio dispositivo no pensamento de Mauro Cappelletti, revista da AJURIS, ano 16, nº 46, Porto Alegre: 1989, p. 98.

4     Também alguns ordenamentos jurídicos do oriente socialista adotaram e adotam o princípio inquistório, cf. Cappelletti, op. cit., p. 63.

5     Cf. Ovídio. Curso, vol. 1, p. 47.

6     Cf. Enrico Tullio Liebman, Problemi del processo civile, Morano, p. 9: “...processo inquisitorio è sempre stato considerato quello che há come caratteristica saliente il potere del giudice di procedere d´ufficio e di raccogliere liberamente la prova”.

7     El proceso civil en el derecho comparado, EJEA, 1973, p. 39, nota de rodapé nº 32.

8     Los princípios formativos del procedimiento civil, EDIAR, 1945, p.71.

9     ADIn 1.517-UF, rel. Min. Maurício Corrêa, 30.4.97 (informativo STF n. 69).

10    Osório Silva Barbosa Sobrinho. Constituição Federal vista pelo STF, editora Juarez de Oliveira, 2ª ed, São Paulo: 2000, pp. 130-132.

11    Summa, 2-2 q.67 a.3.

12    John Rawls, Teoria de la Justicia, Madrid, Fondo de Cultura Econômica, 1978, p.19.

13    A expressão é de Cappelletti.

14    STJ, EDResp 91998, 3ª T., rel. Min. Ari Pargendler, DJ 15/05/2000, p.155.

15    STJ, Resp 115711, 6ª T., rel. Min.Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 06/10/1997, p.50065.

16    TRF-4ªR., 3ª T., Desª. Fed. Marga Inge Barth Tessler, Proc. nº 96.04.43644-9/RS, DJ 01/10/97, p.80705.

17    TRF-5ªR., 2ªT., AC 107267, rel. Des. Fed. Lazaro Guimarães, DJ 30/05/1997, p.39129.

18    TRF-4ª R., 5ª T., Proc. Nº 95.04.13990-6/PR, Des. Fed. Amir Sarti, DJ 04/10/1995, p.67637.

19    Antônio Janyr..(p. 101).

20    TRF-1ªR., EDAC 01183052, rel. Juíza Eliana Calmon, DJ 29/09/1994, p.55277.

21    STJ, Resp 17591, 4ª T., DJ 27/06/1994, p.16982.

22    STJ, Resp 148798, 1ª T., rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJ 11/06/2001, p.102.

23    TRF-1ªR., AC 01023575, 3ª T., rel. Juiz Antonio Ezequiel, DJ 23/03/2001, p.41.

24    TRF-5ªR., AC 111659, 1ª T., rel. Des. Fed. Castro Meira, DJ 26/06/2000, p.1021.

25    STJ, Resp 225897, 1ªT., rel. Min. José Delgado, DJ 17/12/1999, p.334.

26    Emílio Betti, Diritto Processuale Civile, 2ª ed., 1936.

27    TRF-4ª R., 3ª T., AC 195913, rel. Desª. Fed. Luiza Dias Cassales, DJU 03/05/2000, p.125.

28    TRF-2ªR., 1ª T., AC237092, rel. Juiz Ney Fonseca, DJ 10/10/2000, pp.146/163.

29    STJ, nº 33: “A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício”.

30    STJ, Resp 55906, 2º T., rel. Min. Ari Pargendler, DJ 03/02/1997, p.688: “A arguição de prescrição pode se dar, a qualquer tempo, nas instâncias ordinárias, mas deve ser manifestada expressamente, não podendo o juiz – sem ofJUSTIÇA FEDERAL-RS           Página 7 25/06/02ender o princípio dispositivo, que é correlativo a imparcialidade que deve manter na condução do processo  - suprir, por presunção, omissão da parte”.

31    Cappelletti, op. cit., p. 45.

32    CPC, art. 129.

33    Antônio Janyr, p.106.

34    “Guidice è colui che giudica in causa altrui”. Enrico Tullio Liebman, Revista di Diritto Processuale, nº 15, 1960, p. 551-565.

35    Pontes de Miranda. Comentários ao CPC, Forense, 1973, II, p. 388.

36    CPC, art. 131, primeira parte: “O Juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes”. Como diz Pontes de Miranda, “o Juiz também traz provas ao processo” (Comentários ao CPC, Forense, 1973, II, p. 386).

37    Dall‘Agnol, p. 108.

38    Summa, 2-2 q.67 a.3.

39    Atos 25,16.

40    Summa, 2-2 q.67 a.3.

41    Suma de Salamanca, pág. 517.

42             Suma de Salamanca, pág. 517.

 

 

Retirado de: http://www.ucpel.tche.br/direito/revista/imparcialidade.doc