A NATUREZA JURÍDICA DO PROCEDIMENTO DE INVENTÁRIO E A SISTEMÁTICA ADOTADA PELO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

RODRIGO BORGES VALADÃO*



* Advogado, Pós-graduando em Advocacia Pública pela Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro.

SUMÁRIO: 1. Da divisão funcional do poder - 2. Da função jurisdicional - 3. Da natureza administrativa da jurisdição voluntária - 4. Do inventário como procedimento de jurisdição voluntária e a sistemática adotada pelo Código de Processo Civil


1. Da divisão funcional do poder

   A palavra poder, na organização do Estado, pode assumir duas acepções absolutamente distintas. Deste modo, o Poder Estatal pode apresentar um sentido orgânico e um sentido funcional.

   Impende assinalar, logo de início, que à divisão tripartida das funções corresponde, aproximadamente, a divisão orgânica do Estado, no sentido de que a cada ramo estrutural é confinada uma parcela do seu poder, decorrente de sua soberania. Em simetria, cada organismo recebe uma nomenclatura referente à função cujo exercício está a ele confinado. Reconhecemos, assim, os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo.

   Ocorre, todavia, que à separação conceitual das funções não é possível corresponder uma separação absoluta de Poderes, pois é de modo aproximativo que se opera esta distribuição funcional. Assim, apesar do exercício da função jurisdicional ficar adstrita, precipuamente, ao Poder Judiciário, outras atribuições que falecem de natureza jurisdicional são a ele delegadas, por qualquer motivo politicamente relevante. Trata-se da atividade judiciária, como as de natureza eminentemente administrativa ou normativa, despidas de essência jurisdicional.


2. Da função jurisdicional

   Não restam maiores dificuldades em distinguir a função normativa do Estado de sua função jurisdicional. Pela função normativa, o Estado estabelece a ordem jurídica, declarando a vontade política do povo através de normas de conduta gerais, abstratas e hipotéticas, enquanto sua atividade jurisdicional ocupa-se da individualização e aplicação das normas preestabelecidas, com o cunho de definitividade, tornando efetivo (eficácia social) o direito objetivo.

   Noutro passo, a distinção entre as funções jurisdicional e administrativa merece maior atenção, pois ambas são atividades de aplicação da lei ao caso concreto. O que as difere é, justamente, o caráter substitutivo da primeira, pois o Estado, através do órgão jurisdicional competente, torna inoperante a vontade individual, impondo a vontade da lei. Deste modo, colhendo os ensinamentos de Celso Ribeiro Bastos, vê-se que "o que diferencia a primeira da segunda é que aquela aplica a norma em casos em que exista litigiosidade ou contenciosidade, enquanto esta dá cumprimento às leis, independentemente da ocorrência de oposição ou controvérsia".1

   Por oportuno, devemos observar que Moacyr Amaral Santos diferencia lide de litígio, podendo a primeira, pelo fato de estar situada na esfera sociológica, existir independentemente da segunda, que repousa sobre o fenômeno jurídico. Deste modo, litígio é a lide juridicamente resistida.2 Assim é que, com muita freqüência, a definição de jurisdição é apresentada como função do Estado de fazer atuar a vontade concreta da lei com o fim de obter-se a composição da lide.

   A esta teoria - amplamente majoritária entre os processualistas pátrios -, opõe-se a exposta por Jaime Guasp Delgado, para quem a jurisdição pode ser definida como "função de satisfação de pretensões", não sendo a lide conditio sine qua non da atuação da função jurisdicional (teoria revisionista). Dessa forma, uma simples pretensão individual já seria capaz de fazer incidir o direito objetivo. Com base nessa premissa, os partidários desta teoria conceituam a função jurisdicional como a função do Estado de atuar a vontade concreta do direito objetivo.3

   Além do mais, como bem acentua Ada Pellegrini Grinover, "a afirmação de que através da jurisdição o Estado procura a realização do direito material (escopo jurídico do processo), sendo muito pobre em si mesma, há de coordenar-se com a idéia superior de que os objetivos buscados são, antes de mais nada, objetivos sociais. Trata-se de garantir que o direito material seja cumprido, o ordenamento jurídico preservado em sua autoridade e a paz e ordem na sociedade perpetuada".4

   Diante do exposto, a jurisdição apresenta-se como atividade estatal secundária e substitutiva. O Estado realiza coativamente uma atividade que deveria ter sido primariamente exercida, de maneira espontânea, pelos próprios sujeitos da relação jurídica submetida à decisão, declarando, in concreto, a vontade da lei, substituindo, em conseqüência, a vontade das partes. Dessa forma, podemos dizer que a jurisdição é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve.5 Em remate, Humberto Theodoro Júnior acentua que "jurisdição contenciosa é a jurisdição propriamente dita, isto é, aquela função que o Estado desempenha na pacificação ou composição das lides. Pressupõe controvérsia entre as partes, a ser solucionada pelo juiz".6

   Relevando-se uma eventual - e infundada - concepção ampliativa, é correto dizer que a função jurisdicional configura uma extrema ratio, guardada em reserva pelo Estado para colocá-la em prática só quando o direito seja transgredido ou ameaçado pelos indivíduos relutantes em aceitar os preceitos normativos.


3. Da natureza administrativa da jurisdição voluntária

   Com peculiar maestria, o mestre italiano Piero Calamandrei ensina que "na zona fronteiriça entre a função jurisdicional e a administrativa, está a chamada jurisdição voluntária, a qual, mesmo sendo função substancialmente administrativa, é subjetivamente exercida por órgãos jurisdicionais. Assim, só a jurisdição chamada contenciosa é jurisdição, enquanto que a jurisdição chamada voluntária não é jurisdição, senão que é administração exercida por órgãos judiciais".7

   Destarte, devemos observar que, enquanto no procedimento de jurisdição contenciosa há um conflito de interesses, o que representa o pressuposto sociológico da atividade jurisdicional do Estado, no campo da jurisdição voluntária inexiste tal conflito, com a feição que assume em torno do processo contencioso: é necessária, aqui, a substituição de um dos interesses pela vontade da lei.

   A teoria revisionista - referida há pouco -, além afastar da função jurisdicional a necessidade de lide, sustenta que na jurisdição voluntária também há atividade substitutiva, sendo, por isso, assim como a jurisdição "contenciosa", uma atividade materialmente jurisdicional. Na jurisdição voluntária, a vontade das pessoas que integram a relação processual seria, portanto, indiferente, uma vez que seus interesses seriam substituídos pela vontade concreta da lei.

   Nos parece, contudo, que se encontra com a razão Humberto Theodoro Júnior, quando ensina que, na jurisdição voluntária "a função do juiz é equivalente ou assemelhada à do tabelião, ou seja, a eficácia do negócio jurídico depende da intervenção pública do magistrado".8

   As razões do legislador, quando retira estes procedimentos do âmbito normal de atuação da Administração, são fornecidas por Celso Agrícola Barbi. Para ele, "a circunstância de o ato ser praticado por órgão jurisdicional lhe imprime forma e eficácia diferentes dos praticados por órgão da Administração, dada a independência e as garantias que nosso sistema político atribui ao Poder Judiciário".9

   Logo, nas hipóteses de jurisdição voluntária, o juiz apenas realiza gestão pública em torno de interesses privados, em flagrante limitação ao princípio da autonomia da vontade. Assim, em virtude de qualquer motivo socialmente relevante, a lei impõe a intervenção de um órgão público para a validade do negócio realizado pelos particulares. É o que se conclui da lição de Arruda Alvim, in verbis: "a denominada jurisdição voluntária não é própria e naturalmente jurisdição. É, pois, o instrumento de que serve o Estado para resguardar, por ato do juiz, quando solicitado, bens reputados pelo legislador como de alta relevância social. E, na medida em que o juiz devesse ser solicitado e não o tenha sido, o ato será viciado [por defeito de forma (art. 82, CC)]".10

   São, assim, atos de natureza administrativa que poderiam ser desempenhados por órgãos da Administração Pública, conforme a conveniência política e sem ofensa ao princípio monista de jurisdição, representado pela garantia da inafastabilidade de apreciação de lesão ou ameaça de direito pelo Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF).

   Em defesa do exposto, inúmeros processualistas pátrios como Pontes de Miranda, José Frederico Marques, Ada Pellegrini Grinover, Athos Gusmão Carneiro, José Carlos Barbosa Moreira, Moacyr Amaral Santos, Lopes da Costa ainda poderiam ser citados apenas para "engrossar a lista". Optamos, contudo, por trazer à colação concisa e preciosa passagem do jurista italiano Giuseppe Chiovenda, onde assevera que "a jurisdição voluntária é, por conseguinte, uma forma especial de atividade do Estado, exercida (...) pelos órgãos judiciários e pertencente à função administrativa". 11

   Vê-se, portanto, que, segundo a melhor doutrina, na jurisdição voluntária não há uma atividade substitutiva da vontade dos indivíduos pela vontade do Estado. O órgão jurisdicional, no exercício de sua função atípica, apenas integra o negócio jurídico que se está a realizar. Admitir substituição nos procedimentos de jurisdição voluntária eqüivale a ignorar o conteúdo semântico do verbete.


4. Do inventário como procedimento de jurisdição voluntária e a sistemática adotada pelo Código de Processo Civil

   Sempre houve controvérsia doutrinária a respeito da natureza do procedimento sucessório mortis causa, sendo certo que poucas são as vozes que se levantavam na defesa do seu caráter contencioso. Assim, o entendimento amplamente majoritário é o de que se trata de procedimento de jurisdição voluntária, visto que a disputa entre os sucessores não é pressuposto, mas apenas um evento ocasional no curso do feito.

   No entanto, como bem ensina Humberto Theodoro Júnior, "o legislador de 1973 optou pela classificação do inventário e partilha entre os procedimentos especiais de jurisdição contenciosa. A solução pode não ter sido a mais técnica, mas é a da lei".12 Isto significa que, formalmente, o procedimento de inventário está integrado no sistema geral do Código, aplicando-se-lhes os preceitos do sistema contencioso, salvo as exceções correspondentes à sua natureza intrínseca, bem como as limitações decorrentes da própria ordem constitucional, referentes à essência da função administrativa.

   Em outras palavras: a lei concede determinadas peculiaridades formais da função jurisdicional à atividade administrativa exercida pelo órgão judiciário. Tem-se, assim, o efeito da coisa julgada sobre as sentenças proferidas nestes procedimentos e o caráter decisório da cognição incidental, que só poderão ser atacadas por recurso próprio, embora o assunto não encontre solução pacífica na jurisprudência, havendo decisões que admitem, por exemplo, a ação anulatória para anular a partilha nos procedimentos de inventário.13

   Como podemos ver, os caracteres extrínsecos são insuficientes para determinar o critério distintivo do procedimento de inventário. Classificar tais procedimentos como jurisdicionais, eqüivale a prestigiar a forma de que se revestem, ao invés de investigar sua essência. Com pena de ouro, o processualista italiano Piero Calamandrei escreve que "não conduziria a resultados mais seguros a adoção de um critério de distinção que se baseasse sobre a distinta forma que exteriormente revestem os atos das funções do Estado. É verdade que, em linhas gerais, a cada uma das três funções corresponde, na maioria dos casos, um meio próprio de expansão, que se apresentam como nota distintiva, como o selo, por assim dizer, daquela função. Esse critério formal não é exaustivo: seja porque se detém nas aparências sem tocar no fundo da distinção, seja porque também é puramente aproximativo, enquanto pode ocorrer que, em casos excepcionais, a forma que normalmente distingue os atos de uma certa função tenha sido adotada para revestir um ato pertencente por sua substância a uma função distinta".14

   Explicam-se, pois, os possíveis efeitos das decisões proferidas em sede voluntária, sem vulnerar a essência dos mesmos feitos. O inventário - assim como todos o demais procedimentos de natureza administrativa realizados pelos órgãos judiciários - encontra fundamento na atividade social do Estado, e não na sua atividade propriamente jurisdicional.


1 In, Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 19ª ed., p. 341.

2 In, Primeiras Lições de Direito Processual Civil, Saraiva, 10ª ed., p. 77.

3 In, Alexandre Freitas Câmara, Lições de Direito Processual Civil, vol. I, Lumen Juris, 2ª ed., p. 62 e 63.

4 In, Teoria Geral do Processo, Malheiros, 15ª ed., p. 127.

5 Idem, p. 129.

6 In, Curso de Direito Processual Civil, vol. I, Forense, 22ª ed., p. 39.

7 In, Direito Processual Civil, vol. I, Bookseller, p. 155.

8 In, op. cit., p.40.

9 In, Comentários ao CPC, vol. I, Forense, 10ª ed., p. 13.

10 In, Manual de Direito Processual Civil, vol. I, RT, p. 219.

11 In, Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, Bookseller, p. 23.

12 In, op. cit., vol. III, 3ª ed., p. 1738.

13 RT 570/58.

14 In, op. cit., p. 151.

 

 

Retirado de: http://www.justicavirtual.com.br/artigos/art41.htm

Acessado em: 04 de agosto de 2004