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Sigilo Bancário, Direitos Fundamentais e o Crime Organizado
Rafael Pereira Gabardo
Guimarães
Embora a
Constituição Federal do Brasil não cuide diretamente do sigilo bancário, esta
demonstra extremo cuidado com o direito à intimidade, à privacidade e à
transmissão de dados. São nesses direitos, garantidos pela Lei Maior, em que,
inicialmente, insere-se o direito ao sigilo bancário, diante da
discricionariedade com que podem ser tratadas a privacidade e a intimidade no
texto constitucional.
Portanto, é
evidente que o debate maior se centraliza na inserção ou não do sigilo bancário
como garantia constitucional, pois, se em vários países é assunto de direito
infraconstitucional, no direito pátrio a doutrina e jurisprudência majoritária
insistem em colocar este assunto como atrelado à Constituição Federal.
O sigilo
bancário, de forma alguma, deve ser encarado como direito absoluto, pois
comporta certas limitações. A divergência reside no aspecto do procedimento que
deve ser tomado e de quem ele deve partir para ser quebrado. O Poder
Legislativo vem constantemente legiferando no sentido de conferir ao Ministério
Público a prerrogativa de quebrar o sigilo bancário por livre-iniciativa, isso
em razão do ponto de vista em que se alicerçam, do qual enxergam que a
atividade comercial estaria elencada no direito privado, porém, afirmam que nem
clientes nem comerciantes podem comercializar tendo por objeto atividade
ilícita, de forma que passará da esfera privada para a pública em razão da
ofensa da legalidade e em especial, do bem comum da sociedade.
Com a
existência da Lei Complementar n.º 75/93 e o surgimento da Lei Complementar n.º
105, de 10 de janeiro de 2001, demonstraram-se avanços significativos em
relação à quebra do sigilo bancário, eis que se autoriza tal medida quando o
interesse público se sobressai ante o privado. Há efetiva convicção de que esta
nova roupagem normativa é direcionada à repressão do crime organizado, visando
desta forma garantir a transparência das transações monetárias e evitar que
afrontem a legalidade do Estado.
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"O sigilo
bancário, de forma alguma, deve ser encarado como direito absoluto, pois
comporta certas limitações"
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Sob este
prisma é que se insere a importância deste procedimento para o Ministério
Público. Como tal instituição, preza pela colheita de provas contundentes, a
nova modelagem que transparece ao sigilo bancário traz inúmeros benefícios à
produção probatória e evidentemente uma melhor e profunda investigação, que em
primeiro plano traria resultados rápidos e satisfatórios. Porém, isto se opera,
em contrapartida, com o enfraquecimento dos direitos individuais
constitucionais.
Por estas
razões, cumpre indagar, se interessa manter o sigilo bancário no campo
constitucional, pois posta-se frente ao Ministério Público como grande
empecilho à obtenção de provas de atividades ilícitas, dado que a subsunção do
pedido de quebra do sigilo bancário ao Judiciário, oferta tempo necessário aos
abusadores dessa premissa para que movimentem os lucros obtidos ilicitamente
rapidamente, apagando os vestígios necessários para a comprovação da ilicitude.
Por outro
lado, põe-se sob o fio da navalha a manutenção do Estado Democrático de
Direito, tendo em vista que é matéria quase que pacífica que ao Poder
Judiciário é dada permissão constitucional para excepcionar o sigilo bancário,
em situações concretas de conflito entre interesse privado e público.
Ao Poder
Judiciário cabe, em síntese, a função de dizer o direito, ou seja, dirimir
conflitos de interesses. Denomina-se tal função como jurisdição. A função
precípua de dizer o direito, ou seja, de exercer jurisdição decorre do
instituto jurídico da "coisa julgada", que proporciona a força e a
solidez necessária à decisão judicial, em última instância, porquanto garante a
imutabilidade dos efeitos da sentença, nos termos do artigo 5.º, inciso XXXVI,
da Constituição Federal.
Além disso, a
função jurisdicional encontra respaldo no princípio da inafastabilidade do
controle jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, CF), segundo o qual o Poder
Judiciário tem o dever de prestar a tutela jurisprudencial postulada, seja
negativa ou positiva.
Nesse
contexto, ensinam Paulo QUEZADO e Rogério LIMA que:
Infere-se,
portanto, da própria natureza da função do Poder Judiciário, que a este cabe,
mesmo sem autorização expressa constitucional, excepcionar o direito
fundamental à privacidade de quem quer que seja, diante de situações especiais
em que haja verdadeiro comprometimento do interesse público. Isto porque o
Judiciário foi criado, justamente, com a finalidade primordial de solucionar os
conflitos em sociedade, resguardando a harmonia do ordenamento jurídico. [1]
Em uma
primeira análise da quebra do sigilo bancário, parece um absurdo o ataque a
esses direitos já consagrados. Isso comprova o que aduz o eminente autor Nelson
ABRÃO, ao frisar em sua obra que “É instintivo à natureza humana o desejo de
manter certa discrição no que concerne à posse e disponibilidade dos bens
materiais” [2].
Pertinente
então, questionar sobre qual é a verdadeira natureza do sigilo bancário e até
onde ele é englobado pelas emanações provenientes dos direitos constitucionais.
Como ponto de
partida, cita-se que a preservação do Estado Democrático do Direito como
fundamento à validade da atividade incriminadora têm caráter prioritário. A
busca de meios para reprimir a criminalidade com condutas que exponham ao dano
o sigilo bancário devem ser analisadas em um contexto de índole social e ordem
econômica, dando ênfase máxima a estas duas figuras presentes no diploma
normativo, pois são pressupostos lógicos de uma vida social organizada.
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"A busca
de meios para reprimir a criminalidade com condutas que exponham ao dano o
sigilo bancário devem ser analisadas em um contexto de índole social e ordem
econômica"
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De todo o
exposto, constata-se a existência de dois posicionamentos distintos em relação
à natureza do sigilo bancário. A primeira insere o sigilo bancário no direito à
intimidade e privacidade, ambos previstos na Constituição Federal, delimitando
que o patrimônio é uma projeção de sua personalidade, porquanto, trata-se de
cláusula pétrea, imune às modificações propostas por emendas constitucionais ou
edição de leis que versem sobre este assunto e que vão de embate à sua
natureza. A segunda corrente entende que o sigilo bancário é uma faceta da
atividade comercial, e embora mais afeta à vida privada, produz efeitos na
ordem pública, o que, mesmo com a inclusão do sigilo bancário no artigo 5º,
inciso X, da Constituição Federal, pode ceder frente à necessidade da apuração
de crimes financeiros pelo Ministério Público Federal em razão de ser interesse
da coletividade.
Vale frisar
que o controle sobre o produto ou proveito da infração penal, sem dúvida
alguma, é um meio efetivo de combate à criminalidade. Por exemplo, uma grande
variedade de delitos como o tráfico de armas, tráfico de drogas, contrabando,
extorsão mediante seqüestro, corrupção, são comumente associados e
identificados com as organizações criminosas, cuja única finalidade é a
obtenção de lucro à margem da legalidade. Neste aspecto, o controle rígido
sobre a lavagem de dinheiro é uma medida eficaz de repressão ao crime, ainda
mais numa época em que se vive um incremento da criminalidade, que vem gerando
uma exigência enorme da população por políticas criminais severas que
representem respostas estatais eficazes garantindo a segurança pública e a
manutenção do Estado de Direito.
No entanto, a
busca dessa maior eficácia da repressão penal não pode ser realizada com a
restrição dos direitos individuais conquistados ao longo dos séculos de
afirmação dos direitos humanos e à custa de imensos sacrifícios. A criação de
subterfúgios para restringir os direitos constitucionais pode ser muito mais
perigoso do que rasgar escancaradamente a Constituição Federal, pois dessa
maneira está se desconstituindo um Estado Democrático de Direito por aquilo que
o faz ser o que é, ou seja, através das leis.
Destarte, uma
proposta como a que está sendo publicamente ventilada, segue a direção
contrária preconizada pelos modernos Estados Democráticos de Direito porque
visa retirar do Poder Judiciário precisamente o que constitui sua mais
importante função: a função de coibir abusos, de prevenir excessos e de atuar
como legítimo guardião dos direitos e das liberdades fundamentais, sem o que
não há democracia.
E é dessa
forma que os menos desavisados, os quais proclamam que o direito ao sigilo
bancário não passa de um direito burguês, estão dando início a uma
desestruturação democrática, pois a Lei 4.595/64 (Lei do Sistema Financeira
Nacional revogada pela Lei Complementar n.º 105/01) permitia a quebra do sigilo
bancário, não obstante preconizar a legalidade e ser moralmente aceita.
Diga-se, no
entanto, que existe uma única possibilidade razoável de o Ministério Público
quebrar diretamente o sigilo bancário quando o caso envolver verbas públicas,
em razão de que ato de órgão ligado ao governo, direta ou indiretamente, como a
origem já indica, é público. Por isso a obediência ao princípio da publicidade.
Sendo o assunto dinheiro público, maior razão há de transparência em sua
administração, pois, do contrário, estará comprometido o próprio Estado
Democrático de Direito.
Explica-se, se
o sigilo bancário está entre os direitos individuais, e, por isso, só podendo
ser quebrado excepcionalmente, com a "coisa pública dá-se o inverso"
- afirma o Prof. Hugo de Brito MACHADO. "O princípio é o da publicidade, e
só excepcionalmente prevalece o sigilo" [3]. Em suma para o campo do
direito privado a exceção é a publicidade; para o campo do direito público, a
privacidade.
Por fim,
frisa-se que vivemos sob a sombra de um sistema positivo, estando à mercê de
uma constituição, que é instrumento de proteção das pessoas, e não de sua
submissão, afirmando seu compromisso com a cidadania, e não com o poder
opressor. Não se deve sacrificar a segurança jurídica do cidadão comum perante
um Estado onipotente e onipresente, que mostra mais interesse em atingir seus
fins sem se preocupar com os meios utilizados, freqüentemente desrespeitando
preceitos constitucionais consagradores dos direitos e garantias individuais e
coletivos, além de utilizar-se do fantasma da criminalidade para tentar impor
ou justificar violências que ele mesmo comete contra os direitos dos cidadãos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ABRÃO, Nelson. Direito bancário.
7.ª ed. revista, atualizada e ampliada por Carlos Henrique Abrão. São Paulo:
Saraiva, 2001.
MACHADO, Hugo de Brito Machado.
Uma Introdução ao Estudo do Direito. 4.ª ed. São Paulo:Saraiva, 1990.
QUEZADO, Paulo; LIMA, Rogério.
Sigilo Bancário. 5.ª ed. São Paulo: RT, 2001.
[1] QUEZADO, P.; LIMA, R. Sigilo
Bancário, pág. 54.
[2] ABRÃO, N. Direito Bancário,
p. 65.
[3] MACHADO, H. de B. M. Uma
Introdução ao Estudo do Direito, p. 250.
Retirado de: http://www.direitonet.com.br/doutrina/artigos/x/16/40/1640/