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AÇÕES JUDICIAIS PARA IMPEDIR O CORTE DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA
Alguns apontamentos sobre sua natureza e a autoridade competente para julgá-las
Demócrito Reinaldo Filho
A questão do
corte de fornecimento de energia elétrica tem ocupado os debates nas cortes
judiciárias. Diante do inadimplemento do consumidor, parte da jurisprudência
inclinou-se por inadmiti-lo, ao argumento da essencialidade do bem em questão e
da característica de continuidade do serviço de fornecimento de energia
elétrica, com apoio no art. 22 do CDC (Lei 8.078/90), que consagra o princípio
da continuidade dos serviços públicos essenciais. O Poder Público ou seu
delegado só ficaria autorizado a proceder à cobrança executiva do débito, sob
pena de infringir o art. 42 do mesmo diploma, que proíbe o uso de expedientes
constrangedores na cobrança de dívidas a consumidores. Essa corrente prevaleceu
durante algum tempo na Primeira Turma do STJ, tendo o Min. José Augusto Delgado
sido o relator do acórdão padrão que resultou no assentamento desse entendimento
(ver o acórdão proferido no ROMS 8915-MA, unânime, j. 12.05.98, DJ 17.08.98).
Mesmo antes da
superação dessa jurisprudência, sempre me manifestei contrário a ela, em
julgamentos que tive a oportunidade de participar (a exemplo do Proc. n.
01.002916-9, 21a. Vara Cível da Capital, decidido em 19.02.01). Como ressaltei
naquelas oportunidades, o direito à continuidade do serviço público, como está
assegurado ao consumidor no art. 22 (bem como no § 1o do art. 6o, da Lei
8.987/95), não significa que não possa haver corte do fornecimento, mesmo na
hipótese de inadimplência do consumidor. A continuidade, aqui, tem outro
sentido, significando que, já havendo execução regular do serviço, a
Administração ou seu agente delegado (concessionário ou permissionário) não pode
interromper sua prestação, sem um motivo justo, a exemplo das excludentes de
força maior ou caso fortuito. O dispositivo nem sequer obriga a Administração a
fornecer o serviço, mas, desde que implantado e iniciada sua prestação, não
poderá ser interrompida se o consumidor vem satisfazendo as exigências
regulamentares, aí incluído o pagamento da tarifa ou preço público. O art. 6o,
par. 3º, inc. II, da Lei 8.987/95 ("Lei das Concessões dos Serviços
Públicos"), deixa isso bem claro, ao dizer que "não se caracteriza
como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou
após aviso prévio", em caso de "inadimplemento do usuário,
considerado o interesse público" (1).
Como se vê, o
corte de energia elétrica é um direito que assiste ao Poder Público ou a seu
concessionário, no caso de inadimplência do usuário. Decorre de disposição
legal e, por isso mesmo, jamais poderia ser considerado um expediente
constrangedor ou qualquer tipo de ameaça ou infração a direitos do consumidor
(2).
Essa questão,
no entanto, encontra-se superada, diante do novo posicionamento do STJ,
considerando legítimo o corte no caso de inadimplemento do usuário, não
caracterizando descontinuidade do serviço essa hipótese (ver, e.g., o acórdão
proferido no REsp 363943-MG, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 10.12.03,
DJ de 01.03.04 (3)).
A única
hesitação perdura em relação aos casos em que o consumidor é pessoa jurídica de
direito público (ou prestador de serviços públicos). Em alguns julgados
encontramos um impedimento direto ao corte, baseado no argumento de que traz
repercussões sobre a comunidade dos administrados:
"ADMINISTRATIVO.
ENERGIA ELÉTRICA. CORTE DE FORNECIMENTO. MUNICÍPIO INADIMPLENTE.
IMPOSSIBILIDADE.
O corte de
energia elétrica em prédio do Município atinge não somente aquele ente público,
mas o próprio cidadão, porquanto a inviabilidade da utilização do prédio e a
conseqüente deficiência na prestação de serviços decorrentes, atinge
diretamente todos os munícipes.
O corte de
energia, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de
tarifa, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar
o adimplemento do débito (STJ-1ª Turma, Resp 278532-RO, rel. Min. Francisco
Falcão, j. 16.11.00, DJ de 18.12.00).
Em outro julgamento,
a Corte Superior tem entendido não poder haver corte indiscriminado de energia
elétrica, mormente quando provoca prejuízos a toda uma comunidade, pela
privação de serviços próprios da Administração e que depende desse bem para seu
funcionamento. Aqui, o direito à suspensão do serviço (corte da energia),
quando o usuário deixa de efetuar o pagamento da contraprestação ajustada, não
é em princípio refutado, até porque decorre de previsão legal. O que se procura
impedir são os resultados gravosos decorrentes do corte quando efetuado de
forma indiscriminada, assim considerado o que é realizado sem que a
concessionária tome as providências necessárias no sentido de preservar os
serviços essenciais à população. Desde que essas precauções sejam tomadas, o corte
pode ser efetivado. Bem expressivo dessa última corrente é o aresto abaixo
ementado:
"ADMINISTRATIVO.
RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. MUNICÍPIO INADIMPLENTE.
SUSPENSÃO DO SERVIÇO. PREVISÃO LEGAL. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
1. A
interrupção no fornecimento de energia por inadimplemento do usuário, conforme
previsto no art. 6o., par. 3o., II, da Lei n. 8.987/95, não configura
descontinuidade na prestação do serviço para fins de aplicação dos arts. 22 e
42 do CDC.
2. Demonstrado
nos autos que a fornecedora, ao suspender o serviço de energia elétrica, teve o
cuidado de preservar os serviços essenciais do município, não há que se cogitar
tenha o corte afetado os interesses imediatos da comunidade local.
3. Destoa do
arcabouço lógico-jurídico que informa o princípio da proporcionalidade o
entendimento de que, a pretexto de resguardar os interesses do usuário
inadimplente, cria embaraços às ações implementadas pela fornecedora de energia
elétrica com o propósito de favorecer o recebimento de seus créditos,
prejudicando, em maior escala, aqueles que pagam em dia as suas obrigações.
4. Se a
empresa deixa de ser, devida e tempestivamente, ressarcida dos custos inerentes
às suas atividades, não há como fazer com que os serviços permaneçam sendo
prestados com o mesmo padrão de qualidade (STJ-2a. Turma, Resp 302620-SP, rel.
p/ o acórdão Min. João Otávio de Noronha, j. 11.11.03, DJ 16.02.04).
Como se
observa dos termos da ementa, e conforme consta do voto e relatório que
integram o acórdão acima transcrito, a empresa concessionária teve o cuidado,
ao promover a interrupção no fornecimento de energia elétrica, de preservar os
serviços essenciais do município, limitando o corte apenas a alguns prédios da
administração pública, resguardando, desse modo, os interesses imediatos da
comunidade local. Essa foi a circunstância decisiva para o reconhecimento da
legitimidade do corte.
Da leitura da
ementa desse julgado, de certa maneira, sobressai a idéia de que a adoção de
medidas para amenizar os efeitos do corte não é somente obrigação do Poder
Público local ou do Executivo Estadual, mas também da própria concessionária
(fornecedora de energia elétrica). Por força do art. 17 da Lei 9.427/96, a
suspensão do fornecimento a consumidor que preste serviço público está
subordinada unicamente à comunicação prévia (15 dias de antecedência) ao Poder
Público local ou ao Poder Executivo Estadual, que "adotará as providências
administrativas para preservar a população dos efeitos da suspensão do
fornecimento de energia elétrica" (4). O julgado empresta um novo sentido
a essa disposição, na medida em que considera a ação direta da própria
concessionária, na preservação da energia aos serviços públicos prestados pelo
órgão municipal ou estadual inadimplente.
Um outro
julgado podemos incluir nessa segunda corrente, que admite a suspensão (ainda
que subordinada a certas condições) do serviço prestado a pessoa jurídica de
direito público ou consumidor que preste serviço público. Trata-se de acórdão
da relatoria do Ministro Franciulli Neto, onde o eminente relator destacou
expressamente sua visão de que, em razão de expressa previsão normativa, é
possível a suspensão do fornecimento de energia elétrica ao usuário que deixa
de efetuar o pagamento, depois de regularmente notificado. O impedimento ao
corte, no entanto, ficou decidido em função de circunstância particular
relacionada ao caso em julgamento, configurada na existência de uma pluralidade
de contratos com diversos órgãos municipais, sendo inviável a suspensão de
todos eles na ausência de meios para identificar aquele em que ocorreu a
efetiva impontualidade. Ao fundamentar o voto do acórdão, o relator destacou
que o corte alcançaria tanto os serviços próprios da Administração quanto a
iluminação pública do Município. A ementa desse julgado está vazada nos
seguintes termos:
"RECURSO
ESPECIAL - ALÍNEAS "A" e "C" - ADMINISTRATIVO - ENERGIA
ELÉTRICA - CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO - FALTA DE PAGAMENTO - SUSPENSÃO DO
SERVIÇO - NECESSÁRIA INDIVIDUALIZAÇÃO DAS UNIDADES CONSUMIDORAS INADIMPLENTES -
CORTE INDISCRIMINADO DA ENERGIA ELÉTRICA - IMPOSSIBILIDADE.
Há expressa
previsão normativa no sentido da possibilidade de suspensão do fornecimento de
energia elétrica ao usuário que deixa de efetuar a contraprestação ajustada,
mesmo quando se tratar de consumidor que preste serviço público (art. 6º, par.
3º, da Lei n. 8.987/95 e art. 17 da Lei n. 9.427/96).
Na hipótese
vertente, contudo, verifica-se que, embora exista débito da Municipalidade para
a concessionária, a autorizar, em princípio, o corte, a medida ocorreria de
forma a prejudicar toda a população da localidade. Ilegal, portanto, a
interrupção indiscriminada do serviço, tanto para os serviços próprios da
Administração, quanto no que se refere à iluminação pública do Município,
porque não especificada na demanda a que unidades consumidoras se refere o
débito.
Ausência de
similitude fática entre os acórdãos confrontados (STJ-2ª Turma, Resp 400909-RS,
rel. Min. Franciulli Netto, j. 24.06.03, DJ 15.09.03) (grifo nosso).
Diante desse
conjunto jurisprudencial, podemos assinalar as seguintes conclusões:
a) o direito
da concessionária de suspender o fornecimento de energia elétrica não é
absoluto, estando subordinado ao interesse da coletividade, nos termos do art.
6º, II, da Lei n. 8.987/95, que configura uma restrição legal à exceptio non
adimpleti contractus;
b) o interesse
da coletividade pode ficar revelado sempre que o corte implicar em deixar sem
energia ruas, escolas, hospitais, repartições públicas ou quaisquer unidades do
serviço público que, efetivamente, não podem deixar de funcionar;
c) nos casos
em que ficar configurado o interesse da coletividade, deve o credor
(concessionária de energia elétrica) buscar a satisfação de seu crédito pelos
meios executivos convencionais ou pela via da negociação;
d) o art. 17
da Lei n. 9.427/96 (Lei das concessões do setor de energia elétrica) deve ser
interpretado em combinação com o art. 6º, par. 3º, da Lei n. 8.987/95 (Lei
Geral das Concessões), de maneira a se conceber que o corte de energia a
consumidor prestador de serviço público está condicionado ao interesse da
coletividade em preservar o funcionamento de unidades essenciais;
e) em se
tratando de consumidor pessoa privada (física ou jurídica) não prestadora de
serviço público, a concessionária tem direito de proceder à suspensão diante de
inadimplemento, sendo suficiente a notificação prévia, pois em tal situação o
corte (em regra) não tem relação com nenhum direto interesse da coletividade;
f) o interesse
da coletividade, que impede a suspensão do fornecimento de energia, pode
excepcionalmente ficar configurado mesmo na hipótese de consumidor privado
(pessoa física ou jurídica), caracterizado por circunstâncias peculiares que o
distinguem da comunidade dos usuários (5).
Essas são, em
linhas gerais, as premissas que se podem extrair dos dispositivos legais
relativos ao corte de energia elétrica a consumidor inadimplente e da análise
deles que o STJ - que tem a missão institucional de uniformizar a interpretação
da legislação federal - tem feito até o momento.
Outra questão,
no entanto, tem aparecido nesses embates entre consumidores e concessionárias
de energia elétrica, esta de ordem processual. É que os usuários têm vindo a
juízo, buscando o impedimento ao corte, pela via do mandado de segurança. A
concepção é a de que o dirigente da empresa concessionária desses serviços está
enquadrado no conceito de autoridade pública, para fins de impetração da
segurança.
Nesse ponto,
em particular, temos algumas considerações a fazer.
Como se sabe,
as concessionárias de serviço público podem ser de direito público ou de
direito privado (6). Adquirem o direito à prestação do serviço público de
distribuição de energia elétrica quando vencem licitação aberta pela
Administração para o fim de outorga desse serviço. O vencedor da licitação
celebra com o Poder público um contrato de concessão de serviço público. Esse
contrato de concessão tem a natureza de contrato tipicamente administrativo,
regido, portanto, pelas normas do Direito Público. Mas, paralelamente a ele, o
concessionário estabelece, por força da execução dos serviços concedidos,
outros contratos com os usuários finais dos serviços (consumidores), estes de
natureza privada (7). Assim, o serviço prestado em forma de concessão pública
dá lugar a duas relações contratuais distintas: de um lado, a que envolve o
próprio contrato de concessão, em que são partes o Poder concedente e a
concessionária, relação esta submetida ao regime de direito público, e, de
outro, o liame contratual que se estabelece entre o usuário e a concessionária,
sujeito ao direito privado.
A própria Lei
das Concessões (Lei 8.987/95) deixa entrever que, à exceção da relação direta
entre o Poder concedente e o concessionário (contrato administrativo), todas as
demais relações contratuais que este termine envolvido por conta da execução do
contrato de concessão são regidas pelo direito privado. Com efeito, prescreve o
parágrafo único do seu artigo 31:
"As
contratações, inclusive de mão-de-obra, feitas pela concessionária serão
regidas pelas disposições de direito privado e pela legislação trabalhista, não
se estabelecendo qualquer relação entre os terceiros contratados pela
concessionária e o poder concedente.
O contrato de
fornecimento de energia elétrica, já que se estabelece entre o concessionário e
outro particular (usuário final), é essencialmente privado, apenas com os
condicionamentos decorrentes do poder regulamentar que Administração exerce
sobre a atividade transferida. O poder regulamentar da Administração fica
revelado pela circunstância de que: a) os reajustes e revisões das tarifas dos
serviços obedecem a prescrições legais e parâmetros e diretrizes específicas
determinadas pelo órgão fiscalizador e regulador competente; b) o Poder
concedente pode fiscalizar permanentemente a prestação do serviço concedido,
aplicar penalidades ao concessionário e intervir na prestação do serviço,
dentre outros poderes (art. 29 da Lei 8.987/95).
A presença de
uma regulamentação do Poder Público sobre a prestação do serviço concedido não
implica em desnaturar a relação contratual do concessionário com o usuário.
Mesmo quando privados, estabelecidos entre particulares, certos contratos
sofrem, em diferentes graus, a influência do poder regulamentar estatal,
limitando a liberdade contratual das partes. Assim ocorre em função do
interesse social que acompanha esses contratos, dos quais são exemplos
marcantes os contratos de trabalho, os contratos de locação e os contratos de
consumo em geral (contratos de planos de saúde, de prestação de serviços
educacionais, de serviços de telefonia), só para citar alguns, que recebem uma
estrita regulamentação legal, limitando a liberdade dos contraentes a um campo
bastante reduzido. Tal fenômeno, apropriadamente chamado de dirigismo
contratual, surgiu em contraposição ao princípio clássico da plena autonomia da
vontade dos contratantes, que já não oferecia respostas satisfatórias à nova
realidade social pós-revolução industrial.
Ainda, é
importante registrar que a eventual presença de uma pessoa jurídica de direito
público, na condição de usuário dos serviços de fornecimento de energia
elétrica, também não desnatura a natureza privada do contrato. Nessa hipótese,
ela assume posição de simples consumidor, destinatário final dos serviços
contratados em relação (privada) de consumo (8). Como se sabe, nem sempre uma
pessoa jurídica de direito público celebra contratos tipicamente administrativos.
Em boa parte de suas relações contratuais, vincula-se despida da potestade
estatal, do poder de império que caracteriza a sua atuação, igualando-se ao
particular. É o que ocorre quando adquire bens e serviços de consumo, a exemplo
de energia elétrica, posicionando-se em relação ao concessionário (fornecedor)
como simples consumidor.
Em sendo
privada a relação contratual entre o concessionário e o usuário, é admissível
por este último o manuseio do remédio constitucional do mandado de segurança,
para dirimir controvérsia entre eles acerca da prestação do serviço de
fornecimento de energia elétrica? Contra a prática de atos do concessionário
(ou seu representante), o consumidor pode se valer de instrumento próprio para
invalidar atos de autoridade pública? Especificamente contra o corte de energia
elétrica, pode o consumidor impetrar segurança visando à invalidação do ato?
A resposta a
essas perguntas passa necessariamente pelo exame da legitimatio ad causam do
dirigente de empresa concessionária do serviço de energia elétrica para o
mandado de segurança.
Em princípio,
como delegatário do serviço público, os atos do concessionário são passíveis de
mandado de segurança, a teor da Súmula 510 do STF, verbis:
"Praticado
o ato por autoridade, no exercício de competência delegada, contra ela cabe o
mandado de segurança ou a medida judicial" (grifo nosso).
Essa súmula
(9) foi editada em torno da interpretação o parágrafo 1o. do art. 1o. da Lei
1.533, de 31.12.51 (Lei do Mandado de Segurança), que já indicava a
legitimidade passiva do delegatário do serviço público, ao dizer que
"consideram-se autoridades, para os efeitos desta lei, os representantes
ou administradores das entidades autárquicas e das pessoas naturais ou
jurídicas com funções delegadas do Poder Público, somente no que entender com
essas funções" (10).
Sabendo-se que
a concessão é espécie da delegação de serviços públicos (11), o concessionário
se apresenta, para efeitos do mandado de segurança, como autoridade pública.
Mas é imperioso ressaltar que nem todos os atos que pratica são compreendidos
na delegação pública (ao menos para fins do mandado de segurança). No
desempenho de suas atividades, o concessionário pratica atos outros, não
propriamente relacionados com a delegação. É da análise da natureza do ato que
se pode aferir se o concessionário está investido (ou não) na qualidade de
autoridade pública por delegação.
A
jurisprudência antiga já exigia essa diferenciação entre os atos do delegado do
serviço público, de maneira a firmar sua (i)legitimidade para a ação de
segurança, como indica o aresto abaixo ementado:
"Não cabe
mandado de segurança contra ato de dirigente de empresa pública, que tem
personalidade de direito privado, salvo quando praticado no exercício de função
delegada do poder público" (RTFR 126/361).
É preciso
distinguir os atos do delegado (concessionário) que importem em atos de polícia
daqueles que constituem meramente atos de gestão. Aquelas práticas que
correspondam a uma ação administrativa de efetuar condicionamentos (legalmente
previstos) à propriedade das pessoas (os consumidores finais dos serviços
delegados), tais como atos de fiscalização (como inspeções, vistorias e exames)
e atos repressivos (aplicação de multas, embargos, interdição de atividade,
apreensões), decorrem do poder de polícia público (12). Exclusivamente esses
atos devem ser entendidos, para fins de mandado de segurança, como incluídos
nas atividades delegadas do concessionário de energia elétrica (do serviço de
distribuição), de forma a dar interpretação correta à parte final do parágrafo
1o. do art. 1o. da Lei 1.533/51, que ressalva a utilização do mandamus
"somente no que entender com essas funções [delegadas]". Todos os
demais atos do concessionário que não sejam atos jurídicos expressivos de poder
público (13) devem ser atacados pelas vias procedimentais comuns (a exemplo das
medidas cautelares e outros tipos de ações). Assim, cobranças de débito (aos
consumidores) e todos os atos que o concessionário esteja legitimado a fazer,
não porque imbuído do poder de polícia, mas por decorrência de direitos
originados de contratos celebrados com terceiros, estranhos à relação
contratual de concessão (do serviço público), configuram apenas atos de gestão
da sua atividade, não passíveis de impugnação pela via mandamental.
Essa
diferenciação entre atos de polícia executados pelo concessionário, estes
passíveis de sanação pela via do mandado de segurança, e os atos de mera gestão
negocial é importante para evitar a confusão que atualmente domina as unidades
da Justiça dos Estados. Para evitar o corte de energia elétrica em suas
residências e estabelecimentos comerciais, consumidores inadimplentes se
socorrem do mandado de segurança. Nas Capitais, isso ainda causa maior
confusão, pois as ações de segurança são distribuídas para as varas cíveis, que
somente atuam na esfera dos litígios entre particulares, e o mandado de
segurança, por sua natureza específica de solucionar conflitos na esfera do
direito público, em princípio só poderia ser ajuizado nas varas dos feitos da
Fazenda Pública. A suspensão do fornecimento de energia, em razão do
inadimplemento do usuário, é ato de mera gestão negocial, não podendo ser
combatido pela via mandamental. O direito do concessionário ao corte (suspensão
do serviço), nessa hipótese, não decorre do poder de polícia que lhe é
transferido pelo Estado, mas tem origem no contrato (privado) que assina com o
particular (consumidor), por força da exceptio non adimpleti contractus, que
autoriza a qualquer contratante deixar de adimplir sua obrigação quando o outro
deixa de cumprir com a sua própria prestação. Nesse sentido, qualquer pretensão
de impedimento ao corte deve ser veiculada por meio de procedimentos cautelares
ou por via de pedido de tutela antecipada de obrigação de (não) fazer, ou
qualquer outro expediente processual que se mostre hábil a solucionar os
interesses particulares em conflito; nunca pela via estreita e especial da ação
de mandado de segurança.
Essa parece
ser uma conclusão de fácil aceitação, mas como explicar, então, que as cortes
judiciárias, inclusive o Superior Tribunal de Justiça, ainda continuem
admitindo o manejo do mandado de segurança por consumidores inadimplentes? Isso
em parte pode ser explicado na circunstância de a jurisprudência ter se firmado
anteriormente ao processo de privatização das empresas concessionárias de
energia elétrica. Como se sabe, a fase mais intensa do processo de privatização
de empresas estatais no Brasil teve início durante a primeira gestão de
Fernando Henrique Cardoso, no ano de 1995, quando foram incluídas empresas
públicas não só da área de eletricidade, mas também de mineração, ferrovias,
portos, rodovias, telecomunicações, água e esgotos e bancos (14). Antes da
privatização, as empresas concessionárias de energia elétrica assumiam a forma
de sociedades de economia mista, controladas pelos respectivos Estados-membros
da Federação. A aceitação do cabimento de mandado de segurança contra ato de
dirigente de concessionária de energia elétrica adquiriu força nesse contexto,
em razão de que a sociedade de economia mista tem natureza (para)estatal e,
portanto, seu dirigente pode ser considerado autoridade pública.
No âmbito do
STJ, um julgado considerado verdadeiro leading case, por ter influenciado a
formação da jurisprudência a partir dele, foi firmado em maio de 1996, sob a
relatoria do Ministro Demócrito Reinaldo, assim ementado:
"PROCESSUAL
CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO PRATICADO POR SOCIEDADE DE ECONOMIA
MISTA. POSSIBILIDADE. CONCEITO DE AUTORIDADE - ART. 1O. DA LEI N. 1.533/51.
O conceito de
autoridade para justificar a impetração do "mandamus" é o mais amplo
possível e, por isso mesmo, a lei ajuntou-lhe (ao mesmo conceito) o expletivo:
"seja de que natureza for".
Os princípios
constitucionais a que está sujeita a administração direta e indireta (incluídas
as sociedades de economia mista) impõem a submissão da contratação de obras e
serviços públicos ao procedimento da licitação, instituto juridicizado como de
direito público. Os atos das entidades da administração (direta ou indireta)
constituem atividade de direito público, atos de autoridade sujeitos ao desafio
pela via da ação de segurança. "In casu", a companhia estadual de
energia elétrica - CEEE - na medida em que assumiu o encargo de realizar a
licitação pública para efeito de selecionar pessoas ou entidades para a
realização de obras e serviços do maior interesse da sociedade praticou atos
administrativos, atos de autoridade, já que regidos por normas de direito
público e que não poderão permanecer forros à impugnação através do mandado de
segurança" (15).
Nesse julgado
acima transcrito, a Corte Superior foi instada a se manifestar sobre o
cabimento (ou não) do mandado de segurança para impugnar ato da diretoria
coletiva de uma companhia de energia elétrica, que julgou a fase de
concorrência pública, no processo licitatório por ela aberto, para construção
de uma usina hidráulica. A discussão era se tal decisão constituía ato
administrativo, emanado de autoridade pública, ou mero ato de gestão, regido
por regras do direito privado, e por isso mesmo impossível de impugnação pela
via da segurança. O Ministro Demócrito Reinaldo, com a prudência que sempre
caracterizou sua atuação judicante, destacou que os atos praticados pela
Administração indireta, nos procedimentos licitatórios, são atos
administrativos e, portanto, atos de autoridade vinculados ao direito público.
Recorrendo ao art. 37, XXI, da CF, que exige a submissão, mesmo da
Administração indireta ou fundacional, ao processo de licitação pública na
contratação de obras e serviços, concluiu que "é instituto juridicizado [o
processo de licitação] como de direito público. Os atos das entidades da
Administração, neste campo, são atos de direito público, atos essencialmente
administrativos, atos de autoridade". No seu voto, o Ministro Demócrito
Reinaldo não só não estendeu o uso do mandado de segurança além do campo dos
atos administrativos em procedimentos licitatórios, como teve a preocupação de
destacar o relevante interesse público envolvido no caso, já que o ato da
sociedade de economia mista importava na "construção de obras do maior
interesse da sociedade, dado o vulto dos dinheiros públicos nelas empregados e
o bem estar que ensejam à coletividade" e, portanto, não se poderia deixar
esses atos "imunes à fiscalização da própria sociedade, pela via daqueles
remédios judiciais" (16).
O problema é
que, ao admitir o mandado de segurança contra ato de dirigentes de sociedade de
economia mista, esse julgamento terminou por influenciar outro subseqüente,
também da mesma Turma do STJ (a 1a. Turma), onde se discutiu especificamente se
o corte de energia elétrica é ato (delegado) de autoridade pública, sujeito ao
mandado de segurança. O relator, Min. José Delgado, terminou por concluir que
sim, assentando na ementa do acórdão (17):
"RECURSO
ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. ATO PRATICADO POR DIRIGENTE
DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. CORTE DE ENERGIA ELÉTRICA. POSSIBILIDADE DE
IMPUGNAÇÃO PELA VIA MANDAMENTAL. RECURSO PROVIDO.
1. É
impugnável, por Mandado de Segurança, o ato de autoridade dirigente de
Sociedade de Economia Mista, quando praticado com abuso e de forma ilegal.
"In
casu", trata-se de ato do Superintendente de Distribuição Norte das
Centrais Elétricas de Goiás (CELG) e seu representante local, que visando a
compelir o recorrente ao pagamento de contas em atraso, determinou a supressão
do fornecimento de energia elétrica em outras unidades ao mesmo pertencentes,
que estavam com o seu pagamento em dia, constituindo tal prática, medida
passível de impugnação pela via mandamental.
2. Tem-se,
atualmente, procurado emprestar ao vocábulo autoridade o conceito mais amplo
possível para justificar a impetração do Manado de Segurança, tendo a lei
adicionado-lhe o expletivo "seja de que natureza for" (REsp 84. 082/RS, rel. Min. Demócrito
Reinaldo)" (18).
Esse último
julgado, embora da relatoria de um dos mais eminentes juristas que já
integraram o STJ, não emprestou a melhor interpretação quando se trata de
definir a natureza do ato do delegado do serviço público, para fins de mandado
de segurança (19). A posição nele expressa, admitindo o mandado de segurança
como via de impugnação do corte de energia elétrica (com fundamento no
inadimplemento) tem perdurado na 1a. Turma daquela Corte (20), bem como tem
deitado influência sobre outros órgãos fracionários do tribunal (21).
Esses
julgados, como se disse, talvez ainda influenciem advogados e o próprio
Judiciário, levando-os a admitir a impetração de mandados de segurança contra o
ato de corte (suspensão do fornecimento) de energia elétrica. Mas é preciso
alertá-los para a inconciliável circunstância de que a construção dessa
jurisprudência apoiou-se em premissas e situações completamente distintas da
atual, quando as companhias distribuidoras de energia elétrica ainda
permaneciam sob a égide estatal, adotando a forma de sociedades de economia
mista sob o controle dos Estados-membros da Federação. Em razão do subseqüente
processo de privatização, com o controle dessas companhias passando para o
setor privado, uma nova jurisprudência há de ser erigida em torno da matéria.
Ato de dirigente de empresa privada concessionária de energia elétrica não pode
ser considerado como delegado do Poder estatal, a não ser naquilo que expressa
verdadeiro ato jurídico expressivo de autoridade pública, o que não é o caso do
simples corte (suspensão) do fornecimento de energia elétrica a usuário
inadimplente com suas obrigações contratuais.
Esse novo
caminho jurisprudencial já começou a ser traçado dentro da própria 1a. Turma do
STJ, num dos seus mais recentes pronunciamentos, conduzido por um dos seus mais
modernos integrantes, o Min. Teori Albino Zavascki, que afastou a incidência do
mandado de segurança para se atacar ato de empresa privada concessionária de
energia elétrica. O relator original, Min. Francisco Falcão, havia fundamentado
seu voto apoiando-se nos dois outros precedentes relatados pelo Min. José
Delgado (REsp 174085-GO e Resp 430783/MT), mas foi vencido diante da
argumentação do Min. Teori Albino Zawascki no sentido de que o ato de empresa
privada de energia elétrica, ainda que formado em procedimento licitatório, é
ato de mera gestão, de interesse interno e particular da empresa, não
correspondendo a ato de autoridade pública para fins de mandado de segurança. A
ementa desse mais novo julgado está assim expressa:
"MANDADO
DE SEGURANÇA. ATO DE EMPRESA PRIVADA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO.
DESCABIMENTO.
1. As empresas
privadas, embora concessionárias de serviço público, não estão obrigadas a
submeter suas compras ou a contratação de serviços ao regime de licitação. Se
os submetem, o fazem por interesse próprio, mas os atos assim praticados não se
transformam em ato administrativo, e o contrato que daí resulta não será um
contrato de direito público. Continua, como é da sua natureza, um simples ato
particular de gestão, típico ato jurídico privado. Não sendo ato de autoridade,
não há como supor-se presente a viabilidade de atacá-lo pela via do mandado de
segurança.
2. Recurso
especial a que se nega provimento. (RESP nº 429849-RS, DJ. 10/11/2003, pp.
159)".
Essa parece
ser a tendência doravante no STJ, de definir que uma relação obrigacional
bilateral privada, consistente no fornecimento de determinado serviço e a
respectiva contraprestação, não envolve interesse da Administração pública (nem
mesmo indireto), já que o fornecedor, nesse caso, nem mais é uma empresa com
participação do capital estatal. Como muita propriedade, e nesse sentido,
explicou o Min. Teori Zavascki que "...as empresas privadas, embora
concessionárias de serviço público, não estão obrigadas a submeter suas compras
ou a contratação de serviços ao regime de licitação, como ocorre com a administração
pública. Se os submetem, o fazem por interesse próprio, apenas como método de
melhor gerenciar seus negócios. Portanto, não se pode ver, nessa espécie de
atos de concessionárias (que sequer têm a participação do capital estatal), um
ato de autoridade, nem mesmo delegada. O contrato que surge dessa licitação não
se transforma em contrato de Direito Público e a forma de selecionar o
contratado não se transmuta em procedimento ou ato administrativo. Continua,
como é de sua natureza, um simples ato particular de gestão, típico do ato
jurídico privado. Não sendo ato de autoridade, não há como supor-se presente a
viabilidade de atacá-lo pela via do mandado de segurança" (grifo nosso).
Essa mais nova
vertente da jurisprudência do STJ, como se disse, tende a prosperar, evitando
que questões relacionadas ao corte de energia de usuário (consumidor)
inadimplente sejam veiculadas pela via imprópria da ação mandamental,
preterindo-se os procedimentos cautelares comuns, estes sim admissíveis quando
se trata de resolver situações contratuais e toda espécie de relações jurídicas
de ordem privada.
Diga-se, por
fim, que a preferência pelo uso dos procedimentos cautelares, atende também a
uma razão de ordem prática. Explico: como eram pessoas jurídicas (sociedades de
economia mista) sob o controle (indireto) dos Estados que prestavam os serviços
públicos de fornecimento de energia elétrica, os mandados de segurança contra
atos de seus dirigentes costumavam ser resolvidos na Justiça comum.
Desaparecida a ligação com os Estados-membros, as impetrações de ações de
segurança têm que recair obrigatoriamente na Justiça Federal, em virtude de o
Poder concedente (dos serviços de distribuição de energia elétrica) ser a União
Federal (22). Ora, se se concebe que o ato que corta o fornecimento de energia
elétrica é ato administrativo, atacável via mandado de segurança, a autoridade
pública nesse caso age por delegação do Poder Público Federal (a União
Federal), sujeitando-se, por conseguinte, à competência da Justiça Federal (23).
Para evitar que disputas (causas) meramente privadas, sem qualquer interesse
direto da União ou do seu órgão regulador (a ANEEL), deixem o seu leito natural
- que é a Justiça estadual (as varas cíveis) - para ter lugar no âmbito dos
órgãos da Justiça Federal, é desaconselhável a jurisprudência que admite o
manuseio do mandado de segurança.
A continuar-se
entendendo cabível o mandado de segurança contra o corte de energia elétrica e,
por conseqüência, o seu processamento junto aos órgãos da Justiça Federal,
simplesmente viola-se o comando do art. 2o. da Lei 1.533/51 (Lei do Mandado de
Segurança), que somente considera autoridade federal, para definição de
competência da Justiça Federal, quando "as conseqüências de ordem
patrimonial do ato contra o qual se requer o mandado houverem de ser suportadas
pela União Federal ou pelas entidades autárquicas federais". Pelo corte
(suspensão) de energia, exclusivamente responde o concessionário e, sendo
constatada a abusividade, e concedida a segurança, somente ele (pessoa jurídica
de direito privado) arca com as conseqüências desse ato, não refletindo, ainda
que indiretamente, sobre o Poder concedente (a União Federal). Não há,
portanto, como se justificar o cabimento da segurança nesses casos e seu
processamento pela Justiça Federal. Ainda que essa regra (art. 2o. da Lei
1.533/51) pudesse ser temperada, uma questão de política judiciária mesmo deve
funcionar não incentivando a que causas sem qualquer interesse público (da
União) afluam no leito da Justiça Federal.
Acreditamos
firmemente que já se esboça uma tendência no sentido de revisar a
jurisprudência que admite o manuseio do mandado de segurança contra ato de
suspensão de energia elétrica, praticado por concessionária privada de serviços
públicos. Mesmo no caso de corte fundado na prática de atos fraudulentos pelo
consumidor (usuário), temos que, ainda assim, o ato é de ser entendido como
resolução de interesses meramente privados. Quando o representante da
concessionária serve-se de auto de infração, retira o medidor de eletricidade e
nele faz perícia, concluindo pela ocorrência de fraude, esses atos não
representam a consecução de nenhum interesse público, eis que objetivam em
última análise apenas fundamentar a exigência do pagamento da (eventual) dívida
(correspondente ao valor estimado do consumo desviado) e justificar o não
cumprimento de sua própria obrigação contratual (24). Nesse ponto, nunca é
demais esquecer a lição de CASTRO NUNES, sobre o descabimento do mandado de
segurança para se resolver relações e interesses privados:
"A essa
ordem de relações jurídicas é alheio o mandado de segurança, impróprio para
resolver situações contratuais, assegurar pagamento de dívidas e, de um modo
geral, dirimir questões de direito privado. Nesta conformidade está a jurisprudência
da Corte Suprema e das Cortes locais. O que se resolve pelo mandado de
segurança é relação de direito público, definido pelo dever legal da autoridade
e pelo direito correlato de se lhe exigir o cumprimento desse dever" (Do
M. de Segurança, págs. 76/77).
Quanto mais se
puder interpretar que o ato (de corte de energia) é de mera gestão, praticado
pela concessionária por sua própria conta e risco, evitando, assim, que o
conflito venha a ser apreciado por órgãos da Justiça Federal, mais se atenderá ao
sentido de uma política judiciária voltada a preservá-la rigidamente para a
resolução de demandas que envolvam atos e interesses públicos (da União).
Notas:
(1) O par. 3o.
do art. 6o. da Lei 8.987/95 tem a seguinte redação:
"§ 3o Não
se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de
emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada
por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por
inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade".
(2) Advertimos
para a circunstância de que usamos indistintamente os conceitos de consumidor e
usuário. É certo que este último termo (usuário) deve ser utilizado sempre que
se faça referência ao consumidor de serviços públicos, até porque é o termo
técnico que a Lei (8.987/95) emprega. O usuário deve ser entendido como uma
categoria específica de consumidor, aquele que faz parte da relação jurídica
contratual de serviço público. Mas essa relação contratual é uma típica relação
de consumo. Nesse sentido, divergimos do Prof. Antônio Carlos Cintra do Amaral,
para quem não se confunde o usuário do serviço público com o consumidor. Afirma
ele que "a relação contratual entre concessionária e usuário, mediante a
qual uma parte se obriga a prestar um serviço, recebendo em pagamento um preço
público (tarifa), tem como pressuposto uma outra, entre a concessionária e o
poder concedente". Por essa razão, ou seja, a existência de verdadeiros
contratos "coligados", o Poder Público (concedente) tem responsabilidade
solidária perante o usuário, "na medida em que mantém a titularidade do
serviço", diz ele ("Distinção entre usuário de serviço público e
consumidor", artigo publicado na Revista Diálogo Jurídico, n. 13,
abril/maio 2002). Com a devida vênia, o concessionário é quem tem o encargo
imediato da prestação e adequação do serviço público, respondendo pelos danos
que causar a terceiros. Como se diz na doutrina, o concessionário age em nome
próprio e por sua conta e risco, sendo perante ele que os usuários demandam em
relação ao serviço. Por outro lado, a circunstância de o art. 27 da Emenda
Constitucional n. 19/98 ter determinado ao Congresso Nacional a elaboração de
"lei de defesa dos usuários dos serviços públicos" não implica
reconhecer que o legislador pretendeu criar uma categoria estanque. A aplicação
subsidiária das normas do CDC (Lei 8.078/90) à defesa do usuário dos serviços
públicos sempre será possível, ainda que se tome de empréstimo aquelas mais
genéricas e de caráter principiológico.
(3) O que
demonstra que o Min. Humberto Gomes de Barros também mudou posição,
acompanhando a reviravolta da jurisprudência da 1ª Turma, pois antes esposava o
entendimento de que "é defeso à concessionária de energia elétrica
interromper o suprimento de força, no escopo de compelir o consumidor ao
pagamento de tarifa em atraso. O exercício arbitrário das próprias razões não
pode substituir a ação de cobrança" (REsp n. 223.778/RJ, Rel. Min.
Humberto Gomes de Barros, DJU 13.03.2000).
(4) O artigo
em questão tem a seguinte redação:
Art. 17. A
suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a
consumidor que preste serviço público ou essencial à população e cuja atividade
sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público
local ou ao Poder Executivo Estadual.
Parágrafo
único. O Poder Público que receber a comunicação adotará as providências
administrativas para preservar a população dos efeitos da suspensão do
fornecimento de energia, sem prejuízo das ações de responsabilização pela falta
de pagamento que motivou a medida.
(5) Seria o
caso, e.g., da hipótese em que o corte tivesse de recair sobre um consumidor
hipossuficiente ou pessoa jurídica vinculada a grupo de consumidores
hipossuficientes. O STJ ainda não enfrentou essa questão, mas o Min. Franciulli
Neto, ao proferir voto condutor no Resp Resp 510478-PB ( j. 10.06.03, DJ
08.09.03), ressaltou expressamente que "não será o Judiciário entretanto,
insensível relativamente às situações peculiares em que o usuário deixar de honrar
seus compromissos financeiros em razão de sua hipossuficiência, circunstância
que não se amolda ao caso em exame".
(6)Art. 2o. da
Lei 8.987/95.
(7) No regime
legal da concessão de serviço público de energia elétrica, é previsto que o
concessionário se remunere através da cobrança de um preço pago pela prestação
do serviço ao consumidor final (art. 14 da Lei 9.427/96). É a sua
contraprestação pela execução dos serviços, que resulta na necessidade de se
envolver em outras relações contratuais (de ordem privatística) com os
destinatários finais do serviço. Essa característica privatística do contrato
de fornecimento de energia tem origem, em princípio, na própria Constituição
Federal, quando admitiu a prestação de serviço público por particular, em
colaboração ao Poder Público, em regime de concessão ou permissão (art. 175).
(8) O art. 2o.
do CDC (Lei 8.078/90), ao definir consumidor, inclui também as pessoas
jurídicas adquirentes de produtos e serviços na qualidade de destinatário
final. Como a lei não restringe, é de se concluir que também as pessoas
jurídicas de direito público podem assumir a posição de consumidor em relação
contratual de consumo.
(9) A Súmula é
de 03.10.69.
(10) Redação
do par. 1o. de acordo com a Lei 9.259, de 09.01.96. Já havia sido anteriormente
alterado pela Lei 6.978, de 19.1.82, art. 12.
(11) O serviço
público delegado é aquele transferido através de ato administrativo bilateral
(concessão) ou unilateral (permissão e autorização). Trata-se de transferência
sempre de caráter temporário, podendo ser revogada, modificada ou anulada. Não
ocorre uma transferência da titularidade do serviço, mas apenas um traspasse da
execução.
(12) Há uma
discussão doutrinária sobre se a execução do poder de polícia pode ser
transferida ao particular, como acontece no caso da concessão. Para Celso
Antônio Bandeira de Mello, os atos decorrentes do poder de polícia, em
princípio, não podem ser delegados a particulares, admitindo apenas a prática
de certos atos materiais instrumentais à prática do ato jurídico de polícia
(ver Serviço Público e Poder de Polícia: concessão e delegação, Revista Diálogo
Jurídico Ano I, n. 5, agosto de 2001).
(13) Essa
expressão é utilizada por Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit.
(14) O marco
do processo de privatização no Brasil pode ser considerado no momento em que o
Governo Federal, em março de 1990 (durante, portanto, a administração Collor de
Mello), enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 155 (que se tornou a
Lei 8.031/90), contendo o que viria a ser a base legal do Programa Nacional de
Desestatização (PND). Embora o programa de privatização tivesse outros
objetivos paralelos de política macroeconômica, como o de consolidar o plano de
estabilização econômica que acabara de ser implantado e reduzir a participação
do Estado na economia como forma de atrair o capital estrangeiro, o propósito
fundamental (como não poderia deixar de ser) era o de repassar ao setor privado
a administração de empresas estatais que tinham chegado a um profundo estado de
deterioração da qualidade dos serviços oferecidos aos consumidores.
Na verdade, os
primórdios da privatização remontam às décadas de 70 e 80, mas sem a
significação do processo iniciado nos anos 90, proporcionado pela mudança na
"opinião generalizada sobre o papel do Estado no desenvolvimento
econômico". O Estado não deveria executar atividades que o setor privado
fosse plenamente capaz de realizar. Ao contrário, deveria concentrar seus
esforços em áreas como educação, saúde, segurança e regulação. Esse era o
raciocínio usado para justificar as privatizações, que se tornaram uma das
principais prioridades da nova administração e avançaram sobre setores da
indústria do aço, da petroquímica e de fertilizantes. A fase mais intensa, mais
longa e mais difícil do processo de privatização só teve início, no entanto,
durante a primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso, no ano de 1995, quando
foram incluídas empresas públicas das áreas de mineração, eletricidade,
ferrovias, portos, rodovias, telecomunicações, água e esgotos e bancos.
(15) 1a. Turma
do STJ, Resp n. 84.082-RS, j. 23.05.96, DJU 23.05.96.
(16) Note-se,
portanto, que, no julgado acima, estavam envolvidos a preservação do patrimônio
público e dos princípios da moralidade e impessoalidade administrativas, daí o
cabimento do mandado de segurança como via de impugnação de atos de dirigentes
de sociedade de economia mista.
(17) REsp 174085-GO, j. 18.08.98, DJ
21.09.98. Nesse acórdão, o relator apenas acrescentou que o dirigente da
companhia de eletricidade (sociedade de economia mista) "agiu em
cumprimento de determinação de legislação específica do setor de energia
elétrica, através do poder concedente, Departamento Nacional de Águas e Energia
Elétrica, contida na Portaria DNAEE n. 22/86, o que demonstra que praticou o
ato impugnado no exercício de função delegada pelo Poder Público".
(18)
Observe-se que, na parte final da ementa, o julgado repete, ipsis literis,
trecho do acórdão anterior, da relatoria do Min. Demócrito Reinaldo (REsp
84.082-RS).
(19) Reformou
acórdão da 2a. Câmara Cível do TJ de Goiás, que, no nosso entender, tinha
atribuído melhor solução a essa questão, assim ementado:
Mandado de
segurança. Sociedade de Economia Mista. Ato de gestão.
As sociedades
de economia mista podem agir, tanto como entidades públicas, gerindo serviços
públicos, quanto como entidades privadas, editando atos de direito privado.
Assim é que, evidenciado que o ato por ela praticado - corte de energia
elétrica -, foi de mera gestão, não podendo ser tido como de mera autoridade,
não pode o mesmo ser atacado por mandado de segurança".
(20) No Resp
430783/MT, também da relatoria do Min. José Delgado, julgado em 17.09.02 (DJ
28.10.02), a Turma manteve o mesmo posicionamento. Nesse caso, a companhia de
energia elétrica também era uma sociedade de economia mista.
(21) No
julgamento do AGA 248297-SE, tendo como relatora a Ministra Nancy Andrighi, a
2a. Turma acolheu a tese de que cabe mandado de segurança contra o corte de
energia elétrica. A relatora, em seu voto, utilizou como precedente o REsp
174.085-GO, relatado pelo Min. José Delgado.
(22) Compete
privativamente à União Federal explorar diretamente ou mediante autorização ou
concessão os serviços de instalação de energia elétrica (art. 21, XII, d, da
Constituição Federal).
(23) São
inúmeros os acórdãos recentes que estão dando pela competência da Justiça
Federal, para julgar mandados de segurança impetrados contra o corte de energia
elétrica. O entendimento é o de que "conforme o art. 109, VIII, da
Constituição, compete à Justiça Federal processar e julgar mandados de
segurança contra ato de autoridade federal, considerando-se como tal também o
agente de entidade particular quanto a atos praticados no exercício de função
delegada" (CC 37912-RS, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 27.08.03, DJ
15.09.03. No mesmo sentido: CC 38875/RS, rel. Min. Luiz Fux, j. 08.10.03, DJ 17.11.03. 1a.
Seção; CC 39358-RS, rel. Min. Castro Meira, j. 24.09.03, DJ 20.10.03). É
importante destacar que esses julgados não adotam diretamente a tese de que o
corte de energia elétrica é ato de autoridade pública e, portanto, sujeito ao
mandado de segurança. Eles apenas destacaram a competência para julgar esses
mandados de segurança. Como destacou o Min. Teori Zavascki ao votar no CC
37912-RS - numa clara indicação de manter-se fiel ao seu pensamento de que não
cabe mandado de segurança nessas hipóteses, antes esposado no 429849-RS -,
"se o ato atacado é ou não ato típico de autoridade ou ato de mera gestão,
é matéria que diz com a admissibilidade do mandado de segurança, e não com a
competência para julgá-lo". Nesses conflitos de competência que têm sido
julgados pelo STJ, tem-se mantido a competência da Justiça Federal quando o
Juiz Federal do grau inferior se declara competente, privilegiando-se o
enunciado da Súmula 60 do extinto TFR, que prediz: "Compete à Justiça
Federal decidir da admissibilidade de mandado de segurança impetrado contra
atos de dirigentes de pessoas jurídicas privadas, ao argumento de estarem
agindo por delegação do poder público federal".
(24) Ainda que
essas ações sejam amparadas na Portaria n. 222/87 do antigo DNAEE.
retirado de: http://www.infojus.com.br/webnews/noticia.php?id_noticia=2162&