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A
IMPOSSIBILIDADE DE PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL MERCÊ DA
INEXISTÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO LEGAL DO ARTIGO 5, INCISO LXVII DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL
Estudante da Universidade Ibirapuera – 8º semestre,
I – A
inexistência de regulamentação do artigo 5º, LXVII da CF
Hodiernamente, a
prisão civil do depositário judicial infiel é tema de grande perplexidade
jurídica. Isto porque, a Constituição Federal, por meio do artigo 5º, inciso
LXVII, parte final, prevê a possibilidade de sua prisão civil, mas, não há
qualquer regulamentação infraconstitucional nesse sentido, tornado-a
ineficaz.
Os
constitucionalistas admitem a existência de três classificações de normas
constitucionais. São elas as normas de eficácia plena, de eficácia limitada e
de eficácia contida. Interessa ao presente estudo apenas esta última
classificação.
É que as normas
de eficácia plena têm o condão de ser aplicadas imediatamente de maneira
integral, posto que todos os elementos necessários à produção de seus efeitos
são encontrados em si mesma.
Já as normas de
eficácia contida são aquelas de aplicabilidade imediata, mas não integral.
Ainda que todos os elementos necessários à sua aplicação estejam reunidos no
texto normativo constitucional, necessitam de restrição e/ou regulamentação de
seu campo de incidência mediante manifestação do legislador
infraconstitucional. Isto para que adquira eficácia plena.
Chama-se Lei
Complementar o texto legal destinado à regulamentação dos textos
constitucionais. Destarte, quando a Constituição cria situações que exigem o
estabelecimento de condições de aquisição ou exercício de direitos, a
Legislatura tem de estatuir os requisitos e a forma de efetivação, baixando o
diploma regulamentar[1][1].Leda Pereira Mota e Celso Spitzcovsky notam que se
inserem nessa classificação as garantias individuais elencadas no artigo 5º da
Constituição Federal[2][2].
Não obstante tais
apontamentos, mormente a inexistência de Lei Complementar que regulamente o
artigo 5º, inciso LXVII da CF, tem-se que nem mesmo na esfera das legislações
ordinárias há previsão de tal. Em verdade, não há qualquer motivação legal
hábil a ensejar a prisão civil do depositário judicial tido por infiel.
II – A situação
da prisão civil do depositário infiel na atual sistemática do Direito
Brasileiro
Excluindo-se a
hipótese de encargo de depositário assumido por contrato, o instituto do
depositário judicial é regido pelo Código de Processo Civil nos artigos 139;
148 a 150; 666; 672, §1º; 677 e 678; 690, §1º, inciso III; 824 e 825; 858 e
859; 919 e 1.145, §1º.
Pela exegese de
tais dispositivos, conclui-se que os mandamentos processuais não aludem à
prisão civil. Não se aplica ao depositário de bem penhorado, arrestado ou
seqüestrado, por exemplo, os preceitos referentes à ação de depósito (artigos
901 a 906 do CPC).
É que a privação
de liberdade de locomoção, um dos mais sacrossantos princípios constitucionais,
é exceção no Ordenamento Jurídico vigente, sendo forçoso concluir que se admite
apenas a interpretação restritiva dos preceitos legais supra mencionados. Não é
lícito, pois, estender os efeitos de outras modalidades de depósito, seja
convencional ou legal, ao depositário judicial. Logo, a previsão ostensiva na
legislação ordinária, com apontamentos específicos, revela que não há
dispositivo legal que legitime a prisão civil coercitiva do depositário
judicial de bem penhorado.
Humberto Theodoro
Júnior já proclamou ser certo que inexiste, na regulamentação do depósito
judicial, qualquer dispositivo que regule ou autorize a prisão civil do
depositário. A previsão contida na Constituição é genérica e excepcional. E,
como é lógico, e aliás se acha no texto da própria CF, ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV). Na
regulamentação do direito material, a prisão do depositário é prevista apenas
para o contrato de depósito e o depósito necessário, situações típicas de
direito privado. Na lei processual, por outro lado, só há regulamentação ou
autorização da prisão de depositário, como conseqüência de ação de depósito[3][3].
Vale acentuar que
o Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre a matéria no Hábeas Corpus nº
74.383/MG. Seguido pelo voto do Min. Francisco Rezek, a Segunda Turma salientou
a impropriedade da prisão civil do depositário infiel.
Destacou o Min.
Rezek, em seu voto vencedor, o que parece mais óbvio: o inciso LXVII do artigo
5º da Constituição da República permite que o legislador infraconstitucional
discipline a prisão do alienante omisso e do depositário infiel. Permite, não
obriga. O constituinte não diz: “prenda-se o depositário infiel”, mas
sim que é possível legislar nesse sentido.
Assim é que não
se pode negar que o constituinte de 1988 trouxe à baila um permissivo
excepcional à Legislatura para regulamentar a matéria. Todavia, inexiste lei em
vigor nesse sentido no momento atual do direito positivo, que comine a prisão
civil por infidelidade depositária judicial a ser imposta legitimamente ao
responsável por esta modalidade de depósito. Aquela autorização constitucional,
frise-se, é dirigida tão somente ao legislador, mas não àquele que exerce o
ofício judicante.
Destarte, esse
vazio na normatividade infraconstitucional mantém desfalcada a alternativa da
prisão compulsiva no mecanismo do depósito judicial de bens constritos. Ou
seja, a imposição da prisão civil ao infiel depositário encontra-se suprimida à
falta de previsão legal em vigor, conquanto seja por exceção
constitucionalmente permitida.
Conclusão a que
se chega é que o artigo 5º, inciso LXVII da Constituição da República não é
auto-aplicável, tendo sua eficácia contida e depende de regulamentação para ter
seus efeitos legitimados.
III – A
impropriedade da prisão civil do depositário infiel sob o aspecto da
depreciação moral e humana sofrida
Não é demais
dizer que a prisão traz consigo o risco de mal grave, perigo de lesão intensa,
que pode exibir-se de difícil reparação. Afinal, quem se encontra sob ordem de
prisão civil há de se recolher ao cárcere. E. eles surgem poucos e repletos,
mesmo para a aludida prisão, dita não penal.
Álvaro Villaça de
Azevedo, com muita propriedade, doutrinou que a prisão civil por dívida pode
intimidar, mas não é a solução[4][4]. Se as prisões, atualmente, são insuficientes até
para conter, condignamente, elementos perigosos da sociedade, quiçá o homem de
bem, cujo único ilícito foi não ter zelado pelo bem penhorado de maneira
satisfatória. O dano moral ao depositário, causado por essa prisão, arrasta-o à
desmoralização e à quebra de direitos de sua personalidade, nutrindo coerção
sem pena.
A
excepcionalidade da prisão civil por dívida é limitada aos casos em que está em
perigo um valor superior ao próprio valor da liberdade, ou seja, o direito à
vida, nos casos de obrigação alimentícia e o respeito e à boa-fé empenhadas na
guarda de coisa alheia assumidos em contrato, nos casos de depositário infiel[5][5]. Cabe dizer desde logo que a intangibilidade da
pessoa humana, inclusive, é máxima consagrada pela própria Constituição
Federal, por meio do artigo 1º, inciso III.
De se notar que,
até mesmo no direito penal, a tendência está em substituir as reprimendas
privativas de liberdade por variadas penas restritivas de direitos (art. 44,
inciso I do Código Penal, com nova redação dada pelo artigo 1º da Lei nº
9.714/98).
A realidade desta
tendência não pode ser ignorada. Assim, a prisão, por suposta infidelidade do
depositário, mostra-se fora de qualquer proporcionalidade ou razoabilidade.
Desponta irrazoável tudo quanto não guarda bom arrimo de fato ou de direito,
seja limitando ou suprimindo direito ou garantia individual.
Daí a
inafastabilidade de operar razão e proporção. Ao se pretender restringir
direito individual, vige a regra da legalidade estrita. Deve-se julgar segundo
a lei, não se permitindo sequer a invocação de regra análoga, que defluiria do
sistema normativo. A pretexto de fazer justiça a uma das partes litigantes, não
há, portanto, como decidir contra lei, ou ainda pior, sem lei que fundamente a
deliberação judicial constritiva.
A jurisprudência tem se pacificado neste
sentido:
HABEAS CORPUS –
EXECUÇÃO FISCAL – DECISÃO QUE DECRETOU A PRISÃO DO PACIENTE COMO DEPOSITÁRIO
INFIEL DE BENS PENHORADOS – INADMISSIBILIDADE – Inexistência na
regulamentação legal do depósito judicial de qualquer dispositivo que regule ou
autorize a prisão civil do depositário – Ordem concedida. (TJSP – HC
149.658-5 – São Paulo – 7ª CDPúb. – Rel. Des. Walter Swensson – J. 14.02.2000 – m.v.)
AGRAVO DE
INSTRUMENTO – EXECUÇÃO FISCAL – PENHORA
Decisão que
decretou prisão de depositário e aplicou multa de 20% sobre o débito executado.
Admissibilidade. Inexistência na regulamentação legal do depósito judicial
de qualquer dispositivo que regule ou autorize a prisão civil do depositário.
Manutenção da multa aplicada. Recurso parcialmente provido (TJSP – AI 174.193-5
– 7ª CDPúb. – Rel. Des. Walter Swensson –
J. 04.09.2000)
No mesmo sentido AI 140.537.5/0, AI
200.116-5; AI 115.324-5; AI 200.116.5/6; AI 270.236.5/0-00; HC 143.677.5/0; HC
151.240.5/0; AI 119.858.5/6; HC 150.714.5/7, AI 129.078.5/4, todos do E.
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Concluindo, a prisão civil do depositário
judicial infiel não pode subsistir, tendo em conta que contraria a redação
inserta no artigo 5º, inciso LXVII da CF, que apenas permite que a prisão civil
do depositário judicial infiel seja regulamentada pelo legislador
infraconstitucional. Entretanto, até hoje não há tal normatização, mercê da
inexistência de menção ou alusão à prisão do depositário judicial por
infidelidade nos artigos 139; 148 a 150; 666; 672, §1º; 677 e 678; 690, §1º,
inciso III; 733; 824 e 825; 858 e 859; 919 e 1.145, §1º, todos do Código de
Processo Civil, o que torna ineficaz o texto legal aposto no artigo 5º, inciso
LXVII da Constituição da República.
Por outro lado, a prisão civil do
depositário infiel é medida coercitiva excessiva, improfícua ao fim a que se
destina. O dano moral ao causado ao depositário por essa prisão, vale dizer,
homem de moral diferenciada dos criminosos presos no cárcere, arrasta-o à
desmoralização e à quebra de direitos de sua personalidade, nutrindo coerção
sem pena. Não é demais dizer que tal afronta a própria Constituição da
República, mercê do que dispõe o artigo 1º, inciso III, que estatui a dignidade
humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e da República
Federativa do Brasil.
Texto elaborado em 19 de agosto de 2003 e atualizado em 02 de
setembro de 2003.
Retirado de:
http://www.advogado.adv.br/estudantesdireito/universidadeibirapuera/adolphobergamini/prisaodepositarioinfiel.htm