® BuscaLegis.ccj.ufsc.Br
A
EMENDA Nº 20/98 À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
Georgius Luís Argentini
Príncipe Credidio *
Introdução
A Emenda nº 20, de 16.12.98, a qual
acrescentou o parágrafo terceiro ao art. 114, da Constituição da República,
atribuiu a competência aos juízes e Tribunais do Trabalho para executar, de
ofício, as contribuições previdenciárias "decorrentes" das sentenças
por eles emitidas.
A par de considerações
metajurídicas a respeito dos fundamentos históricos ou do objetivo
político-econômico do legislador, a concretização da nova norma exige algumas
reflexões sobre a sua compatibilidade com a ordem jurídica brasileira, bem
assim com a hierarquia axiológica estabelecida na própria Constituição.
A seguir, sem nenhuma pretensão de
esgotar o assunto, teceremos breves considerações a respeito da aplicabilidade
da norma contida no parágrafo 3º, do art. 114, no que se refere ao princípio do
juiz natural (art. 5º, incs. XXXVII e LIII, da CF).
A "emenda constitucional
inconstitucional"
Como é sabido, o ordenamento
jurídico constitui uma unidade, à qual corresponde um sistema axiológico ou
teleológico, no sentido de realizar valores e escopos.(1)
A Constituição, por sua vez, traduz
o liame, o vínculo dessa ordenação normativa, outorgando-lhe unidade e conteúdo
sistemático.
É certo, também, que o princípio de
unidade da ordem jurídica aplica-se à própria Constituição, uma vez que esta
"não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado
em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da
inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da unidade é uma
especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de
harmonizar as tensões e contradições entre normas." (2)
Portanto, a interpretação, sob o
prisma da unitariedade, deve ser no sentido de "reconhecer as contradições
- reais ou imaginárias - que existam entre normas constitucionais e delimitar a
força vinculante e o alcance de cada uma delas." (3)
Em outras palavras, visto que a
Constituição é um todo coerente, não se deve negar completamente eficácia a uma
de suas normas, em caso de contradição ou oposição entre os princípios que elas
veiculam, mas, sim, obter resultados que busquem conciliá-las ou harmonizá-las.
Tais considerações decorrem da
premissa segundo a qual não existe hierarquia entre as normas constitucionais,
vale dizer, sendo a hierarquia, em sentido jurídico, a fundamentação de
validade de uma norma em outra de grau superior (norma fundante) (4) , não é
possível estabelecer graduação de prevalência entre duas normas, quando ambas
provêem do mesmo grau.(5)
Contudo, não pode passar
desapercebido do intérprete que a Constituição, em mais de um passo, indica que
determinadas normas instituem valores e princípios preponderantes, os quais
devem orientar não apenas o legislador ordinário, como, também, as emendas da
própria Carta.
Assim, "para a boa
interpretação constitucional é preciso verificar, no interior do sistema, quais
as normas que foram prestigiadas pelo legislador constituinte ao ponto de
convertê-las em princípios regentes desse sistema de valoração. Impende
examinar como o constituinte posicionou determinados preceitos constitucionais.
Alcançada, exegeticamente, essa valoração é que teremos princípios. Estes, como
assinala Celso Antônio Bandeira de Mello, são mais do que normas, servindo como
vetores para soluções interpretativas." (6)
Tratam-se, pois, de princípios
fundamentais do ordenamento jurídico, reunidos nas denominadas "cláusulas
pétreas", a saber, a forma federativa, o voto direto, secreto, universal e
periódico, bem como os direitos e as garantias individuais (art. 60, § 4º, da
CF).
Bem por isso, é inegável a
existência na ordem constitucional de uma hierarquia axiológica, a qual
importa no "resultado da ordenação dos valores constitucionais, a ser
utilizada sempre que se constatarem tensões que envolvam duas regras entre si,
uma regra e um princípio ou dois princípios." (7)
Por conseguinte, colidindo a norma
instituída pela emenda, direta ou indiretamente, como veremos adiante, com
algum dos princípios estabelecidos na Constituição, notadamente aqueles que
constituem as "cláusulas pétreas", verificar-se-á a sua
inconstitucionalidade material.(8)
Recentemente, o Supremo Tribunal
Federal decidiu que "uma emenda constitucional, emanada, portanto, de
constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode
ser declarada inconstitucional." (9)
Neste passo, cabe observar que a
inconstitucionalidade pode ocorrer não apenas quando a emenda ofende
diretamente à norma constitucional originária (v.g. "Fica revogado
o artigo tal"), mas, também, quando importa em modificação indireta que,
por exemplo, restrinja direitos ou garantias individuais.
Ou seja, basta que a nova norma
seja "tendente", mesmo que de modo indireto, a coarctar o exercício
dos direitos e garantias individuais, da forma federativa ou do direito de
voto, para caracterizar a inconstitucionalidade ("emendas tendentes"
: art.60, § 4º, da CF).(10)
O princípio do juiz natural e a
garantia de imparcialidade
O princípio do juiz natural, entre
nós estabelecido no art. 5º, incs. XXXVII e LIII, da Constituição, tem como
conteúdo não apenas a prévia individualização do órgão investido de poder
jurisdicional que decidirá a causa (vedação aos tribunais de exceção), mas,
também, a garantia de justiça material, isto é, a independência e a
imparcialidade dos juízes.(11)
Sendo assim, a garantia do juiz
natural está imediatamente relacionada com a imparcialidade do órgão
julgador.(12)
Aliás, o art.10, da Declaração dos
Direitos do Homem da Assembléia Geral das Nações Unidas (1948), é específico :
"Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida
publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a
determinação de seus direitos e obrigações ou para exame de qualquer acusação
contra ela em matéria penal."
Por outro lado, dentre o conjunto
de instrumentos utilizados para assegurar a imparcialidade dos juízes (13),
também se insere a proibição ao exercício da tutela jurisdicional sem que
exista provocação da parte ou interessado (demanda), segundo o princípio já
contido nas velhas parêmias "ne procedat judex ex officio" ou
"nemo judex sine autore".
Ou seja, não se concebe no Estado
de Direito que o juiz revista, concomitantemente, a qualidade de parte adversa
do demandado (sujeito parcial) e julgador (sujeito imparcial), até porque não
há jurisdição sem demanda.
Busca-se, assim, obstar que o juiz
julgue antes de decidir.(14)
A inconstitucionalidade da
expressão "de ofício" contida no parágrafo 3º, do art.114
Colocadas essas premissas, é mister
inferir que a locução "de ofício" contida no parágrafo 3º, do art.
114, da Carta de 1988, revela-se manifestamente inconstitucional e contrária às
normas que garantem às partes a decisão por um juiz imparcial (art.5º, incs.
XXXVII e LIII).
De efeito, cometer aos juízes e
Tribunais do Trabalho a iniciativa da demanda de execução para pagamento das
contribuições previdenciárias, transformando-os em sujeitos parciais da relação
processual, importa em afronta ao princípio do juiz natural, que foi elevado a
"cláusula pétrea" na Carta de 1988 , e, por conseguinte, não é
passível de emenda (art. 60, § 4º).
Impende lembrar, também, que em
nosso ordenamento jurídico a atuação oficiosa dos magistrados é admitida apenas
nos casos em que há atividade judicial, mas não jurisdicional (15), isto é,
quando agem na administração pública de interesses privados ("jurisdição
voluntária").
Entrementes, a execução forçada,
como é pacífico na atualidade, insere-se na atividade jurisdicional do Estado,
não constituindo, portanto, mera atividade administrativa.(16)
Deste modo, "sendo tipicamente
jurisdicional a atividade desenvolvida pelo juiz no processo de execução, é
natural que ela se reja pelos princípios gerais disciplinadores do exercício da
jurisdição, entre os quais o da inércia do Poder Judiciário." (17)
Demais disto, mesmo na execução
trabalhista a atuação "de ofício" do juiz resulta de processo
regularmente instaurado por demanda do autor (art.840, da CLT), o qual
objetiva, em última análise, além da emissão da sentença de mérito, um
provimento satisfativo, naquilo que para alguns constitui a categoria das
"ações executivas lato sensu".
Sob este prisma, a iniciativa da
execução trabalhista pelo juiz, conforme previsto no art. 878, da CLT,
relaciona-se, mais propriamente, com o princípio do impulso oficial, e não com
a legitimidade para promovê-la, sem que exista demanda.
A título de conclusão lembramos as
palavras de Mauro Cappelletti : "Constitucionalismo moderno, Carta de
Direitos Nacional e transnacional, e proteção judicial - interna e
internacional - de tais direitos fundamentais contra abusos de autoridades
públicas, podem bem ser apenas outro aspecto da Utopia de nossa época. Se ele
nos encaminhará, como sempre esperamos, para um mundo melhor, um mundo no qual
indivíduos, grupos e pessoas possam viver em paz e em compreensão mútua, sem
guerra e exploração, só o futuro poderá dizê-lo." (18)
Recife, fevereiro de 1999
* O autor é Juiz do Trabalho
Substituto - TRT/PE. Professor substituto de Direito Processual Civil na
Faculdade de Direito do Recife (UFPE).Ex-Juiz de Direito em São Paulo.
Notas
1) Claus Wilhelm Canaris,
"Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito",
pág. 66 e segs., trad. A. Menezes Cordeiro, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
2) Luís Roberto Barroso,
"Interpretação e Aplicação da Constituição", pág. 182, Ed. Saraiva,
1996.
3) Idem, pág. 185.
4) José Afonso da Silva,
"Aplicabilidade das Normas Constitucionais", pág. 213, Ed. RT, 3ª
ed., 1998.
5) Luís Roberto Barroso, op.
cit., pág. 187.
6) Michel Temer, "Elementos de
Direito Constitucional", pág. 22, Ed. Malheiros, 14ª ed., 1998.
7) Luís Roberto Barroso, op.
loc. cit..
8) José Afonso da Silva, op.
cit., pág. 216.
9) ADI - 939/DF, Tribunal Pleno,
Rel. Min. Sydney Sanches, j. 15.12.93, DOU 18.03.94, pág. 5165.
10) José Afonso da Silva,
"Curso de Direito Constitucional Positivo", pág. 59, Ed. RT, 7ª ed.,
1991.
11) Nelson Nery Junior,
"Princípios do Processo Civil na Constituição Federal", pág. 64, Ed.
RT, 2ª ed., 1995.
12) José Frederico Marques,
"Instituições de Direito Processual Civil", vol. I, pág.
181, Ed. Forense, 1ª ed., 1958.
13) Art. 95, da CF : vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, vedação ao exercício de
atividade político-partidária e de receber custas ou participação em processo etc..
14) Fernando da Costa Tourinho
Filho, "Processo Penal", vol.1º, pág. 422, Ed. Saraiva, 10ª ed.,
1987.
15) Arruda Alvim, "Tratado de
Direito Processual Civil", vol. 1, pág. 281, Ed. RT, 2ª ed., 1990.
16) Cândido Rangel Dinamarco,
"Execução Civil", pág. 190, Ed. Malheiros, 5ª ed., 1997.
17) Idem, pág. 345.
18) "O Controle Judicial de
Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado", pág. 21, trad. Aroldo
Plínio Gonçalves, Safe Editor, 1984.
RETIRADO DE http://www.apriori.com.br/artigos/principio_do_juiz_natural.shtml