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A POLÍCIA E O MINISTÉRIO PÚBLICO
Claudionor Rocha
Discute-se
no âmbito do Ministério Público (MP) a respeito de sua vocação para a função
inquisitorial. Artigo de autoria da subprocuradora-geral da República, drªDelza
Curvello Rocha, publicado no dia 26-4-99, em que defende a exclusividade da
Polícia Judiciária para o mister investigatório, provocou onda de opiniões
contrárias de seus pares, em três semanas seguidas. Utilizaram seus autores,
concessa venia, argumentos falaciosos, no sentido filosófico, o que não implica
a intenção de iludir. A título de fazerem valer seu entendimento, ignoraram a
letra da lei, que não os ampara. Provemos.
A pretexto de justificar a tese de que tal prática é válida, exemplifica-se com
o costume corporativo, sofisma equivalente àquele em que se inclui o termo a
ser definido na definição, quase uma petição de princípio. A premissa de que o
entendimento dominante é o ali defendido, enreda-se no mesmo novelo, é uma
generalização apressada, pois que se refere à opinião dos integrantes do MP,
não necessariamente à dos magistrados, dos juristas, das autoridades policiais.
A farta citação jurisprudencial dispensa a repetição, ainda porque ali se
sucumbiu ao argumento de autoridade, por presumirem que tais opiniões, oriundas
de legítima interpretação, só pela ascendência intelectual dos emissores, lhes
dão razão quanto ao sentido teleológico da lei. O voto transcrito do eminente
ministro Néri da Silveira certamente se refere ao inteiro teor do inciso VI do
art. 129 da Constituição, verbis:
‘‘VI — expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua
competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma
da lei complementar respectiva’’.
Ora, a ação penal não é procedimento administrativo, mas judicial, e o
inquérito policial nunca foi da competência do MP. Portanto, investigações
preparatórias da ação penal, da qual o MP é o titular, só podem ser conduzidas
por um órgão estranho àquele, sob pena de incorrer no bis in idem,
confundindo-se o inquisitor e o acusador na mesma pessoa. Cabe ao MP
requisitá-las e, à polícia, produzi-las.
A se considerar reserva de mercado a atribuição exclusiva da Polícia
Judiciária, não consta terem as autoridades policiais se arvorado o direito de
promover a ação penal pública, privativa do MP. Assim, o promotor não pode ser
inquisitor e vice-versa. Está fora de dúvida que, dispondo o MP de elementos
suficientes para a denúncia, mesmo em matéria tributária, dispensável é o
inquérito e, por desnecessária, qualquer investigação policial. Exemplo claro é
o peculato provado mediante sindicância ou processo administrativo. Equivale,
grosso modo, a dizer que a autoridade policial prescinde do decreto judicial em
caso de flagrante delito, para efetuar uma prisão ou proceder a uma busca,
adotadas as demais cautelas legais.
Quanto ao argumento de que à Polícia Federal não compete a apuração das
infrações penais, com exclusividade, como o é em relação ao exercício das
funções de Polícia Judiciária da União (art. 144, § 1º, I e IV), trata-se de
uma leitura enviesada da lei, pois a exclusividade ali inserida está
subordinada ao termo ‘‘União’’. Ademais, Polícia Judiciária é aquela que apura
infrações penais, ex vi do art. 4º do CPP (as autoridades administrativas
referidas ao parágrafo único são as militares, únicas autorizadas por lei a
presidirem os inquéritos policiais militares). O que o constituinte quis dizer
é que a Polícia Civil estadual não pode exercer as funções de Polícia
Judiciária da União, a contrário senso do que ocorre com a Justiça Eleitoral,
quando o juiz singular do interior exercer o múnus da Justiça especial. As
infrações penais sujeitas a apuração pelo órgão federal estão exaustivamente
elencadas, enquanto às policias civis remanesce a competência no tocante às infrações
penais ali não abrangidas, excetuadas as militares, a serem apuradas pelas
próprias corporações, sem ingerência das policiais federal ou civil. Ou seja,
não se trata de comparar as competências da Polícia Federal com outros órgãos
que não suas congêneres estaduais, pois não é deferida como atribuição do MP
‘‘apurar infrações penais’’.
No atinente às citadas prerrogativas investigatórias do MPU, elas se referem
aos procedimentos de sua competência, relacionados no art. 6º da LC nº 75/93 e
ali não se inclui apurar infrações penais. Assim, também, as prerrogativas
inquisitoriais conferidas ao MP pela Lei nº 8.625/93 (LONMP), referem-se aos
inquéritos civis e não inquéritos policiais (art. 26, I, c). Poderá requisitar
diligências investigatórias e instauração de inquérito (art. 26, IV), que serão
conduzidos pela polícia.
Na mesma linha de raciocínio preleciona José Afonso da Silva (1) quando
sustenta que ‘‘a apuração das infrações penais é uma das atribuições exclusivas
da Polícia Civil, que se encontra expressamente prevista no art. 144, § 4º, da
Constituição Federal. Não há como legitimamente passar essa contribuição para o
Ministério Público por meio de ato administrativo ou de qualquer medida
legislativa infraconstitucional, sem grave afronta a normas e princípios
constitucionais’’. Opinião similar esposa Antonio Evaristo de Moraes Filho (2)
e tantos outros juristas de renome.
Vislumbra-se nessa possibilidade de investigação criminal pelo parquet
temerária avocação de feitos, de caráter eletivo, segundo a conveniência do
momento. Preterir-se-iam fatos corriqueiros, mais suscetíveis de redundar na
satisfação da vítima, optando-se pelos de maior repercussão, à luz dos
holofotes, onde a vaidade dos protagonistas só não é maior que a inocuidade das
conclusões. Restaria às polícias civis prender ladrões de galinha.
Ademais, o MP não dispõe de pessoal instruído e treinado para a investigação.
Certamente não seria o membro do MP quem se encarregaria das ‘‘campanas’’ e
infiltrações no meio criminoso, cumprimentos de mandados de busca e prisões de
delinqüentes. Seria tragicômica a hipótese de se contratar detetives
particulares, quando o Estado possui funcionários, especialistas cometidos
dessa atribuição.
A alegada dificuldade de a polícia investigar crimes envolvendo autoridades não
subsiste no âmbito do DF, em face da independência funcional garantida pela Lei
Orgânica (art. 119, § 4º), infelizmente não estendida aos pares de outras
unidades da Federação. Ao invés de usurpar a função de um delegado manietado, o
melhor é garantir, em plenitude, tal independência. Se houve arbítrios outrora,
não se puna a instituição atual, cujos antigos dirigentes truculentos já estão
aposentados.
Se válida a assertiva de que quem pode o mais pode o menos, certo seria
inferir-se que o juiz pode investigar, acusar e julgar. Se ele está no extremo
da cadeia da persecutio criminis, deve ‘‘poder mais’’. Entretanto, como não
investiga nem acusa, é falsa a analogia. Se o MP requisita esporadicamente a
instauração de inquérito policial, o mais freqüente é o inquérito ter início
sem aquela requisição, vez que decorrente de ato de ofício da autoridade
policial. Enfim, se a função inquisitória não está expressamente proibida ao
MP, a indicante também não o que leva à absurda teoria de que pode fazer tudo
que não lhe é proibido, manifestamente contra o princípio administrativo da
legalidade, no dizer do saudoso Hely: ‘‘Enquanto na administração particular é
lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido
fazer o que a lei autoriza’’ (3).
Prosseguindo, ab absurdum, inflige-se aos delegados de polícia a pecha de
usurpadores da função investigatória (sic) dos destinatários das próprias
investigações! A norma que integre o ordenamento jurídico, se considerada inadequada,
pode ser questionada e até alterada, pela via legal, mas, enquanto posta, é
insofismável. O MP não está sujeito ao atuar da polícia, pois se a polícia não
atuar, pode requisitar-lhe a instauração do inquérito e será sempre atendido. O
MP pode investigar (!) apenas no inquérito civil, preparatório da ação civil
pública. Qualquer premissa falsa leva, necessariamente, a um argumento falso. O
silogismo correto, então, seria: quem não é polícia não pode apurar infrações
penais; o MP não é polícia; logo, o MP não pode apurar infrações penais.
Far-se-ia muito pela sociedade se se cuidasse de fortalecer a polícia,
propiciando-lhe melhores salários e condições de trabalho — preventivos da
corrupção. As autoridades policiais são bacharéis em Direito, concursados, a
exemplo dos juízes togados e membros do MP. São os dirigentes das polícias e
operadores do Direito, apanágio que lhes é negado, fazendo jus às mesmas
prerrogativas antes reservadas aos juízes e hoje estendidas aos promotores,
como a inamovibilidade e o tratamento de Excelência (4). Todavia, o que se vê é
uma sub-reptícia intenção de desmerecê-lo, como ocorreu quando da supressão
pelo legislador ordinário, à revelia do constituinte, da isonomia com as
carreiras jurídicas inscritas no art. 241 da Constituição e, também, após a
publicação do Código de Trânsito, quando juristas interpretaram, contra legem,
que a expressão ‘‘autoridade policial’’ ali contida referia-se a qualquer
agente do poder público investido do poder de polícia!
Claudionor Rocha
Delegado da Polícia Civil do Distrito Federal
RETIRADO DE http://www.neofito.com.br/