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ARMAS DE FOGO
Lúcia de Fátima Gomes de Lacerda

Está assentada na Constituição Federal, como princípio básico da organização do Estado Federal, a autonomia político-administrativa da União, estados, Distrito Federal e municípios (artigo 18), voltada para a preservação do equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar nacional, fundada em dois elementos: existência de governo próprio e posse de competência.

No que tange a material bélico, de cujo gênero as armas de fogo são espécie, a Carta atual, a exemplo das anteriores, nomeia, entre as competências da União (artigo 21, VI), a autorização e a fiscalização da produção e do comércio, executadas pelo Ministério do Exército, instrumentalizado no Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados (R-105), aprovado pelo Decreto nº 55.649, de 28 de janeiro de 1965.

Com o advento da Lei nº 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, reafirmaram-se aquelas atribuições do Ministério do Exército, sendo instituído, no Ministério da Justiça, com circunscrição em todo país e âmbito da Polícia Federal, o Sistema Nacional de Armas — Sinarm. Este órgão foi concebido para o cadastro da produção, importação e comercialização das armas de fogo, assim como dos proprietários (pessoas físicas e jurídicas em geral) das armas classificadas como de uso permitido, exceto se pertencentes às Forças Armadas e Auxiliares ou constarem dos seus registros — o chamado ‘‘registro próprio’’ (artigos 1º e 2º).

A Lei nº 9.437/97, que está regulamentada pelo Decreto nº 2.222, de 8 de maio de 1997, torna o registro das armas, no órgão competente, medida obrigatória para legitimação da propriedade e posse. E vincula a ‘‘expedição do certificado de registro’’ das armas passíveis de cadastro no Sinarm, à autorização deste (artigos 3º e 4º).

Com o Decreto nº 2.222/97, a competência para o registro das armas de uso permitido, pertencentes às pessoas em geral, mantém-se para as polícias civis estaduais e distrital, porém, deverá ser o ‘‘registro precedido de autorização do Sinarm’’, a ser solicitada depois de averiguados os antecedentes penais do postulante (artigos 4º e 5º).

O Decreto de Execução também comete ao Sinarm (artigo 2º, parte final) o controle dos registros efetuados pelos Órgãos Estaduais e Distritais.

Os serviços do Sinarm estão disciplinados na Instrução Normativa nº 4 — Departamento de Polícia Federal, de 12 de maio de 1998, publicada no DOU nº 91, de 15.5.98. Constam, dentre seus objetivos: coleta, processamento e disseminação de dados indispensáveis ao cadastramento, registro e controle de armas (item 2).

Consoante o ato normativo (item 5.1.2), ante a solicitação de autorização para registro, o Sinarm adotará, entre outros procedimentos: a) imediato cadastramento da arma, ou indeferimento do registro, se a arma já estiver cadastrada e com assentamento de furto, roubo, extravio etc., dando-se comunicação ao órgão solicitante; b) indeferimento do registro, se o limite de armas permitido ao interessado, já estiver alcançado, ressalvando-se o disposto no artigo 5º, da Lei nº 9.437/97; c) averiguação dos antecedentes penais do interessado, mediante consultas aos sistemas Sinpi, Sinic e Sinpro, com o indeferimento do registro, se houver assentamento criminal impeditivo, comunicando-se a decisão ao órgão solicitante.

No plano constitucional, é sabido que a maneira escolhida para execução dos serviços das entidades federadas autônomas é o sistema imediato (artigos 37 e 39, CF), mediante o qual todas mantêm sua própria administração, com funcionários próprios, independentes uns dos outros e subordinados aos respectivos governos. (1).

Todavia, no que concerne ao registro das armas de uso permitido, pertencentes às pessoas em geral, há, na atuação dos estados, Distrito Federal e Sinarm, evidente desvio de forma constitucional, instalado pelo parágrafo único do artigo 4º, da Lei nº 9.437/97 e agravado pelo Decreto nº 2.222/97 e até pela IN nº 4/98-DPF.

No momento em que os estados e Distrito Federal, por intermédio de suas polícias civis, foram mantidos com a competência que há várias décadas lhes fora confiada pela lei antiga (R-105, artigo 31, alínea ‘‘n’’), impingir-lhes subordinação a órgão da União, caracterizada na vinculação do registro à autorização (seja para expedição do certificado de registro — como expressa o parágrafo único do artigo 4º, do Decreto Regulamentar), equivale a afronta ao preceito do artigo 18, da CF.

Por sua vez, o estabelecimento do Sinarm como órgão de controle dos registros também é de constitucionalidade material questionável. É que foi concebido para tal função e, como se sabe, os decretos e regulamentos destinam-se à fiel execução das leis sancionadas ou promulgadas (artigo 84, IV, da CF).

E a maior ofensa ao ordenamento jurídico: a IN nº 4/98-DPF não só normatiza as atividades do Sinarm no controle do registro de armas, mas, também, o transmuta em órgão efetivador do registro(2), instrumentalizando-o (item 5.1.2) para atos que são próprios dos órgãos estaduais e distrital de registro, como por exemplo, a verificação dos antecedentes penais do interessado e a própria decisão sobre o registro (3).

Até a sinonímia da língua portuguesa afasta dúvida quanto à submissão dos estados e Distrito Federal ao Sinarm: cadastro significa inventário, lista (4), que, por sua vez, quer dizer relação de nomes de pessoas ou coisas (5); autorização é o mesmo que permissão (6); e controle equivale a fiscalização (ato ou efeito de fiscalizar, que é igual a vigiar, examinando) exercida sobre atividades de pessoas, órgãos, departamentos, ou sobre produtos, etc., para que tais atividades, ou produtos, não se desviem das normas preestabelecidas (7).

Na forma instituída pela Lei nº 9.437/97 e seu decreto regulamentar, o registro das armas ajusta-se ao sistema mediato de execução de serviços, mas que não é o escolhido pela Constituição Federal, sendo adotado em outros países, nos quais os serviços federais, em cada Estado, são executados por funcionários deste, mantendo a União pequeno corpo de servidores, incumbidos da vigilância e fiscalização (8).

Diante disso, é possível afirmar que, na preservação do equilíbrio da federação, registro de arma de fogo de uso permitido, em favor das pessoas em geral, é, na legitimação da propriedade e posse, o resultado da ação dos órgãos estaduais e distrital competentes, sem ofensa ao princípio constitucional da autonomia das entidades federadas.

Por outro lado, é inegável que no combate à criminalidade — para a qual as armas de fogo concorrem como elemento propulsor, o Sistema Nacional de Armas — Sinarm tem extrema importância social como órgão de cadastro da propriedade, produção, importação e comercialização desses produtos, especialmente por servir, em qualquer ponto do País, de auxílio às investigações policiais, no levantamento da autoria de ilícitos penais.

NOTAS:

(1) Cf. José Afonso da Silva, ‘‘Curso de Direito Constitucional Positivo’’, 9ªed., pp. 417/ss, São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 1994.

(2) O Sinarm, no prazo do artigo 5º, da Lei nº 9.437/97, efetuou registro de arma de fogo de uso permitido, pertencente a funcionário administrativo do DPF, enquanto apenas lhe é permitido registrar arma de uso restrito, adquirida por funcionário policial federal (artigo 7, do Decreto nº 2.222/97).

(3) O Sinarm assim já se posicionou, perante o Serviço de Controle de Armas, Munições e Explosivos — SAME, órgão de registro das armas de fogo, integrante da Polícia Civil do Distrito Federal, chegando a ‘‘indeferir’’ o registro.

(4) Cf. Minidicionário da Língua Portuguesa’’, Francisco da Silveira Bueno, 6ªEdição, p. 121, São Paulo, Editora Lisa S/A, 1992.

(5)Cf. ‘‘Minidicionário da Língua Portuguesa’’, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, 3ªEdição,p. 337, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.

(6) Cf. ‘‘Novo Dicionário da Língua Portuguesa’’, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, 2ª Edição, p. 204, Rio de Janeiro 1986.

(7) Cf. ‘‘Minicidionário da Língua Portuguesa’’, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, 3ªEdição, pp. 145 e 253, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.

(8) José Afonso da Silva, ob. cit., pp 421/422.


Lúcia de Fátima Gomes de Lacerda
Delegada de Polícia Civil do Distrito Federal e
Chefe do Serviço de Controle de Armas, Munições e Explosivos

 

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