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Abusando da insegurança jurídica

 

 

Luis Carlos Pascual

 

A Sibor Industrial Ltda. foi uma sociedade constituída para produzir, por encomenda, componentes que a Pirelli Cabos S.A. revende às principais montadoras de automóveis do Brasil e ao mercado de reposição.

Regulando essa atividade foi firmado entre as empresas um contrato de fornecimento pelo prazo de dois anos. A garantia de um prazo mínimo de dois anos de fornecimento era vital à Sibor, assim como para toda empresa que realiza investimentos com vistas ao cumprimento de um contrato. Os investimentos acarretam compromissos financeiros vultosos às sociedades, cujos pagamentos, normalmente, são alongados na mesma proporção do prazo de vigência do contrato que garante o ingresso das receitas.

No mercado automobilístico não é incomum que empresas sejam constituídas exclusivamente para fornecer determinados componentes ou serviços a uma montadora ou grande “supplier”, como são chamados os fornecedores. Nestas situações estabelece-se uma relação de interdependência umbilical, em que a contratada tem a integralidade das receitas oriundas de uma só fonte, a contratante. Essa era a relação entre Sibor e Pirelli.

Feitos os empréstimos bancários, assim como os indispensáveis investimentos para alcançar o volume de produção exigido pela Pirelli, um ano após a assinatura do contrato a Pirelli rescindiu-o e repassou-o - a título de gratificação - a um diretor do alto escalão que se desligava dos quadros da empresa. A Pirelli justificou a rescisão antecipada do contrato, pela cláusula III.5 do instrumento, que autorizava a qualquer das partes a rescisão do contrato com mero aviso prévio de 15 dias.

Para o esclarecimento do leitor, situações como estas são quase corriqueiras na indústria automobilística, inclusive, cláusulas que prevêem a possibilidade de rescisão do contrato a qualquer tempo, sem qualquer direito a indenizações, são utilizadas em larga escala pelos “players” do setor, empresas contratantes de grande poder econômico. Essas cláusulas atendem única e exclusivamente os próprios interesses das contratantes, já que a contratada, ao assinar contratos desse gênero, autodecreta a dependência de sua sobrevida financeira ao humor dos administradores da grande empresa contratante.

No caso específico da Sibor, cuja única fonte de renda vinha da Pirelli, através do contrato em questão, a sociedade não teve tempo hábil para conquistar outros clientes ou outros mercados, e nem outra opção senão demitir a totalidade dos funcionários, suspender as atividades da empresa e administrar as iminentes dívidas que eclodiram, ingressando no estado de falência de fato.

Nesse momento veio à tona a interpretação sintomática do princípio contratual da autonomia das vontades, segundo o qual as partes que assinam um contrato se submetem ipsis literis ao que nele está disposto. A corrente mais rígida dos doutrinadores, os positivistas, entendem que o contrato firmado entre as partes confere pouca margem à interpretação quanto ao teor das cláusulas, prevalecendo a vontade escrita dos agentes, ou de um deles, desde que com ela o outro tenha anuído. Estão fora dessa regra os contratos de adesão, cuja análise deve levar em conta a fragilidade natural de uma das partes, a que adere ao contrato e não pode alterá-lo.

Outra corrente propõe uma exegese menos acanhada das cláusulas contratuais. Além de mais moderna e condizente com o dinamismo do direito, prima pela interpretação da vontade dos agentes, aliada a necessidade de coibir abusos, às vezes dissimulados na redação; cláusulas com duplo sentido ou antagônicas, elaboradas maliciosamente ou mesmo por imperícia dos agentes, mas que podem servir de subterfúgio futuro a uma das partes, para inadimplir a obrigação. Essa interpretação apenas aplica o bom senso de justiça em casos de distorções flagrantes das vontades, sem, no entanto, atentar contra a segurança jurídica.

Diante da veemente recusa da Pirelli de ressarcir qualquer prejuízo à Sibor, esta ingressou com Ação de Indenização, fundada em rompimento unilateral e injustificado de contrato, contra a Pirelli, em maio de 1995, sustentando que o lapso de duração do contrato era de, no mínimo, 2 anos, para garantir-lhe os investimentos efetuados, como previsto no contrato. É verdade que existia outra cláusula autorizando a rescisão a qualquer tempo, bastando o pré-aviso de 15 dias, pela parte que o pretendesse rescindir.

A ação foi julgada completamente improcedente pelo M.M. Juízo da 33ª Vara do Fôro Central de São Paulo, sem oportunidade para a Sibor produzir provas, sob o fundamento de que a questão de mérito era meramente de direito, bastando a aplicação do princípio da autonomia das vontades dos contratantes, que assinaram o instrumento com previsão de rescisão daquela forma.

A Sibor apelou e o Tribunal do Estado de São Paulo, por unanimidade , anulou a decisão de 1ª instância e julgou totalmente procedente a demanda, impondo à Pirelli a ampla reparação das perdas e danos que causara à Sibor. Entendeu aquela corte que a cláusula que estipulou a possibilidade de rescisão do contrato com aviso prévio de 15 dias deveria ser interpretada como sendo de natureza excepcional e, se efetivada por uma das partes no lapso regular de dois anos, geraria o dever dessa parte indenizar a outra por eventuais perdas e danos. Em outras palavras, disse o tribunal que diante das duas cláusulas que divergem quanto ao prazo de vigência do instrumento, prevalece a que prevê dois anos, sobre a qual se baseou a contratada para a realização dos investimentos.

A referida corte, outrossim, em manifestação pouco comum em se tratando de matéria contratual, declarou que a Pirelli agiu de má-fé ao tentar legitimar o rompimento do contrato ante tempus, através da cláusula que previa mero aviso prévio de 15 dias, furtando-se de qualquer responsabilidade indenizatória.

Contra essa decisão a Pirelli Cabos S.A. ingressou com Recurso Especial e Extraordinário, cuja subida às cortes superiores foi negada pelo presidente do 1º TAC/SP. Interpôs a multinacional, logo após, Agravos de Instrumento ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal. Os dois tribunais mantiveram a decisão do 1º TAC paulista. Ingressou então, a Pirelli, com embargos de declaração contra cada uma das decisões dos tribunais superiores, rejeitados também.

O processo está agora em fase de apuração dos lucros cessantes e danos emergentes, que devem alcançar R$ 15 milhões (US$ 8 milhões), referente a um ano de contrato, 1993.

Alguns jornais e revistas de opinião jurídica no Brasil vêm noticiando o desfecho do caso e destacando as sucessivas tentativas da Pirelli de, inicialmente, reverter a decisão através de todos os recursos facultados pela legislação processual civil. Porém, após certo ponto de sucessivas condenações, a Pirelli passou a recorrer apenas para protelar, apenas para adiar o desembolso inevitável da indenização.

Após nova avaliação do caso, motivada pela demora no desfecho da causa, a Sibor ingressou com mais uma ação de danos morais e materiais, pleiteando os lucros cessantes desde 1994 até 2000 (seis anos), em função da falência da empresa, tendo como causa direta o rompimento do contrato pela Pirelli. Conforme tese esposada pelo próprio advogado da Pirelli, ao impugnar o valor atribuído à causa, a nova ação pode alcançar mais R$ 56 milhões de reais.

Contudo, a nova demanda certamente estará também eivada do insanável vício procrastinatório, de que se valem as partes vencidas nas demandas judiciais no Brasil, e noutros países cujo ordenamento processual é volúvel quanto aos recursos e quanto aos juros compensatórios.

A estrutura da legislação processual tem que ser alterada no que diz ao pragmatismo que norteia o direito ao recurso, assim como devem ser reformulados também o cálculo e os patamares dos juros compensatórios, com vistas ao desestímulo ao recurso pelo recurso. Os juros têm que ser, no mínimo, maiores que os pagos pelo mercado, caso contrário cria-se um estímulo econômico ao recurso. Vivemos o caos no poder judiciário hoje, onde se chega ao cúmulo de se ter que reformar os imóveis sede de tribunais, pela sobrecarga que o peso dos milhares de processos aguardando julgamento imprime na laje do imóvel, não projetado para tanto.

É um ciclo vicioso, onde os vencidos recorrem para ganhar tempo, congestionam os tribunais, fazendo, assim, com que as decisões passem a demorar ainda mais, incentivando novos vencidos a recorrer e, o que é pior, assim sucessiva e amplificadamente. Numa simulação mental do que de pior pode ocorrer no futuro, chega-se á conclusão de que já o vivemos. Um processo que não apresenta nenhuma nuança de complexidade extraordinária, leva mais de 10 anos para ser resolvido.

O resultado deste ciclo perverso é nada mais que a insegurança jurídica, ou, como perdão do modismo, o “Custo Brasil”, jargão sobre que se deteriora o estado democrático de direito, ante a perda da capacidade de imputabilidade do estado. Sem falar na perda de investimentos estrangeiros que migram para países mais seguros, relegando o Brasil à estagnação econômica. Para os que não identificam esses vícios do nosso sistema jurídico como sendo um dos principais responsáveis pelas desigualdades sociais brasileiras, reservarei o tema para dissecação futura, pois o assunto merece um texto específico.

A iniciativa de reforma tem que ser política e efetivamente implementada, pois a população não tem consciência de que esse é um jogo de soma negativa, onde toda a sociedade perde, principalmente as gerações futuras, que, sem qualquer culpa, herdarão o ônus desse sistema. Convido o leitor a duas reflexões: uma, a conta está encarecendo diariamente, e será paga por nossos filhos e netos; duas, você é o vencedor dessa demanda de Pirro.

Luis Carlos Pascual é advogado do Cesar, Cesar & Pascual Advogados Associados, especializado em contratos internacionais, graduado pela PUC/SP e pós - graduado pela Faculdade de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas.


Fonte:http://www.mundolegal.com.br