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A autonomia do processo de execução

 

 

Apesar de não sofrer grandes mudanças com as reformas do CPC, o processo de execução é fundamental à efetividade da prestação jurisdicional

 

Graziela Cunha

O legislador de nosso sistema processual civil tem primado por constantes inovações, no propósito claro de reforçar a eficiência e efetividade da jurisdição.

Nenhuma justiça efetiva cumpre-se sem a realização concreta da alteração fática na situação das pessoas que procuram o Judiciário para dirimir seus conflitos, daí porque constituir o processo de execução importante mecanismo para o alcance do resultado prático da tutela jurisdicional.

As reformas implementadas nos últimos meses, em especial a Lei 10.444, de 7 de maio de 2002, alteraram diversos artigos do processo de execução, no intuito, acredita-se, de seguir a tendência processual moderna, muito embora tais soluções estejam longe de encampar mudanças consideráveis no processo de execução.

Na doutrina, entretanto, inúmeras são as sugestões para a melhoria do processo de execução. Nota-se uma grande preocupação com a efetividade do processo, especialmente pela demora com as atividades de cognição; todavia a doutrina processual tem relegado o processo de execução à posição secundária na teoria geral do processo.

As reformas tentam imprimir maior efetividade, mas percebe-se no cotidiano forense que elas pouco contribuíram para agilizar o processo e foram e continuam sendo insuficientes para tornar efetiva a tutela executiva. Araken de Assis, bem analisando o fenômeno do desprezo doutrinário e legislativo com o processo de execução, diz que as reformas no processo executivo apresentam um caráter cosmético e que não emprestam celeridade à execução (1).

Conforme observação de vários doutrinadores (Cândido Dinamarco, João Batista Lopes e Leonardo Greco, entre outros), pouca é a preocupação dos processualistas com o processo de execução. Daí a necessidade de uma reestruturação da teoria geral da execução, defendem alguns importantes pensadores, a possibilidade da jurisdição de execução sem o autônomo processo de execução, ou seja, a atividade executória passar a ser tão somente complementar (2).

Cândido Rangel Dinamarco, inclusive, não exclui a conveniência, lege ferenda, da ampliação dos casos em que a execução faz-se como mera fase do processo iniciado para o conhecimento da causa (3).

A presença do ato executivo como característica do processo de execução


Podemos identificar na jurisdição duas classes bem distintas de atividade: a de formular a regra jurídica concreta e a de fazer atuar a regra jurídica concreta.

O processo de conhecimento tem como finalidade a obtenção de uma sentença que decida o conflito de interesses, a atividade do juiz é teleologicamente destinada a operar no plano lógico das normas jurídicas. O processo de execução tem por fim satisfazer o direito que a sentença condenatória haja proclamado pertencer ao demandante vitorioso, sempre que o condenado não o tenha voluntariamente satisfeito. Na execução, o direito contemplado na regra jurídica concreta traduz-se em fatos reais.

O ato executivo é o resultado final a que tende todo o processo de execução, ele possui a capacidade de provocar alterações no mundo dos fatos. Segundo definição de Pontes de Miranda, ele é o "ato por meio do qual o Estado, através de seus órgãos jurisdicionais transfere algum valor jurídico do patrimônio do demandado para o patrimônio do demandante, para a satisfação de uma pretensão a este reconhecida e declarada legítima pela ordem jurídica" (4).


Logo, o ato executivo é característica fundamental do processo execução, responsável pela consumação de seu objetivo: obtenção pelo exeqüente daquilo que deveria ter sido cumprido pelo devedor, ou seu resultado equivalente. Araken de Assis, afirma que as modificações fáticas produzidas pelo ato executivo não invadem a esfera jurídica do executado somente em círculo patrimonial, porque, no direito pátrio, os meios de coerção também visam obter o bem da vida mediante pressão psicológica, defendendo que a sanção pecuniária (astreite) e a sanção pessoal (prisão) são mecanismos que atingem a esfera do obrigado; logo, é expediente de executivo (5).

O processo de execução é totalmente voltado à realização de atos executivos; surge, desenvolve-se e atinge seu fim normal com a prática de atos executivos.

No entanto, a prática de atos executivos não é exclusiva do processo de execução. Nas chamadas ações executivas lato sensu, que ensejam, desde logo e na mesma relação processual, além da certificação do direito (tutela de conhecimento), a prática dos atos executivos tendentes a efetivar o direito (tutela de execução), também se realizam atos de execução. E existem vários exemplos em nosso sistema desse tipo de ação.

Como revela José Miguel Garcia Medina, a "tutela jurisdicional executiva manifesta-se em sua forma mais genuína no processo de execução. Isso não impede, no entanto, que se realizem atos executivos no curso de outros processos, tal como ocorre com a execução da tutela antecipada, ou imediatamente após o proferimento da sentença e independentemente de processo de execução posterior, como ocorre nas ações executivas lato sensu" (6).

Assim, a evidência dos casos leva-nos à conclusão de que os atos executivos não são características somente no processo de execução. Embora este seja voltado à realização de atos executivos, nada impede que os atos de execução realizem-se em processos diversos.

Natureza jurídica do processo de execução


O direito brasileiro, seguindo a tendência da doutrina contemporânea, acolheu a concepção que separa o fenômeno jurisdicional em processo de conhecimento e processo de execução.


Cândido Rangel Dinamarco diz que "a relação processual de execução, da mesma forma que a cognitiva, é um complexo de situações jurídicas ativas e passivas que se sucedem dialeticamente através dos atos do procedimento" (7). O processo de execução e o de conhecimento são relações processuais de espécie diversa, mas sempre relações processuais.


O processo executivo não é de origem romana, porque o direito romano não conheceu um verdadeiro processo jurisdicional executivo, tal como o direito moderno o concebe, "e a formação do conceito de processo de conhecimento ligado historicamente à simultânea formação do conceito de processo de execução, concebido como instrumento jurisdicional exclusivo para a veiculação de todas as pretensões executivas" (8).


Segundo o Código de Processo Civil de 1939, art. 196, o processo (instância) começará pela citação do réu e terminará pela execução de sentença, repetindo o que dispunha o art. 220 do Código Paulista. Nessa época, tudo era feito em um só processo e a execução não era mais que mera fase do processo. Era a negação da autonomia do processo executivo.

A autonomia do processo de execução, hoje uníssona na doutrina, nasceu da necessidade teórica de dar fundamento mais ao princípio da unidade e autonomia dos instrumentos executórios do que propriamente a uma exigência lógica que tivesse em si mesma a sua justificação final. A unificação dos meios executórios, reunidos num único processo de execução, fez-se mediante a redução da atividade jurisdicional executiva à execução por créditos, a fim de reduzir também a estrutura da relação obrigacional.

Poucos são os doutrinadores que não reconhecem a autonomia do processo de execução (9) e muitas as razões que convergem para a afirmativa de ser o processo de execução realmente autônomo, como se pode notar das razões abaixo assinadas:

1) O processo de execução instaura-se pela iniciativa da parte (caput art. 614), terminando por sentença (art. 795);

2) Necessita de citação para o início da execução forçada;

3) Ele admite a execução por título extrajudicial ou por condenação criminal, que desta forma não foram precedidos de processo civil de conhecimento;

4) As partes podem ser diferentes do processo de conhecimento, a exemplo da execução contra o fiador ou contra o responsável não obrigado;

5) Não é possível a extinção do processo no lapso do tempo que vai do trânsito em julgado da sentença condenatória à iniciativa da execução pelo vencedor, pela razão da inexistência de processo pendente;

6) No período acima referido, conta-se prazo para a prescrição da execução, porque o direito não está sub judice;

7) Nem todo processo de conhecimento tem como conseqüência uma execução forçada: o cumprimento voluntário da condenação, por exemplo, torna impossível o processo de execução; as sentenças declaratórias e constitutivas não comportam realização de processo executivo;

8) Processo de conhecimento e execução podem correr ao mesmo tempo, paralelamente, a exemplo da execução provisória e dos embargos.

Diante dessas considerações, não se pode negar o caráter processual da execução, entretanto, a afirmativa não pode ser absoluta.

A mais clara evidência da relatividade da autonomia do processo de execução em face do de conhecimento está nas chamadas ações executivas lato sensu, que ensejam, desde logo e na mesma relação processual, o reconhecimento de um direito e a prática dos atos executivos tendentes a efetivar o direito (tutela de execução). Há vários exemplos em nosso sistema: ação de depósito, reintegração de posse, despejo, dentre outras.

A reforma de 1994 foi fundamental para romper com o dogma absoluto da separação entre processo de cognição e execução. Com a criação dos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil, possibilitou-se antecipar os atos da execução, ainda que em caráter provisório. Tais institutos possibilitaram as providências práticas para satisfação do direito material afirmado pelo demandante, ampliando, com isso, o surgimento de novas formas de ação executiva latu sensu.

Teori Albino Zavaski afirma: "a autonomia do processo de execução não é absoluta, nem decorre de uma imposição de natureza científica. Depende, na verdade, de opção política do legislador, que, atento para a natureza instrumental do processo, deve dotá-lo de formas e procedimentos adequados ao fim a que se destina: a realização segura, célere e efetiva do direito material" (10).

Conclusão

Revisar os conceitos e a autonomia do processo é tema de ordem hoje. Repensar antigos dogmas é fundamental, bem como se preparar para as futuras e necessárias mudanças do sistema processual atual.

No âmbito da tutela jurisdicional executiva, o que deve ser entendido é que ela é voltada para a satisfação de uma pretensão executiva, que pode ser ligada ou não a um processo de execução.

(1) Araken de Assis, Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, Rio de Janeiro, pg. 29;

(2) Citação de todos os autores, Leonardo Greco, Revista de Processo 94;

(3) Execução Civil, 8ª ed., Malheiros, São Paulo, 2002, pg. 139;

(4) citação de Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, RT, São Paulo, 2000, pg. 25;

(5) Em sentido contrário a Pontes de Miranda, em que o adimplemento, portanto fim último da execução, é o ato do Estado quando satisfaz a pretensão jurisdicional executiva; Manual do Processo de Execução, RT, São Paulo, 2001, pg 89.

(6) José Miguel Garcia Medina, Execução Civil – Princípios Fundamentais, RT, São Paulo, 2002, pg. 53;

(7) Ob. cit., pg. 135;

(8) Ovídio A. Baptista da Silva, ob. cit., pg. 19;

(9) As exceções se mostram infundadas, antigas e fundadas em motivos pouco claros. Por exemplo, Carlo Furno, assevera que o procedimento é privado "dos caracteres típicos do juízo, principalmente do contraditório"; Mortara, afirma que o emprego da força é conseqüência da jurisdição e seu exercício toca ao governo, e não ao juiz. (Araken de Assis, Manual do Processo de Execução, nota de rodapé, pg. 101).

(10) Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 8, RT, São Paulo, 2000, pg. 44;

Graziela Cunha é advogada, mestranda em Processo Civil pela PUC-SP e colaboradora de Carta Maior.

 

 

Fonte:http://www.cartamaior.com.br