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A apresentação imediata do preso em flagrante ao juiz no combate à tortura

ROBERTO DELMANTO JUNIOR

A cidadania, que é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, não se traduz simplesmente no direito de votar e ser votado, mas principalmente implica na prerrogativa de "gozar de todos os direitos e vantagens inerentes a essa condição" (C. MONCADA, Lições de Direito Civil, 2ª ed., 1º vol., pág. 303, in JOÃO MELO FRANCO e HERLANDER ANTUNES MARTINS, Dicionário de Conceitos Jurídicos, Coimbra, Almedina, 1993, p. 169), que decorrem do valor mundialmente reconhecido e constitucionalmente assegurado da dignidade do ser humano.

No que concerne à atuação, em especial, do advogado criminal, a maioria dos direitos que ele busca fazer valer ou preservar decorre diretamente desse valor fundamental da dignidade, que transcende ao conceito político de cidadania, não se restringindo, aliás, ao cidadão brasileiro, mas a qualquer estrangeiro que esteja de passagem por nosso território.

Quanto à persecução penal, em que a maior das liberdades individuais – o direito de ir e vir – é posta em jogo, o processo penal surge como "um estatuto de garantias sobretudo para quem é perseguido penalmente" (JULIO B. MAIER, Derecho Procesal Penal Argentino, Buenos Aires, Editorial Hammurabi, 1989, tomo I, p. 118), visando proteger tanto o inocente, como também o culpado, na medida em que busca impedir que a condenação seja obtida por métodos que violem a sua dignidade. Aliás, não é só a dignidade daquele que sofre o abuso dos órgãos de repressão que resta violada com o emprego da tortura, mas igualmente, e de maneira reflexa, a dignidade do próprio Poder Judiciário, como adverte GERMANO MARQUES DA SILVA: "A eficácia da justiça é também um valor que deve ser perseguido, mas porque numa sociedade livre e democrática os fins nunca justificam os meios, só será louvável quando alcançada pelo engenho e arte, nunca pela força bruta, pelo artifício ou pela mentira, que degradam quem as sofre, mas não menos quem as usa" (Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, 1993, vol. I, pág. 54).

É certo que o advogado criminal encontra na própria Constituição da República grande parte de seus subsídios, uma vez que nela estão inseridas inúmeras normas de cunho penal e processual penal, extremamente específicas.

Todavia, ao lado de nossa Lei Maior, existem dois importantíssimos tratados internacionais dirigidos à proteção dos direitos humanos.

Esses tratados foram subscritos pelo Brasil, ratificados pelo Poder Legislativo após longas décadas de espera e, seguindo nossa tradição lusitana, logo em seguida promulgados pelo Presidente da República, através de dois decretos.

O primeiro, mundialmente conhecido e fartamente citado na literatura jurídica européia, é o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque, que data de 1966, o qual depois de 25 anos, ou seja, somente em dezembro de 91, foi ratificado pelo Congresso Nacional por via do Decreto Legislativo nº 266 e promulgado pelo Presidente da República através do Decreto nº 592, de 6 de julho de 92.

O segundo tratado, amplamente difundido na América, é a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, também conhecido como Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, que depois de longos 23 anos foi igualmente ratificado pelo Poder Legislativo, por intermédio do Decreto nº 27, de 25 de setembro de 92, sendo promulgado pelo Presidente da República com a publicação do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992.

A importância desses tratados em matéria penal e processual penal é enorme, uma vez que a Constituição da nossa República os acolhe, erigindo-os ao patamar constitucional.

A Lei Fundamental brasileira, após elencar, em seus artigos 1º e 5º, inúmeros direitos fundamentais – aqueles que nas palavras de PONTES DE MIRANDA se impõem perante o Estado, delimitando seu poder (Comentários à Constituição de 1946, 4ª ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1963, tomo IV, pág. 238) –, no § 2º de seu art. 5º estatui: – "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Assim, ao lado da Constituição da República, encontramos verdadeiras fontes de Direito Penal e Processual Penal nesses dois diplomas internacionais.

Cada um desses tratados – o Pacto Internacional de Nova Iorque e o Pacto de San José da Costa Rica –, comparados com a nossa Constituição, possui suas peculiaridades e, sob alguns aspectos, um vai mais além do que o outro em termos de proteção dos direitos fundamentais.

Após estudo comparativo, pudemos verificar, por exemplo, que alguns direitos que não estão expressamente mencionados na Constituição da República, o são no Pacto de Nova Iorque ou no Pacto de San José.

A propósito, há um direito reconhecido nesses dois diplomas internacionais que não se encontra inserido na Constituição e tampouco nas leis ordinárias brasileiras – inclusive na recente Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, que trata da repressão à tortura – o qual, em nosso entendimento, pode ser mais uma arma contra essa repugnante prática que continua a existir, principalmente na esfera policial.

Com efeito, enquanto nossa Lei Maior estabelece que a "prisão em flagrante será imediatamente comunicada ao juiz competente" (art. 5º, inciso LXIII), tanto o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque (art. 9º, número 3, 1ª parte), quanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, número 5, 1ª parte), garantem que o preso em flagrante será apresentado, ou conduzido, sem demora, à presença de um magistrado, o que de fato ocorre em inúmeros países.

Assim, já ao lavrar o flagrante, efetuando o interrogatório do preso, a autoridade policial saberá que, logo, terá de apresentá-lo a um Juiz, para que este, diante do acusado, decida sobre a legalidade da prisão em flagrante e a sua eventual manutenção (CR/88, art. 5º, LXV; CPP, art. 310).

Em outras palavras, seu interrogatório será efetuado já com a imediata perspectiva das autoridades policiais de conduzí-lo à presença de um Magistrado.

Mesmo que não existam lesões perceptíveis ao Juiz, sempre haverá o receio, por parte desses maus policiais, de que o preso possa denunciar a tortura, ainda que sob ameaça de retaliações. Tudo dependerá da sensibilidade do Magistrado em prontamente mandar submetê-lo a exame de corpo de delito, determinar a imediata responsabilização da autoridade policial com base na nova Lei nº 9.455/97, a mudança do local da prisão e conseqüentemente das pessoas que o mantém sob custódia, e até o relaxamento do flagrante caso ele tenha se baseado em confissão obtida sob tortura.

Inquestionavelmente, a apresentação do preso autuado em flagrante ao Magistrado será um forte fator de inibição à essa prática brutal e covarde.

No que toca à efetivação deste preceito, entendemos ser ele auto-aplicável, uma vez que o § 1º do do art. 5º de nossa Constituição, ao estabelecer que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata", abrange, por óbvio, não só as insculpidas na Magna Charta, como também as expressas nesses dois pactos internacionais.

Nem se diga, aliás, que as condições de nossas instalações judiciárias não permitiriam o cumprimento dessa norma. Da mesma maneira que os acusados presos provisoriamente são apresentados no Foro Criminal para interrogatório judicial, eles podem ser perfeitamente conduzidos à presença de um Juiz, logo após lavrado o auto de prisão em flagrante.

É mister que esse preceito seja amplamente divulgado, exigindo-se o seu imediato cumprimento em obediência ao que foi estatuído pelo Legislador constituinte, que expressamente quis recepcionar, não em patamar ordinário, mas constitucional, todos os diplomas internacionais que o Congresso Nacional venha a ratificar e o Presidente da República a promulgar.

A pronta apresentação do preso autuado em flagrante a um Juiz é, assim, muito mais do que uma simples formalidade; significa, sobretudo, a harmonização de nosso processo penal com o respeito a valores mundialmente reconhecidos, como o da dignidade do ser humano, repudiando-se a tortura e adotando todas as regras que, de uma forma ou de outra, nos auxiliem nessa difícil batalha.


* Artigo publicado no jornal A Tribuna do Direito, julho de 1997, pág. 34.

 

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