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A
distribuição prévia do inquérito policial ou das peças de informação é, sempre,
necessária? (*)
Sergio
Demoro Hamilton (**)
1. Durante
vários anos, mais precisamente a partir de 09.04.1991, esteve em vigor o Provimento
de nº 255/91 da Corregedoria-Geral da Justiça de nosso Estado, estabelecendo,
em seu artigo 1º, que somente seriam admitidos para distribuição às varas de
competência criminal os inquéritos policiais e outras peças de informação
quando houvesse:
a) denúncia
ou queixa;
b)
pedido (rectius, requerimento) de
arquivamento;
c) procedimento
instaurado a requerimento de particular no objetivo de propor ação penal,
exclusivamente, privada, por força do disposto no art. 19 do Código de Processo
Penal;
d)
requerimentos de providências cautelares de natureza pessoal ou real, tal como
ocorre nas hipóteses de representação objetivando a prisão provisória ou na
busca e apreensão, arresto e outros;
e)
comunicação de prisão em flagrante ou qualquer outra forma de constrangimento
aos direitos fundamentais elencados na Constituição Federal, como, verbi gratia, o direito à fiança (art.
5º, LXVI).
Da
mesma forma, resultou assentado naquele ato normativo que, nas chamadas funções
judiciais anômalas, os juízes remeteriam diretamente ao Ministério Público,
independentemente de distribuição, as comunicações ou os requerimentos que
objetivassem a instauração de procedimentos investigatórios (arts. 5º e 40 do
CPP).
O
aludido Provimento, em seus considerandos, partia da acertada premissa de que
“as atividades estatais de promover a ação penal pública, exercer o controle
externo da atividade policial, requisitar diligências investigatórias bem como
instaurar inquérito policial não cabem à função jurisdicional” (art. 129 da
Constituição Federal).
Em
resumo, e por amor à brevidade, pode-se afirmar que o espírito do Provimento
era, todo ele, voltado no sentido de que os atos jurisdicionais seriam, como
não poderia deixar de ocorrer, exercidos pelo juiz, excluindo-se da apreciação
judicial aquilo que escapasse à sua esfera de competência, nos moldes tão bem
delineados na vigente Constituição Federal.
É
evidente que o ato normativo em questão não surgiu da noite para o dia, como
fruto de um leviano rompante. Muito ao
contrário, percorreu longo iter e
importou em percucientes estudos e amplos debates, como é próprio dos regimes
democráticos. Contou ele com a
participação do Poder Judiciário (através da sua Presidência e da
Corregedoria-Geral da Justiça), do Poder Executivo (por meio da Secretaria de
Estado de Polícia Civil) e do Ministério Público, através da sua Chefia.
E,
uma vez ultimado, vigorou durante quase sete anos.
E,
assim, vicejou, servindo de modelo para outra unidades da Federação a ponto de
merecer o aplauso de incontáveis doutrinadores.
2. Passado
tanto tempo, entrou em vigor, a partir de 01.12.1997, o Ato Executivo Conjunto
de nº 01/97, firmado pelo Sr. Desembargador Corregedor-Geral da Justiça do
Estado do Rio de Janeiro e pelo Sr. Secretário de Estado de Segurança Pública
do mesmo Estado, que, invocando as disposições consubstanciadas nos arts. 10 §
1º, 19 e 23 do Código de Processo Penal, determinou a remessa, pela autoridade
policial, do inquérito policial ao juiz competente, quando findo o prazo da sua
permanência, concluído ou não, na repartição policial de origem. O fundamento da nova sistemática adotada na
matéria parte da falsa premissa que “na
contextura da ordem constitucional vigente” (sic) torna-se necessária a interveniência da autoridade judiciária
na fase inquisitiva, em qualquer caso, e não somente para a prática de atos
jurisdicionais. Invocou, ainda, em prol
da medida tomada, a disciplina constitucional contida nos artigos 22, inciso I
e 61, parágrafo 1º, inciso II, letra “d” da nossa Carta Política. Por fim, o artigo 2º do aludido Ato
Executivo Conjunto estabeleceu normas para o futuro em relação aos inquéritos
distribuídos e com retorno à autoridade policial para cumprimento de
diligências. Também eles, uma vez
atendidas as diligências ou esgotado o prazo fixado, retornarão, diretamente,
ao juízo vinculado por força de prévia distribuição.
O
mencionado Ato Executivo Conjunto ganhou complementação, no âmbito específico
do Poder Judiciário, através dos Provimentos 54/97 e 55/97, do então Corregedor-Geral
da Justiça.
Como
de fácil observação, o novo ato normativo importou na ab-rogação do Provimento
de nº 255, de 09 de abril de 1991, da Corregedoria-Geral da Justiça, vigente,
como já assinalado, há quase sete anos.
A
providência, como abaixo será analisado, importou em irrefreável retrocesso na
sistemática procedimental dos inquéritos policiais, pondo fim a uma conquista
pioneira do Ministério Público de nosso Estado, que veio a servir de modelo
para outras unidades da Federação. É
bom ressaltar que ela não revestia exclusiva finalidade prática, o que, por si
só, já mereceria meditação antes da sua abolição. Ao contrário, ela repousava em sólida e respeitável doutrina
surgida após o advento da Constituição Federal de 1988.
3. Ao
versar sobre as “funções institucionais do Ministério Público”, a Constituição
do Estado do Rio de Janeiro assinala, em seu artigo 173, incisos I, VII e VIII,
entre outras as de:
“I – promover,
privativamente, a ação penal pública na forma da lei;
.......................................................................
VII – exercer o
controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada
no artigo anterior;
VIII –
requisitar diligências investigatórias e a instauração do inquérito policial,
indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;”
Trata-se,
como se pode notar, a vol d'oiseau, de
norma de repetição, que reproduz, como não poderia deixar de ser, preceitos
estatuídos na Constituição Federal (artigo 129, incisos I, VII e VIII),
obviamente de observância obrigatória nos Estados.
A
análise acima exposta tem por fim demonstrar a afronta a dispositivos da
Constituição Estadual, aqui examinados como normas de repetição de preceitos
emanados da própria Constituição Federal, ipso
facto, igualmente violados.
Dessa
maneira, o ato normativo proveniente daquelas autoridades padece de manifesta
inconstitucionalidade em face da própria Constituição Federal.
4. O
Provimento revogado teve por escopo disciplinar a atuação do Poder Judiciário
de nosso Estado quanto à sistemática adotada para os inquéritos policiais e,
como já resultou assinalado (1, supra),
decorreu de aprofundado e cuidadoso estudo entre membros do Poder Judiciário e
do Ministério Público, envolvendo, também, a direção da Polícia Judiciária (rectius, Polícia Civil), todos irmanados
no objetivo de dar presteza à tramitação do inquérito policial, queimando uma
etapa ociosa e ilógica, com pleno apoio na ordem constitucional vigente.
Não
se tratava, repita-se até a náusea, somente de uma providência prática,
afastando do inquérito policial um fator burocrático e complicador, mas sim de
amoldar aquele procedimento administrativo à nova ordem constitucional.
Segundo
o Ato Executivo Conjunto de nº 01/97, bem como dos Provimentos 54/97 e 55/97,
teria ocorrido violação do art. 22, inciso I, da Constituição Federal, onde
versa ser da competência exclusiva da União legislar sobre direito processual e
que, assim sendo, os artigos 10 § 1º, 19 e 23 do Código de Processo Penal se
tornariam inócuos diante das normas traçadas pelo Provimento ab-rogado.
No
Ato Executivo Conjunto de nº 01/97, há, ainda, alusão ao art. 61, § 1º, inciso
II, letra “d” da Constituição Federal, cuja referência, ao que parece, decorre
de completa desinformação a respeito do tratamento legislativo atual do
Ministério Público, quer no plano federal, quer no âmbito estadual. Com efeito, encontram-se em vigor, há muito,
a Lei Complementar de nº 75 de 20 de maio de 1993 (em relação ao Ministério
Público Federal) e a Lei de nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (LONMP – em
relação ao Ministério Público dos Estados).
Nelas estão situados, como não poderia deixar de ser, os mesmos
princípios normativos advindos da Lei Maior, também repetidos na Constituição
Estadual. São duas leis orgânicas que
tratam da instituição do Ministério Público no âmbito das suas respectivas
atribuições, só cogitando de matéria processual incidenter tantum, como manda a boa técnica.
Não
há, em qualquer daqueles dois diplomas legislativos, qualquer preceito que
entre em testilha com o Provimento revogado.
5. O
atual Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941)
nasceu sob a égide da Constituição Federal de 1937, mantendo-se recepcionado,
no que respeita à matéria em exame, diante das Cartas Constitucionais de 1946 e
1967, uma vez que as últimas não cogitaram do controle externo da atividade
policial por parte do Ministério Público.
Com
o advento da Constituição Federal de 1988, o thema ganhou novo perfil face às novas funções institucionais
conferidas ao Ministério Público, redefinindo suas atribuições, ao mesmo tempo
em que se buscava preservar a imparcialidade do juiz.
Em
busca de tal desiderato, a Carta Política de 1988 estabeleceu:
“Art.
129 – São funções institucionais do Ministério Público:
I
- promover, privativamente, a ação penal pública;
................................................................
VII
- exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei
complementar mencionada no artigo anterior;
VIII
requisitar diligências investigatórias e a instauração do inquérito policial,
indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”.
Restou bem
clara a finalidade do texto constitucional ao conferir ao Ministério Público o
controle externo da atividade policial, ao mesmo tempo em que deixava certo que
ele se daria, principalmente, no âmbito do inquérito policial.
O
preceito constitucional mereceu regulação através da lei Complementar de nº
75/93 (Lei Orgânica do Ministério
Público da União), que, em seu artigo 9º, assegurou ao Ministério Público o controle
externo da atividade policial por meio de medidas judiciais e extrajudiciais,
abrangendo, inclusive, o exame da legalidade da prisão (art. 10).
Tais
preceitos aplicam-se, subsidiariamente, ao Ministério Público dos Estados, por
força do art. 80 da Lei 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (LONMP - Lei Orgânica
Nacional do Ministério Público).
Nessa
ordem de idéias, os parágrafos 1º e 3º do artigo 10, do Código de Processo
Penal, ao aludirem ao controle imediato do inquérito policial por parte do juiz,
não restaram recepcionados pelo sistema constitucional advindo da Lex Legum de 1988 por absoluta
incompatibilidade.
É
evidente que daí não se extrai a exclusão do controle judicial de todos os atos
ocorridos no curso do inquérito policial, tendo em vista a norma imperativa do
artigo 5º, XXXV da Lex Maxima. Em outras palavras: tal como previa o
Provimento ab-rogado, a matéria jurisdicional ficaria, sempre, afeta ao
juiz. Dele ficavam retiradas, apenas,
as chamadas funções jurisdicionais anômalas, que, em boa técnica e no
ensinamento da melhor doutrina, não se relacionam com o exercício da jurisdição.
Destarte,
reitere-se ad nauseam, o Provimento
revogado jamais vulnerou o princípio da inafastabilidade do controle judicial
(art. 5º, XXXV da Constituição Federal) na fase inquisitorial, desde que
cabível.
Confere-se,
dessa maneira, ao Ministério Público o controle imediato dos atos de
investigação, reservando-se ao juiz o controle mediato do inquérito policial,
quando estiver em jogo violação a direito individual assegurado pela
Constituição Federal.
Tais
princípios, não há negar, resultavam plenamente respeitados no Provimento, de
nº 255/91.
6. Deixando-se
de lado o exame da estrita legalidade do Provimento revogado, é bom assinalar
que ele teve também uma finalidade prática objetivando conferir maior agilidade
ao andamento do inquérito policial, sem qualquer ofensa aos dispositivos legais
invocados no Ato Executivo Conjunto de nº 01/97, ao pôr de lado um equivocado
entrave burocrático, verdadeira anomalia técnica destituída de sentido em um
procedimento de natureza administrativa.
Afastar
o Ministério Público do inquérito policial, tal como fez o Ato Executivo
Conjunto de 01/97, bem como os Provimentos que a ele se seguiram, representou,
sem dúvida, manifesta afronta à Carta Magna em razão dos princípios que, na
atualidade, regem a Instituição.
7. O
ponto central da porfia situa-se, no meu entendimento, no plano da não-recepção
ou, como preferem outros, no da revogação de lei ordinária por norma constitucional
superveniente. Com efeito, a norma
anterior, que não guarda compasso com o novo modelo constitucional, não pode
continuar projetando, para o futuro, sua eficácia.
Nesse
sentido, aliás, a decisão do Pretório Excelso, quando do julgamento da Rep.
de nº 1012, relator o Sr. Ministro Moreira Alves. Vale o registro de passagem do aludido julgado (in verbis):
“(omissis)
... A lei
ordinária anterior, ainda que em choque com a Constituição vigorante quando de
sua promulgação, ou está em conformidade com a Constituição atual e, portanto,
não está em desarmonia com a ordem vigente, ou se encontra revogada pela
Constituição em vigor, se com ela incompatível”
(in RTJ 95/980).
Haveria,
assim, no caso em exame, ab-rogação normativa em relação aos textos do Código
de Processo Penal que se encontram em descompasso com a nova Carta Política de
88.
Do
mesmo pensamento comunga o magistério do Professor Nagib Slaibi Filho[1][1], que, às claras, sustenta in verbis:
“Observe que o
princípio da continuidade da legislação ordinária significa que a norma
anterior é mantida perante a nova constituição desde que com ela materialmente
compatível evidentemente; se houver incompatibilidade da lei com a nova
constituição no que diz respeito ao seu conteúdo a questão fica resolvida com a
revogação da lei antiga (inferior) pela lei nova (e superior)”.
Constata-se,
pois, com inteira facilidade, que o Ato Executivo Conjunto de nº 01/97 não
alcançou, com a devida vênia, o espírito do Provimento de nº 255/91,
esquecendo-se, de forma imperdoável, que este foi editado sob a égide de um
sistema constitucional completamente diverso do anterior.
Sendo
o inquérito policial um procedimento administrativo, não haveria razão para sua
distribuição, uma vez que sujeito a controle externo do Ministério Público,
restando para o Judiciário o controle mediato, controle este, de resto,
repise-se ad infinitum, amplamente
resguardado pelo Provimento revogado.
Os
dispositivos constitucionais afrontados no aludido Ato-Executivo Conjunto
contêm poderes explícitos, que se traduzem em efetuar requisições e propor
ações, entre outros (art. 129, I e VIII) mas envolvem também, e
necessariamente, poderes implícitos. É conclusão
inafastável, caso não se pretenda reduzir as normas constitucionais a um flatus vocis, em discurso puramente
retórico, relegando os chamados poderes explícitos a atribuições ocas, inócuas,
sem repercussão prática alguma, insusceptível de operar no plano dos fatos.
A
Constituição Estadual/RJ, por seu turno, como norma de repetição, haveria de
reiterar as mesmas regras da Lei Maior em seu artigo 173, incisos I, VII e VIII.
A
essa altura da exposição, surge, de forma bem nítida, a razão pela qual a
Constituição Federal de 1988, em mais de uma passagem, houve por bem preservar
o Poder Judiciário da atividade de persecução criminal, no objetivo inequívoco
de assegurar ao juiz a imparcialidade, conferindo ao Ministério Público o
monopólio da ação penal (art. 129, I) e revogando, por tal razão, os arts. 26 e
531 do Código de Processo Penal bem como a teratológica Lei nº 4.611/65.
Dessa
maneira, ao contrário do que sustenta o Ato Executivo conjunto de nº 01/97, a
incompatibilidade com a “contextura da ordem constitucional vigente” (sic) reside, exatamente, no próprio ato
normativo em questão, ao contrário do Provimento ab-rogado, este sim,
perfeitamente adaptado ao modelo constitucional.
8. No campo do processo penal, vasto é o
ensinamento doutrinário no sentido de demonstrar o desacerto do ato normativo
que, na atualidade, rege a matéria em nosso Estado. Refira-se, muito a propósito, o magistério do Promotor de
Justiça-RJ e festejado Professor Afranio
Silva Jardim[2][2] que toca, de forma direta e sem rodeios, no punctum saliens da questão, demonstrando
o grave equívoco e o manifesto retrocesso em que incorreram os três atos que,
no momento, regem a distribuição dos inquéritos policiais no Rio de Janeiro.
São
suas palavras:
“... entendemos vedada
aos órgãos do Poder Judiciário qualquer atividade persecutória na fase
inquisitória, pré-processual. Não é
mais o juiz um dos destinatários da notitia criminis, em qualquer de suas
modalidades. Não pode mais o magistrado
requisitar a instauração de inquérito policial, desempenhando função anômala
dentro do sistema acusatório que se apresenta como pressuposto do devido
processo legal. Tais poderes são
incompatíveis com a nobre função de julgar, com a neutralidade e imparcialidade
do juiz. Agora o juiz somente deve
desempenhar função jurisdicional, dependendo sempre de provocação da parte,
através do exercício do direito de ação, seja de conhecimento, seja
cautelar... Tal perspectiva vem tonar
mais clara a regra do art. 129, inciso VII, da Constituição, que declara ser
função institucional do Ministério Público o controle externo da atividade
policial...”
Não
discrepa de tal orientação erudito trabalho do Professor Geraldo Prado[3][3], quando salienta não haver razão que justifique “a
imersão do juiz nos autos das investigações penais, para avaliar a qualidade do
material pesquisado, indicar diligências, dar-se por satisfeito com aquelas já
realizadas ou, ainda, interferir na atuação do Ministério Público, em busca da
formação da opinio delicti. A imparcialidade do juiz, ao contrário,
exige dele justamente que se afaste das atividades preparatórias”... (destaques
meus).
Era,
justamente, no objetivo de afastar o juiz da fase preliminar de investigação,
com a sadia finalidade de resguardar sua imparcialidade, que o Provimento ab-rogado
encontrava sua razão de ser.
Ada Pellegrini Grinover[4][4], ferrenha defensora
da ampla atuação do juiz, quer no processo civil, quer no processo penal,
igualmente deixa claro que, na fase de investigação, “o juiz só pode ter os
poderes de determinar medidas cautelares, sob pena de voltar-se à figura do
juiz-inquisidor do processo antigo” (destaques meus).
Em
recente estudo doutrinário, quando tive a oportunidade de examinar a falácia do
sistema acusatório em nosso processo penal, procurei demonstrar que a fase que
antecede a ação penal exige o completo afastamento do juiz da persecução
criminal, pelo menos em um sistema que pretenda ser acusatório.. A presença do magistrado só se faria sentir
quando da prática de atos jurisdicionais típicos, realizados no objetivo de
assegurar direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, como, à
guisa de exemplo, ocorre com as cautelares de natureza pessoal (decretação de
prisão preventiva, arbitramento de fiança etc..) ou real (arresto, seqüestro etc...)[5][5].
9. A
alteração do art. 10 do Código de Processo Penal, que permitiria a remessa
direta do inquérito policial pela Polícia Judiciária (rectius, Civil) ao Ministério Público, sem passar pelo Judiciário,
dando ligeireza, como não poderia deixar de ser, ao trâmite do procedimento,
encontra-se sem andamento no Congresso[6][6].
Observe-se, por sinal, que não é somente o art. 10 do Código de Processo
Penal que está a exigir modificação na fase pré-processual, como ficou visto (1
e 2, supra).
10. A
matéria comporta ainda análise sob o aspecto da conveniência e da oportunidade
da medida adotada no Ato Executivo Conjunto de nº 01/97 e nos Provimentos dele
resultantes.
Restou
configurada a manifesta inconstitucionalidade do ato normativo atualmente em
vigor (7, supra). Cumpre examiná-lo, porém, por outro ângulo.
Que
dizer dele, então, no plano da conveniência?
Trata-se,
impõe-se o destaque, de retrocesso que irá atingir, do ponto de vista da
eficiência, não somente o Ministério Público como também o funcionamento da
persecução penal vista como um todo.
Com efeito, o inquérito policial passará, desnecessariamente, a viajar
de Herodes para Pilatos. Vai do
Delegado para a distribuição; desta segue para o juiz; o magistrado despacha,
mandando os autos com vista ao Ministério Público; este, por sua vez, após
oficiar, faz com que os mesmos sejam conclusos ao juiz, que, por seu turno, no
caso de devolução, despachará determinando a volta do procedimento para a
autoridade policial. E, na volta, tudo
se repetirá, desde que não concluída a investigação.
Quanta
inutilidade!
Quanta
perda de tempo!
Convém
salientar que a medida, além de tornar infinitamente mais lento o andamento do
inquérito policial, só servirá para sobrecarregar os juízes, atribuindo-lhes um
ofício indevido, desnecessário e destituído de qualquer sentido lógico. Mais grave ainda, tal acréscimo de trabalho
surgiu, justamente, no momento em que haviam sido extintas dez varas criminais
na Comarca da Capital.
É
ou não um contra-senso?
Em
artigo assinado pelo então Corregedor-Geral da Justiça, publicado no jornal “O
Globo”, de 21 de novembro de 1997 (p. 06), ficou dito que “existem hoje, nas
Centrais de Inquérito do Ministério Público, mais de 150.000 inquéritos
policiais (os números então indicados são de exclusiva responsabilidade daquela
ilustre autoridade judiciária), muitos dos quais com andamento procedimental
debilitado, quase que integralmente paralisado” (sic).
Aqui,
prestadas as vênias de praxe àquela douta autoridade, faz-se necessário um
grave reparo aos dizeres do aludido artigo.
Os inquéritos em questão, que, para usar as próprias palavras do
eminente Corregedor-Geral da Justiça, constituem “estratosférico acervo” (sic), não se encontravam nas “Centrais
de Inquérito”. Eram, como ocorre até
hoje, inquéritos policiais tramitando nas diversas delegacias policiais. Tais procedimentos existiam, existem e
continuarão a existir após a vigência do malfadado Ato Executivo Conjunto. Muito pelo contrário, sem controle direto,
efetivo e real por parte do Ministério Público, o número só tenderá a aumentar,
pois que o andamento dos procedimentos em questão, como de superficial
observação, tornou-se muito mais prolongado.
A
análise então empreendida pelo Sr. Corregedor-Geral da Justiça parte de um
equivocado diagnóstico do problema da persecução penal em nosso País. De nada adiantarão o talento, a eficiência e
a capacidade de trabalho de promotores e juízes se a Polícia não investigar. Não precisa ser um ulemá para, com
facilidade, chegar-se a tal conclusão.
A
doutrina mais atualizada já detectou, faz muito, a solução para o
problema. Falta, talvez, vontade
política para pô-la em prática. Aqui,
no entanto, não é a sede adequada para o exame da matéria.
Merece
especial registro o fato de que foi, justamente, a partir da existência das
“Centrais de Inquéritos”, providência pioneira em todo o Brasil incumbida de
fiscalizar a investigação criminal quando a Polícia não a realizava a contento,
que foram presos, processados e condenados:
a)
a cúpula do “Jogo do bicho”;
b) os
responsáveis pela máfia da Previdência;
c)
os grupos de extermínio existentes dentro da Polícia Militar e, last but not least;
d) os
responsáveis pelas Chacinas da Candelária e Vigário Geral.
É
caso de indagar: seria proveitosa à persecução criminal o novo modelo imposto
pelo Ato Executivo Conjunto de nº 01/97 e pelos provimentos de nos
054/97 e 055/97, que a ele se seguiram?
Outra
inquietante pergunta acode-me ao espírito: a quem aproveita a lerdeza agora
imposta à investigação penal pelo novo modelo traçado pelos malsinados atos
normativos?
Deixa-se,
agora, a resposta à argúcia e ao talento do eventual leitor.
11. Mas,
ainda há o que dizer.
A
providência, que se originou do Ato Executivo conjunto de nº 01/97 e dos que
lhe serviram de complemento no âmbito interno da Corregedoria-Geral de Justiça,
mereceu o repúdio da opinião pública, através de editorial do jornal “O Globo”
sob o título “Central de Inquéritos – Retrocesso Anunciado”. Ali o tema ganhou apropriado tratamento,
tornando-se mesmo acessível ao grande público não iniciado nas questões
processuais aqui versadas. Vale o
registro de passagem do perfeito diagnóstico traçado pelo prestigioso órgão da
imprensa brasileira:
“A medida, longe de resolver o problema, deve
tornar mais lento o burocratizado inquérito policial. E provavelmente vai sobrecarregar os juízes, que já são poucos
para a quantidade de processos nas varas criminais do Rio de Janeiro. É bom não esquecer que recentemente dez
varas foram extintas... ”[7][7]
12. Como
de superficial observação, os atos normativos em exame desmantelaram, de uma
hora para outra, sem a devida ponderação e mensuração das conseqüências,
sistema de distribuição de inquéritos e peças informativas que tinha em seu
favor, ao lado da racionalidade que inspirava e da constitucionalidade de que
se achava revestido, o fato de estar funcionando a contento desde 1991. Não se está, aqui, a dizer que a
investigação penal tenha produzido, desde aquela data, resultados plenamente
satisfatórios. Longe disto. A solução do problema passa por questões
estruturais bem mais amplas que não dependem, diretamente, do Ministério
Público nem do Poder Judiciário.
Quer-se frisar outra coisa: os atos normativos criticados não somente em
nada contribuíram para o aperfeiçoamento do iter
procedimental dos inquéritos policiais e demais peças de informação, como
também agravaram as mazelas da investigação penal. Na verdade, introduziram, na já difícil e morosa tramitação dos
inquéritos policiais e das peças informativas, novo elemento de procrastinação
perfeitamente dispensável, além de flagrantemente inconstitucional. O fator complicador, reside, justamente, no fato
de restaurar a inútil interposição de juízes entre o agente da
investigação – a Polícia Judiciária (rectius, Civil) – e o seu quase
exclusivo destinatário – o Ministério Público, tornando ainda menos eficaz a
investigação e a repressão penais.
13. Soa-me,
pois, com bastante estranheza, recente decisão do Egrégio Supremo Tribunal
Federal[8][8] que, nos limites de uma medida liminar, manteve o
inquérito policial sob controle do juiz, fora dos casos em que a sua
intervenção se torne obrigatória. A
cautelar foi deferida, em parte, na Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº
1.615-6, relator o Sr. Ministro Néri da Silveira. A medida judicial em questão teve como requerente o Partido
Liberal - PL e como requerido o Procurador-Geral de Justiça do Distrito Federal
e Territórios. Em sessão plenária e por
votação unânime, o Pretório Excelso entendeu que o art. 4º da Portaria de nº
340, de 09 de maio de 1997, do Procurador-Geral de Justiça do Distrito Federal
e Territórios, constituía ato normativo, regra que, em sua essência, afasta a
incidência do art. 16 do Código de Processo Penal, ofendendo, nesse passo, o
art. 22, inciso I, da Constituição Federal, pois a matéria dependeria de
regulação advinda de lei. Da mesma forma
e pelas mesmas razões, suspendeu, até o julgamento final da ação, o art. 5º da
aludida Portaria, considerando que, no inquérito policial, “o procedimento vai
ao MP com vista, após ingressar na esfera judicial, em face do que estipula o
art. 10, § 1º”.
Observe-se
que, não obstante a remissão feita na aludida Portaria ao Provimento nº 7, de
14.4.1997, da douta Corregedoria de Justiça do Distrito Federal e Territórios,
que endossava a orientação do Parquet,
entendeu a Corte Suprema que aquele órgão judiciário não poderia “delegar a
competência a que se refere o art. 16 do CPP”.
Aqui,
ainda uma vez mais com todas as vênias, indago, com certa perplexidade:
haveria, naquela hipótese, delegação de competência?
É
curial, todos sabemos, que a jurisdição é indelegável. Nota
bene: a jurisdição. Porém, o que se
sustentou, até aqui, nestas despretensiosas linhas, é que tais atos não
revestem caráter jurisdicional. Na doutrina, por tal razão, são chamados de
atos judiciários em sentido estrito ou, mais comumente, como função judicial
anômala, providências, que, segundo entendo, estão definitivamente banidas do
nosso processo penal, pois não recepcionadas pela Carta Magna de 1988. Caso estivesse em jogo ato jurisdicional,
ninguém ignora, o juiz, evidentemente, não poderia delegar a quem quer que seja
o seu poder de julgar, salvo se suspeito (art. 254 do CPP) ou impedido (art. 252 do CPP).
Assim,
data venia, não houve da parte da
ilustrada Corregedoria da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
qualquer determinação que importasse em delegação de competência.
É
certo que se trata de medida cautelar, tendo por finalidade evitar “conflitos
em órgãos de persecução criminal, conforme a inicial (da ADIN) o refere”.
Ignoro
os conflitos que estariam ocorrendo em Brasília entre os órgãos investidos da persecutio criminis. Posso afirmar, no entanto, que, aqui, no Rio
de Janeiro, tudo fluía comme il faut,
até o advento dos atos normativos objeto de crítica no presente estudo.
É
certo, também, que, no voto condutor do Senhor Ministro Néri da Silveira, ficou
clara, como era de ser esperado em uma medida de caráter liminar, a
provisoriedade da decisão. Com efeito,
está dito em sua manifestação jurisdicional:
“Se conviria ou não
esse procedimento previsto na Portaria atacada é matéria, aqui, insustentável de
exame”.
Aguarda-se,
pois, com iniludível ansiedade, a manifestação final da mais elevada corte de
justiça do País.
http://www.amperj.org.br/associados/
(*) Outono de 2000.
(**) Sergio Demoro Hamilton é Procurador de Justiça no Estado do Rio de Janeiro.
[1][1] Nagib Slaibi Filho, in Anotações à Constituição de 1988, p. 80, 1989.
[2][2] Afranio Silva Jardim, in Direito Processual Penal, p. 467, 4ª edição, Forense, Rio, 1991.
[3][3] Geraldo Prado, in Sistema Acusatório, p. 153, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1999.
[4][4] Ada Pellegrini Grinover, “A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório”, in Doutrina, nº 07, pp. 188/199, Instituto de Direito, 1999.No aludido artigo, a eminente jurista chega a sustentar, até mesmo, que “não há razão para se retirar do juiz a iniciativa instrutória, mesmo no processo civil que verse sobre direitos disponíveis”.
[5][5] Sergio Demoro Hamilton, “A Ortodoxia do Sistema Acusatório no Processo Penal Brasileiro: uma falácia”, estudo disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.amperj.org.br/associados/pinho, desde 26.06.2000.
[6][6] Informação colhida em “O Estado de São Paulo”, de domingo, 30 de abril de 2000, versando a respeito de emendas constitucionais, projetos de lei e medidas que abordam a questão da impunidade, sob o título genérico “Projetos do governo ameaçam combate à corrupção”, matéria jornalística assinada por Bruno Paes Manso. Na aludida reportagem, foram colhidas as opiniões do Sr. Ministro Carlos Velloso, Presidente do Supremo Tribunal Federal, do Juiz Federal, Dr. Flávio Dino, Presidente da Associação dos Juizes Federais do Brasil e do Procurador de Justiça-RJ, Dr. Marfan Martins Vieira, na qualidade de Presidente da Confederação Nacional do Ministério Público (CONAMP), atual Associação Nacional dos Membros do Ministério Público.
[7][7] “O Globo”, de 21.11.97, p. 06 - “Opinião”.
[8][8] “ADePol - Notícias”, ano XIV, nº 75, outubro-novembro/99, p. 99, Órgão de Divulgação da “ADePol-RJ”.