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A
ilegalidade das vpis, das sindicâncias, dos acautelamentos e quejandos
Sergio Demoro Hamilton
1. Recentemente fui convocado pela
Coordenação da 1ª Central de Inquéritos do Ministério Público – RJ para
examinar minuta de documento destinado a fixar normas de atuação das
autoridades policiais e de membros do Ministério Público no âmbito da
"Delegacia Modelo". Uma vez aprovado o projeto firmar-se-ia um
"Ato Conjunto", do Procurador-Geral de Justiça e do Secretário de
Estado da Segurança Pública, regulando as atribuições do Parquet e da
Polícia Civil em relação às ocorrências levadas a registro na "Delegacia
Modelo", cuja circunscrição corresponderia à da 5ª Delegacia Policial.
2. Louve-se,
antes de tudo e acima de tudo, o esforço empreendido pelos autores do projeto
no objetivo de encontrar solução para uma série de problemas que, de longa
data, aflige, principalmente, os Promotores de Justiça.
Digna de elogio, também, a atitude do
Procurador-Geral que, buscando emprestar tratamento jurídico adequado para
graves pendências, há muito exigindo regulamentação normativa, buscou ouvir os
Promotores de Justiça diretamente envolvidos com o problema. E, eles, para
minha honra, desejaram trocar idéias com o autor destas linhas.
3. Parece-me
que a "Delegacia Modelo" constitui um plano-piloto que, se bem
sucedido, seria implantado nas demais delegacias do nosso Estado. Daí a
amplitude constante da regulamentação que tive a oportunidade de examinar.
4. Verifica-se
daquele expediente normativo, que, na realidade, fica instituído um verdadeiro
pré-inquérito, legalizando a figura anômala do "acautelamento",
quando, através da análise do registro de ocorrência (RO), a autoridade
policial verificar a inexistência da materialidade da infração penal e de
"elementos" (rectius, indícios) de autoria. É a ressurreição,
pura e simples, das VPIs (verificação da procedência de informação), outra
anomalia, já que não prevista em nossa lei processual, nos moldes e com as
conseqüências que o Ato-Conjunto lhe empresta.
5. A
chamada "VPI", repousa, quero crer, na equivocada interpretação dos
arts. 5º, parágrafo 3º e 304, parágrafo primeiro do Código de Processo Penal,
assim como na leitura canhestra do art. 339 do CP.
O primeiro daqueles dispositivos da lei
processual estabelece que qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da
existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou
por escrito, comunicá-la à autoridade policial e esta, verificada a
procedência das informações (VPI), mandará instaurar inquérito.
É evidente – e isto ninguém de elementar bom
senso contesta – que a autoridade policial terá, sempre, que proceder à
aferição a respeito da seriedade da notitia criminis, tendo em conta
que, pelas razões mais diversas (insanidade mental, vingança, equivocada
interpretação do fato, leviandade, extorsão, etc...) uma falsa
comunicação pode ser prestada à autoridade policial.
Diga-se o mesmo – e com maior razão! – quando
estiver em exame notitia criminis coativa, qual se dá com a prisão em flagrante,
resultando daí o justificado cuidado com que a matéria é tratada no parágrafo
primeiro do art. 304 do CPP, ao prever que o conduzido só será recolhido
à prisão se das respostas (do condutor, das testemunhas, do ofendido e do
próprio conduzido, se ele as der) resultar fundada suspeita da prática do fato
e de indícios da autoria.
Na realidade, apesar da redação dada ao caput
do texto legal, a prisão em flagrante só se efetivará neste segundo
momento. Antes haveria mera captura do conduzido, isto é, momentânea privação
da liberdade de uma pessoa até que se verifique se o caso enseja ou não o
recolhimento à prisão. Sem tais cuidados, a autoridade policial poderia vir a
praticar, pelo menos em tese, o crime de exercício arbitrário ou abuso de
poder, indicado no art. 350 do Código Penal. É certo que reina discussão a
respeito da vigência de tal dispositivo da lei penal básica, sustentando
respeitável corrente doutrinária que ocorreu ab-rogação daquele texto legal por
parte da Lei nº 4.898, de 09/12/65, que define os crimes de abuso de autoridade
(arts. 3º e 4º). Porém, este é um outro tema que não interessa, diretamente,
para o presente estudo.
De qualquer forma, o que pretende a lei
processual é evitar que a autoridade policial fique vinculada a uma notícia de
crime absurda, agindo como se fosse um autômato a legitimar qualquer leviandade
partida do particular ou mesmo de um agente de autoridade, pelos motivos mais
diversificados, como já ficou registrado acima.
É certo, igualmente, que o art. 339 do CP, ao
definir o crime de denunciação caluniosa, fala em dar causa a instauração de
"investigação policial ou de processo judicial contra alguém,
imputando-lhe crime de que o sabe inocente".
Aqui, da mesma forma, a questão não muda de
figura. Não haverá necessidade de instauração de inquérito policial, desde que
o sujeito ativo do crime a que alude o art. 339 do CP movimente a máquina
policial com uma falsa denunciação, abortada no nascedouro pela autoridade
policial desde que constate a sua evidente impropriedade pelos diversos motivos
antes registrados. Dessa maneira, o crime de denunciação caluniosa já estaria
consumado a partir do momento em que tivesse início a colheita de dados no
sentido de apurar o fato típico noticiado falsamente (inquirição de
testemunhas, ouvida do ofendido, etc...), muito embora ainda não se
tenha instaurado inquérito policial.
Portanto, todas estas providências apresentam
dois objetivos bem claros: primo, evitar que uma pessoa se veja exposta
aos azares de um inquérito policial sem qualquer motivação; secundo:
acautelar a autoridade policial contra os riscos de instauração de um inquérito
policial sem justa causa.
6. Quid iuris em tais casos?
Deparando-se a autoridade policial com uma
notícia de crime falsa, fantasiosa ou, ainda, no caso em que, por falta
absoluta de dados, não disponha de qualquer fundamento para a instauração de
inquérito policial, como deve ela proceder?
Teria cabimento, em tais hipóteses, o
"acautelamento"?
O chamado "acautelamento", figura
jurídica espúria, pois não contemplada na lei, daria à autoridade policial um
poder de indultar, que somente o Presidente da República dispõe (art. 84, XII,
da CFRB). Seria, por outro lado, uma forma oblíqua de violação ao art. 17 do
CPP. Bastaria, para tanto, que, a seu talante, deixasse ela de instaurar
inquérito policial, trancando, em definitivo, e sem qualquer controle, qualquer
investigação.
Quem ficaria sabendo de tal atitude,
principalmente quando envolvidas pessoas modestas e iletradas, com interesse
direto na apuração do fato?
Ninguém.
Observe-se que o Ministério Público, ao
contrário, quando requer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de
informação tem seu pedido sujeito a controle jurisdicional. O juiz, em tal
caso, exerce a função anômala de controlador da fiel observância do princípio
da obrigatoriedade da ação penal. Posteriormente, dependendo do caso, a questão
ainda poderá ser examinada pelo próprio Procurador-Geral. É o que preceitua o
art. 28 do CPP, nas hipóteses em que o juiz discorda do arquivamento pretendido
pelo Ministério Público. Portanto, o arquivamento, confirmado ou não, pode
passar pelo crivo de três autoridades distintas (Promotor, Juiz e
Procurador-Geral). Observe-se, ainda, que ele somente se dará se o fato evidentemente
não constituir infração penal, se a punibilidade já estiver extinta, se faltar
uma condição de procedibilidade indispensável para o exercício da ação penal
ou, ainda, por falta de suporte fático mínimo para a acusação. Impõe-se o
registro que, até mesmo, nos casos de atribuição originária do
Procurador-Geral, sua decisão de arquivamento pode ficar sujeita ao controle do
Colégio (ou órgão Especial) dos Procuradores de Justiça consoante dispõe o art.
12, XI da Lei nº 8.265, de 12/02/93 – LONMP. Nada mais que 20 (vinte)
Procuradores de Justiça dão a palavra final!
Portanto, a disciplina do arquivamento,
segundo disposição legal, faz-se de forma bastante rigorosa, quer quanto aos
casos de cabimento da medida, quer quanto ao múltiplo controle a que fica
sujeita.
E o "acautelamento"?
Como fica?
Será que obedece a tais mecanismos de
controle?
Aliás, se assim não se desse, o princípio da
obrigatoriedade da ação penal estaria transformado em um mero flatus vocis
do legislador, sem qualquer efeito prático.
E assim devem funcionar os Poderes do Estado
em um Estado democrático, onde vige o princípio da legalidade, importando, por
tal razão, que os atos e as funções das diversas autoridades fiquem, sempre,
sujeitos a rigoroso controle.
Da mesma forma, quando ajuizada ação pelo
Ministério Público, fica a denúncia sujeita a controle jurisdicional, merecendo
rejeição caso venha a ocorrer uma das hipóteses a que alude o art. 43 do CPP.
É por tal motivo que as manifestações do
Ministério Público, por inafastável preceito constitucional, têm que ser
fundamentadas (art. 129, VIII, parte final, da CF).
Da mesma forma, as decisões dos juizes são
fiscalizadas pelas partes na medida em que, contra elas, dispõem de incontável
número de recursos.
Fala-se, muito, na atualidade, na necessidade
de controle externo do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Por que não?
Desde que tal controle se exerça nos exatos
limites preconizados pelos melhores estudos existentes a respeito da matéria,
ele será, sem dúvida, salutar para todos.
Na verdade, o que se quer demonstrar é que,
já na atualidade, o Ministério Público, como os juizes, acertadamente, têm seus
atos processuais sujeitos ao mais rigoroso controle.
E em relação à Polícia Civil, pode-se dizer o
mesmo?
Para os que defendem o indefensável, para os
que entendem cabível o "acautelamento", a polícia civil estaria
dotada de poderes absolutos. Ela mesma receberia a notícia de crime, ela mesma
verificaria a procedência das informações e, por fim, ela mesma, quando lhe
aprouvesse, determinaria o "acautelamento" do expediente que se
formasse.
Quem fiscalizaria tais atos?
Ninguém.
7.
Qual a solução técnica que a temática em estudo comporta?
Já tive a oportunidade de esboçá-la em
trabalho doutrinário, que, embora voltado para fins outros, também versou sobre
o assunto.
Vejamos algumas idéias que, agora, podem ser
alinhadas.
O Delegado, sempre que indeferir a abertura
de inquérito policial, tal como permitido no art. 5º, § 2º do CPP, deverá
intimar o interessado (se localizado, obviamente) para que ele, eventualmente,
venha a fazer uso do recurso hierárquico a que alude o parágrafo segundo acima
referido. O despacho, evidentemente, terá que ser fundamentado, formulando a
autoridade policial as razões pelas quais o requerimento mereceu indeferimento.
A matéria poderia ser disciplinada mediante ato normativo interno no
âmbito da própria Polícia Judiciária. Sem que tal se efetive, tal recurso continuará
existindo apenas na lei, figurando como uma completa inutilidade. Na minha
longa passagem pelo Ministério Público, quer como Promotor de Justiça, quer
como Procurador de Justiça, jamais vi, uma vez sequer, sua aplicação na
prática.
Por acaso as partes interessadas não são
intimadas das decisões judiciais? Por que razão não fazê-lo em relação à
decisão terminativa do Delegado de Polícia, que pode acarretar sérios prejuízos
para a ordem pública?
Seria este um primeiro ato de controle interno,
exercido nos limites da própria Polícia Civil, a respeito da legalidade do ato
do Delegado.
A providência, ora alvitrada, só teria lugar
nas hipóteses de requerimento (art. 5º, § 1º do CPP). Nos demais casos (art.
5º, I e II do CPP) seria incabível, por razões óbvias.
É certo que nada impediria que o interessado,
em caso de urgência (como, por exemplo, na iminência de prescrição), se
dirigisse diretamente ao Ministério Público, omitindo aquela fase recursal no
âmbito da própria Polícia Civil, para as providências que entendesse cabíveis
na espécie. Restaria ao Parquet examinar o caso, requisitando a abertura
de inquérito (art. 5º, II do CPP), oferecendo denúncia ou, ainda, requerendo o
arquivamento da peça de informação. Não ficaria afastada a hipótese de o
próprio Ministério Público investigar diretamente o fato, caso as
circunstâncias assim o indicassem. Veja-se, a propósito, amplo estudo sobre a
investigação direta levada a efeito pelo Ministério Público.
Estas são as únicas soluções legais.
"Acautelamento" jamais!
Como deveria proceder, então, a autoridade
policial nos casos em que, à evidência, se tornasse incabível a instauração de
inquérito policial?
Parece-me simples. A providência adequada,
por sinal, reveste-se de rara singeleza.
Uma vez indeferida a instauração de inquérito
policial, quer pelo Delegado de Polícia, quer, se for o caso, pelo "Chefe
de Polícia" (art. 5º, § 2º do Código de Processo Penal), caberia a remessa
do expediente respectivo, como peça de informação, para exame do Ministério
Público, mediante distribuição regular ao juízo criminal competente. Ali,
eventual arquivamento ficaria sujeito ao exame do Ministério Público e da
autoridade judiciária, esta exercendo a função anômala de controladora da fiel
observância do princípio da obrigatoriedade da ação penal. Na verdade, tal
atuação do Judiciário nada mais é que um ato de controle externo dos atos do
Ministério Público no campo do processo penal. Caberia, então, ao juiz arquivar
a peça de informação, caso assim fosse requerido pelo Promotor de Justiça, ou,
então, proceder na forma preconizada no art. 28 do CPP.
No meu entendimento inexiste outra solução
legal.
O projeto que me foi dado observar,
lamentavelmente, afasta-se, por completo, dos critérios de legalidade estrita,
padecendo, inclusive, de vício de iniciativa, pois legisla, abertamente,
sobre matéria processual, de competência privativa da União (art. 22, I, da
CRFB), criando uma espécie de pré-inquérito, verdadeira teratologia jurídica,
onde saem legitimados "VPIs", "sindicâncias",
"acautelamentos" et quid genitu.
Mais grave ainda: faz com que o Ministério
Público se torne cúmplice de tais ilegalidades, emprestando o seu apoio a
tamanha aberração jurídica.
Não é de se estranhar, portanto, que, em
razão dos motivos invocados, os Titulares das Promotorias de Investigação Penal
da Primeira Central de Inquéritos da Capital, por unanimidade, tenham
manifestado seu repúdio à referida minuta de ato conjunto.
8. É
chegada a hora de encerrar.
Impõe-se, no entanto, alinhar algumas
reflexões conclusivas, fazendo uma síntese do pensamento aqui exposto, à guisa
de sinopse.
Vejamos:
a) inexiste, em nosso ordenamento jurídico, a
figura processual do pré-inquérito;
b) a denúncia só pode ter por base, como
suporte fático, um inquérito (policial ou outro qualquer previsto em lei) ou
uma peça de informação idônea;
c) dessa forma, as VPIs, as
"sindicâncias" ou os "acautelamentos" não passam de
teratologia jurídica;
d) sempre que a autoridade policial sentir-se
impossibilitada de instaurar inquérito policial, deverá remeter o expediente
respectivo, como peça de informação, para controle do Ministério Público
e do Poder Judiciário, em razão do princípio da obrigatoriedade da ação penal
(arts. 24 e 28 do CPP);
e) em caso algum terá a autoridade policial o
poder de graça, deixando de remeter a peça de informação ao exame do Parquet
e do Poder Judiciário;
f) o "acautelamento" nada mais é
que uma forma oblíqua de violação ao art. 17 do CPP;
g) o princípio da obrigatoriedade da ação
penal pública exige rígida fiscalização exercida pelo Ministério Público (art.
24 do CPP) e, em certos casos, pelo próprio Poder Judiciário (art. 28 do CPP);
h) o "acautelamento" retiraria dos
agentes políticos do Estado qualquer controle sobre a observância do princípio
da legalidade;
i) sempre que a autoridade deixar de
instaurar inquérito deverá, mediante despacho fundamentado, indicar as
razões pelas quais deixou de proceder;
j) a própria Polícia Civil poderá, mediante
controle interno, criar mecanismo apropriado para que o recurso
hierárquico a que se refere o art. 5º, § 2º do CPP ganhe efetividade, tal como
sugerido no presente trabalho (7);
l) qualquer ato normativo – conjunto, como o
que examinamos ou insulado – que venha a admitir o "pré-inquérito"
padece de manifesta inconstitucionalidade, por evidente vício de iniciativa,
uma vez que estará legislando sobre processo, matéria privativa de Lei Federal
(art. 22, I da CRFB);
m) consagrar as anomalias jurídicas
verberadas no presente estudo levar-nos-á à conclusão única de que somente
serão ajuizadas as causas não atingidas pelo indulto policial, que ostenta o
pomposo nomen iuris de "acautelamento".
Retirado de: http://www.amperj.org.br/associados/