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Antecipação de tutela e litisregulação

 

(Estudo em homenagem a Athos Gusmão Carneiro)

 

 

 

José Maria Tesheiner

 

(Livre-Docente e Doutor em Direito pela UFRGS, Desembargador aposentado, Professor Orientador no Curso de Mestrado da PUC-RS)

 

 

 

 

 

1. Introdução

 

 

 

Os livros de Athos Gusmão Carneiro, "Audiência de Instrução e Julgamento", "Intervenção de Terceiros", "Jurisdição e Competência", "Do rito sumário na reforma do CPC", "Do novo agravo de instrumento", "Temas atuais de Direito e Processo" e, agora, "Da antecipação de tutela no Processo Civil(1)", apresentam, didaticamente, a doutrina que informa cada tema tratado. Neles transparece tanto o professor, preocupado com os aspectos didáticos da apresentação, quanto o juiz, pronto a temperar com a eqüidade todas as regras, para o eventual ajuste da norma geral às peculiaridades do caso concreto. Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, integrante da Comissão de Reforma do Código de Processo Civil, da Escola Nacional da Magistratura, à qual se deve o anteprojeto da Lei 8.952, de 13.12.94, que alterou o artigo 273 do CPC, Athos Gusmão Carneiro tem todos os títulos para servir-nos de guia, como representante da doutrina que se formou no Brasil a respeito da antecipação de tutela.

 

Este artigo não se destina ao elogio da obra comentada, nem à mera exposição da doutrina dominante. Destina-se ao confronto. Apresento-me como desafiante. Meu nome é "Aquele que viu".

 

Pode-se publicar um segredo. Mas o caminho de volta está fechado. Não se pode tornar secreto aquilo que já é público. Pode-se ver, mas não se pode "desver". Descobri, há muito, um fenômeno processual a que dei o nome de "litisregulação"(2).

 

A idéia básica é muito simples: na sentença, com que se encerra o processo, o juiz deve compor a lide, aplicando o direito material. Mas a situação de fato, caracterizadora da lide, não se detém por haver se iniciado o processo(3). Continua a existir, exigindo uma solução provisória, isto é, uma solução para o tempo de duração do processo. Litisregulação é o conjunto de normas, de direito processual, que regulam a lide, enquanto não sobrevém a sentença. Durante o processo, não se regula a lide segundo o direito material, mas segundo normas de direito processual, a que bem cabe o nome de litisreguladoras: regulação provisória da lide.

 

Carnelutti afirmou que a essência das medidas cautelares estava em que implicavam uma regulação provisória da lide. Abandonou depois essa idéia, por não explicar por que seria necessária uma regulação provisória. Não viu o essencial: existe regulação provisória da lide, haja ou não medida cautelar ou antecipatória.

 

Um exemplo para tornar mais clara a idéia: se reivindico um cavalo, há litisregulação, quer ele continue com o réu, quer ele me seja entregue provisoriamente, quer se nomeie um depositário. Não há como fugir: litisregulação existe sempre, porque impossível não existir. Existe mesmo quando se aplica a regra comum, que dispensa qualquer ato judicial: manter o estado de fato, até que sobrevenha a sentença. Para tutela da regulação provisória da lide existe uma ação específica: a de atentado, cabível contra a parte que inove ilegalmente o estado de fato (CPC, art. 879).

 

Quando descobri a litisregulação, não se falava em antecipação de tutela, mas ela claramente existia em casos que apontei, como o da liminar nas ações possessórias. O que agora há de novo é a possibilidade de antecipar-se a tutela mesmo em ação ordinária, e não apenas nos limitados casos antes expressos em lei(4).

 

Litisregulação é conceito de teoria geral do processo. Existindo por não poder deixar de existir, independe de lei. Mas é claro que o legislador é livre para estabelecer a forma da litisregulação: manter sempre o status quo? Estabelecer taxativamente os casos em que cabe alterá-lo? Deixar que o juiz estabeleça, a seu critério, a forma da litisregulação? Exigir processo específico, para a edição do respectivo provimento ou admitir mera decisão interlocutória?

 

Tendo descoberto o conceito de litisregulação(5), era fatal visse eu que tanto as medidas cautelares, que havia estudado, quanto a nova antecipação de tutela, têm a mesma natureza: uma e outra constituem espécies ou formas de litisregulação.

 

Essa visão me deu uma vantagem sobre a doutrina que se formou a respeito da antecipação de tutela. Vi que a diferença fundamental entre as medidas cautelares e a antecipação de tutela não está, como enganosamente fazem crer as palavras, entre acautelar e satisfazer(6). A diferença decorre da circunstância de que as medidas ditas cautelares exigem processo próprio e específico para que sejam concedidas, ao passo que a antecipação de tutela é concedida por mera decisão interlocutória.

 

Salvo indicação em contrário, é Athos Gusmão Carneiro quem fala neste estudo, sempre que há uma citação. Ele é representante legítimo - a voz - da doutrina dominante.

 

2. Segurança jurídica e tempo

 

"A antecipação da tutela contribui (...) decisivamente para harmonizar direitos fundamentais que soem apresentar-se em antagonismo: de uma parte, o consagrado direito à segurança jurídica, pela qual a decisão de conflitos supõe a cognição exauriente, após amplo contraditório sob o devido processo legal, com plenitude de defesa e do uso de recursos (CF, art. 5o, LIV e LV); de outra parte, o direito de acesso à Justiça (CF art. 5o, XXXV), compreendido como o direito de ‘obter, em prazo adequado, não apenas uma decisão justa, mas uma decisão com potencial de atuar eficazmente no plano dos fatos’ (Teori Zavascki). Conclui o conceituado juiz do TRF da 4a Região que as medidas antecipatórias, e bem assim as cautelares, dão ‘condições de convivência simultânea aos direitos fundamentais da segurança jurídica e da efetividade da jurisdição’" (p. 10).

 

Observe-se a unidade de fundamento, que justifica a existência assim das medidas antecipatórias como das cautelares, uma e outra relacionadas com o problema da demora para a composição definitiva da lide:

 

"O decorrer do tempo (...) implica em ônus, em uma possibilidade (por vezes probabilidade, não raro a certeza) de prejuízo ao demandante que postula a alteração do "statu quo" (p. 3).

 

"Cumpre, pois, uma redistribuição dos ônus do processo decorrentes do passar do tempo" (p. 5).

 

Ônus implica a idéia de ato que o onerado precisa praticar para não sofrer algum tipo de prejuízo. O decurso do tempo pode causar prejuízo à parte, mas não é um ônus da parte. Evidentemente, aí não está o Autor a empregar a expressão no seu sentido técnico.

 

"Suponhamos (...) uma ação visando a recomposição do patrimônio lesado por ato ilícito (v.g., atropelamento em acidente de trânsito); prolongando-se a demanda face à cognição exauriente, é possível que a mora cause ao autor apenas aquele ‘dano marginal’ de que nos falou Andolina. Mas se a vítima é pessoa pobre a quem a doença e a invalidez revela-se eloqüente no sentido da culpabilidade do réu, a tutela antecipada, sob a forma de ‘prestação alimentar’, decorrerá do direito constitucional de acesso a uma ordem jurídica justa, prevalecendo destarte, provisoriamente, o direito à efetividade sobre o direito à segurança jurídica(7)" (p. 31).

 

3. O que se pode antecipar

 

Diz o artigo 273 do CPC que o juiz poderá antecipar os efeitos da tutela pretendida. Segundo Cândido Dinamarco, beneficiar-se o autor de efeitos antecipados é o mesmo que, mais simplesmente, beneficiar-se da tutela antecipada. Athos conclui ser admissível o uso da locução "antecipação de tutela", ao invés da expressão mais exata: "antecipação dos efeitos da tutela" (p. 37).

 

Tratemos de pensar, usando um pouco de lógica, mesmo num raciocínio jurídico: Os efeitos são necessariamente posteriores à causa. Os efeitos não se podem produzir antes de sua causa. Absurdo falar-se em antecipação de efeitos de causa futura. Portanto, não são os efeitos da tutela que se antecipam. É a própria tutela que é antecipada.

 

Posta a questão da possibilidade ou não de antecipação de tutela em ações declaratórias, Athos supõe resolver o problema com um jogo de palavras: não se antecipa a declaração, porque a certeza jurídica não se compadece com a provisoriedade da antecipação de tutela; mas antecipam-se efeitos da futura declaração. E exemplifica: postulando o autor a declaração de nulidade do ato que o excluiu de uma sociedade recreativa, pode obter em antecipação de tutela a permissão para continuar freqüentando provisoriamente as dependências sociais, com as prerrogativas que normalmente cabem aos associados (p. 45).

 

Suposta a correção do exemplo(8), o que se terá demonstrado é a utilidade da declaração judicial, ainda que sem força de coisa julgada. A distinção entre declaração e caso julgado permanece, mesmo afirmando-se que apenas o elemento declaratório da sentença produz coisa julgada. Não se pode antecipar a indiscutibilidade, mas se pode proferir declaração resolúvel.

 

Declaração provisória pode ser útil. Exemplo: em antecipação de tutela, declara-se que este e não aquele sindicato é o legítimo representante da categoria. Ainda que a sentença final venha a declarar o contrário, permanecerão válidos os atos praticados pelo representante vencido, quando mais não seja, pela teoria da aparência.

 

Se é possível antecipação declaratória, com maior razão a constitutiva.

 

"Nas ações constitutivas", diz Athos Gusmão Carneiro, "o elemento nuclear do pedido poderá ser adiantado se compatível com a provisoriedade ínsita à antecipação de tutela; assim, não cabe adiantar a alteração de estado civil ou a anulação de um contrato, mas não repugna ao sistema a constituição provisória de uma servidão de trânsito" (p. 45).

 

4. Acautelar e satisfazer

 

"São (...) as medidas cautelares eminentemente transitórias e se identificam ‘pela absoluta impossibilidade de se tornar a solução definitiva da situação litigiosa’ (José Roberto Bedaque). Já as antecipações de tutela, pela sua natureza ‘satisfativa’, são deferidas sob a razoável expectativa de uma futura ‘conversão’ da satisfação provisória em satisfação definitiva. Consoante Arruda Alvim, ‘a tutela antecipatória é provisória, mas tende a se tornar definitiva’" (p. 83).

 

"Não há dúvidas em que existem características comuns às medidas antecipatórias e às medidas cautelares: umas e outras supõem um juízo de verossimilhança das pretensões do postulante e supõem igualmente, regra geral, o caráter de medidas de urgência" (p. 38).

 

Vou além: entendo que importante para determinar a incidência do artigo 273 do CPC não é a natureza cautelar ou satisfativa da medida, mas a necessidade ou não de processo específico para sua obtenção.

 

A identidade essencial das medidas cautelares e antecipatórias é também assinalada pelos autores que as reúnem sob o gênero comum das "medidas de urgência".

 

Melhor é sua reunião sob gênero das "medidas litisreguladoras": primeiro, porque a antecipação de tutela, no caso do artigo 276, II, não exige urgência; segundo, porque regulação provisória da lide existe sempre, quando mais não seja sob a forma da mantença do statu quo. Pode ser legal ou judicial, mas não pode inexistir.

 

Athos considera satisfativos os alimentos provisionais e a sustação de protesto:

 

"Exemplo antigo e o mais expressivo, o da medida ‘cautelar’ de sustação de protesto, requerida como preparatória à ação declaratória de nulidade ou anulatória de titulo cambial. Também os alimentos provisionais, estes previstos nos arts. 852-854, do CPC, certamente ‘satisfazem’ à pretensão do alimentando: pretende ele alimentos no processo principal, recebe-os no processo preparatório. Igualmente várias das medidas elencadas no art. 888 do CPC ostentam natureza nitidamente satisfativa, como a posse provisória dos filhos; as providências relativas à sua guarda e educação e ao direito de visita; a interdição ou a demolição do prédio que ameace ruína" (p. 7).

 

Que se pode ‘satisfazer’ mediante processo dito cautelar, sempre foi admitido. O que era condenável era a ilação que às vezes daí se tirava: porque satisfativa a medida, seria dispensável ulterior sentença declaratória do direito já satisfeito. Dispensava-se a ação principal, o que fugia inteiramente ao sistema do Código. Tratava-se de sentença definitiva, em processo de cognição sumária.

 

5. A dicotomia processo de conhecimento - processo de execução

 

"o legislador superou expressa e explicitamente a milenar dicotomia do processo de conhecimento/processo de execução" (apresentação da 2a edição).

 

A sentença condenatória extingue o processo, com entrega, ao vencedor, de um título, que o habilita a propor ação de execução. É o chamado título executivo.

 

Procedendo-se à execução no mesmo processo em que se profere a condenação (caso, por exemplo, da ação de despejo), a sentença não extingue o processo e é predominantemente executiva. Executar é tirar bens do devedor para satisfazer o credor. Executando-se a sentença no mesmo processo, há execução sem que se exija nova ação, ou seja, a de execução.

 

É executivo o título que habilita o autor a promover a execução. Nada importa que se exija ou não outro processo. A sentença predominantemente executiva é título que autoriza a execução no mesmo processo. Não importa que a execução seja provisória. A decisão que, antecipando tutela, autoriza a retirada de bens do devedor, para satisfazer o credor, é título executivo. Título resolúvel, mas título executivo.

 

Para afirmar-se o contrário, é preciso que se vincule a idéia de título executivo à de ação de execução. Título executivo é o que habilita o credor a propor ação executiva.

 

"Implicou a antecipação de tutela, pois, em superação do princípio da ‘nulla executio sine titulo’, superação da ‘dicotomia’ processo de conhecimento/processo de execução, de milenar raiz romanística e que, embora seu sólido arrimo doutrinário e lógico formal, importava com freqüência em prêmio ao réu inadimplente, e em castigo ao autor que, embora favorecido com sólida aparência de bom direito, se via obrigado a suportar os ônus da demora processual" (p. 9).

 

Se título executivo é a situação jurídica que autoriza a execução, não houve, a respeito, modificação, mas criação de um título novo.

 

A dicotomia processo de conhecimento - processo de execução penetrou tanto na doutrina, que se chega a negar constitua verdadeira execução a que se procede em antecipação de tutela:

 

"a execução provisória dos incs. II e III do art. 588 não é verdadeira execução, nem constitui instrumento capaz de levar à satisfação do direito (Ada Grinover)" (p. 56).

 

Nega-se, outrossim, a natureza de título executivo, à decisão interlocutória que autoriza a execução:

 

"A decisão que defere antecipação de tutela não se qualifica como título executivo, e assim o preconiza a mais moderna doutrina italiana relativamente aos ‘provvedimenti d’urgenza’. A ‘execução’ da antecipação de tutela não é, destarte, execução propriamente dita" (p. 58).

 

Isso tudo pode ser válido para a doutrina italiana, presa à classificação das sentenças em declaratórias, constitutivas e condenatórias. Não o é para quem admite a categoria das sentenças executivas.

 

Se uma decisão é executiva porque autoriza a execução no mesmo processo, não se pode restringir o conceito de execução aos atos que se praticam em ação de execução fundada em prévia sentença condenatória.

 

Se condenar é abrir as portas para a execução, cumpre reconhecer também que, na antecipação de tutela, não é apenas a execução que se antecipa. Antecipa-se também a condenação. Condenação resolúvel, mas condenação.

 

6. Prova inequívoca e verossimilhança da alegação

 

O juiz pode antecipar a tutela, existindo "prova inequívoca", que o convença da "verossimilhança da alegação".

 

"Conforme Cândido Rangel Dinamarco, a aparente contradição entre as expressões ‘prova inequívoca’ e ‘verossimilhança’, conjugadas no art. 273, resolvem-se pela adoção de um juízo de probabilidade, menos do que de certeza, mais do que um de simples credibilidade: ‘a exigência de prova inequívoca significa que a mera aparência não basta e que a verossimilhança exigida é mais do que o fumus boni iuris exigido para a cautela tutelar’. Segundo Calmon de Passos, ‘prova inequívoca é aquela que possibilita uma fundamentação convincente do magistrado’" (p. 22).

 

"quando a pretensão exposta na inicial se apresenta desde logo como indiscutível (v.g., em questão puramente de direito, com jurisprudência remansosa em favor do autor), ou seja, em caso de ‘juízo de certeza’, a prestação jurisdicional definitiva deverá ser, em princípio, deferida independentemente de instrução em audiência, através o instituto do julgamento antecipado (rectius, julgamento ‘imediato’) da lide" (p. 23).

 

A doutrina distingue juízo de probabilidade, apto à concessão de medida cautelar ou antecipatória, e juízo de certeza, exigido para a decisão definitiva. Essa distinção parece decorrer naturalmente dos textos legais, mas não corresponde à realidade. O juiz nunca ou raramente chega à certeza. Como, por exemplo, chegar-se a certeza com base em prova testemunhal, inevitavelmente duvidosa? Por outro lado, embora certo do direito do autor, o juiz não pode proferir decisão definitiva, ao conceder liminar em mandado de segurança. Não é a qualidade do juízo do julgador que faz a diferença, mas o momento processual da decisão!

 

"Em suma", prossegue o Autor, "o juízo de verossimilhança repousa na forte convicção de que tanto as ‘quaestiones facti’ como as ‘quaestiones juris’ induzem a que o autor, requerente da antecipação de tutela, merecerá a prestação jurisdicional em seu favor" (p. 26).

 

Verossimilhança e certeza são estados mentais relacionados com a verdade. Ao contrário da verossimilhança, a certeza exclui a dúvida.

 

Essa distinção não serve para distinguir a tutela antecipatória da definitiva. No momento da liminar, nada importa a certeza do juiz. Sua decisão é provisória em função do momento processual em que ela é proferida e não porque haja mera verosimilhança. No momento da sentença, não importam as dúvidas do juiz. Sua decisão é definitiva, porque é o momento processual da sentença. O juiz não precisa ter certeza. É a sentença que, transitando em julgado, torna certo o direito no caso julgado.

 

"A verossimilhança, em seu conceito jurídico-processual, é mais do que o ‘fumus boni iuris’ exigível para o deferimento de medida cautelar; mas não é preciso chegar a uma ‘evidência indiscutível’" (p. 25).

 

Era inevitável que se distinguisse o fumus boni juris, exigido para as medidas cautelares, da "prova inequívoca", exigida para a antecipação de tutela. Mas esse fumus não deve ser traduzido como fumaça etérea(9), nem "prova inequívoca" pode ser interpretada como insuscetível de dúvida. Da exigência de prova inequívoca para a concessão de medida antecipatória não decorre a suficiência de prova equívoca, para a procedência de ação cautelar. Tanto para uma quanto para a outra exige-se probabilidade, que pode variar conforme as circunstâncias.

 

Não há diferença substancial entre as provas exigíveis para a medida provisória e a definitiva(10). Não raro, as provas são as mesmas! Ocorre apenas que a decisão provisória é proferida em momento processual aberto à produção de novas provas, o que não ocorre quando se profere a decisão final.

 

A força das provas determina, não a natureza da medida (cautelar ou antecipatória), mas o momento processual da concessão.

 

Prova inequívoca é prova já existente, que dispensa a produção de outras provas. Nesse caso, a medida cautelar ou antecipatória pode ser concedida por decisão interlocutória, no próprio processo de conhecimento. A audiência realiza-se depois, para a eventual produção de provas complementares pelo autor, ou de prova contrária pelo réu.

 

Se o autor precisa produzir prova em audiência, porque não tem em seu poder "prova inequívoca", é preciso um processo específico para a concessão de medida cautelar ou antecipatória. É o processo cautelar em sentido amplo, instaurado antes ou no curso do processo principal e dele dependente (CPC, art. 796). Prova inequívoca, no sentido de suficiente para o convencimento do juiz, será então um produto da audiência de instrução e julgamento, em que o juiz profere a sentença correspondente ao processo cautelar.

 

Pode ocorrer que, embora não tendo "prova inequívoca" ou mesmo prova alguma, haja situação de urgência tal que exija a concessão imediata de medida provisória. Trata-se do caso excepcional, correspondente à liminar em processo cautelar, que é concedida na previsão de que o autor comprovará, depois, suas alegações.

 

Prova meramente testemunhal, ainda que produzida judicialmente, jamais constitui prova inequívoca. Menos ainda se produzida sem contraditório, ou extrajudicialmente.

 

Mas não se exige prova inequívoca de todos os fatos alegados. A legislação relativa a alimentos oferece-nos o modelo: para a concessão de alimentos provisórios, é preciso que o autor prove (documentalmente) o parentesco ou a obrigação de alimentar do devedor (Lei 5.478/68, art. 2o). Faz-se essa prova, via de regra, mediante a apresentação de certidão de nascimento ou de casamento. A necessidade de alimentos, assim como os rendimentos do alimentante, poderão ser comprovados depois, na audiência de instrução e julgamento. Faltando documento que comprove a obrigação alimentar, como ocorre na união estável, bem como na investigação de paternidade, podem-se pleitear alimentos provisionais por ação cautelar (CPC, art. 852).

 

Tanto os alimentos provisórios quanto os provisionais(11) têm natureza antecipatória. É a prova documental do parentesco ou do casamento que permite sejam aqueles concedidos por decisão interlocutória, na própria ação de alimentos.

 

Athos admite justificação prévia para fundamentar medida antecipatória(12). Pode-se, para isso, invocar o artigo 461, § 3o, do CPC. Penso que o juiz não pode dispor sobre procedimentos, introduzindo justificação não prevista em lei. Igualmente importante é o argumento de que não se poderá jamais ter por inequívoca prova testemunhal produzida em justificação. Sendo ela necessária, impõe-se a constituição de processo específico, cautelar em sentido amplo, que assegura mais plenamente o direito de defesa, com estrita observância do princípio do contraditório.

 

7. Relevância do momento processual da antecipação

 

Até o advento da Lei 8.952/94, a tutela antecipatória estava limitada a processos especiais, que admitiam liminar, ou era compreendida como espécie do gênero "cautela". O exemplo mais típico era e continua sendo o dos alimentos, chamados provisórios, quando concedidos liminarmente, em ação de alimentos, e provisionais, quando requeridos por ação cautelar.

 

Havendo a lei autorizado antecipação de tutela no procedimento comum, ordinário ou sumário, preocupou-se a doutrina em fazer distinção entre antecipação de tutela e medida cautelar.

 

Que cabe distinguir acautelar e satisfazer é fora de dúvida. O que se deixou de observar é que isso não é o essencial.

 

As medidas antecipatórias e as cautelares são espécies de um mesmo gênero, a litisregulação, ou seja, regulação provisória da lide.

 

Há quem as considere espécies do gênero "medidas de urgência". Mas a hipótese do artigo 273, II(13), deixa claro que não é a urgência que as caracteriza.

 

Essencial, no caso, é a identidade de gênero, não a diversidade de espécies. O fato de a medida ter natureza cautelar não implica impossibilidade de ser concedida por decisão interlocutória, na própria ação de conhecimento. O fato de ter natureza antecipatória não significa não possa ela ser pleiteada por ação cautelar lato sensu.

 

Quem pode o mais pode o menos. Se o juiz pode, por decisão interlocutória, proferir decisão satisfativa, é claro que pode o menos, qual seja, simplesmente acautelar. Autorizado o juiz a entregar desde logo o bem reivindicado ao autor, é claro que pode o menos, que é simplesmente seqüestrá-lo, entregando-o a um depositário.

 

Mais difícil parece a demonstração da possibilidade de antecipação de tutela mediante processo cautelar.

 

Historicamente, legislação e doutrina consideraram a tutela antecipatória uma espécie do gênero "cautela". É o motivo pelo qual se pode, hoje, distinguir cautela em sentido amplo (compreensiva da tutela provisória satisfativa) e cautela em sentido estrito (mera asseguração dos efeitos práticos da futura sentença).

 

Ora, soa absurdo que a nova lei, ao facilitar, permitindo medida satisfativa mediante mera decisão interlocutória, haja proibido sua concessão pelo meio que melhor preserva o princípio do contraditório, isto é, por sentença proferida em processo cautelar.

 

Tocamos, aqui, num ponto que é processualmente muito mais importante do que a distinção entre acautelar e satisfazer: na antecipação de tutela, o réu não é citado para se defender do pedido de antecipação (a lei sequer prevê prazo para que ele se defenda); no processo cautelar há essa citação e há prazo para o oferecimento de defesa. Em outras palavras: no processo cautelar, o princípio do contraditório é integralmente observado; na antecipação de tutela, defende-se o réu como pode, depois de concedida e, quiçá executada, a medida.

 

É necessária uma interpretação sistemática, que harmonize as normas atinentes às medidas antecipatórias e cautelares em sentido estrito. Assim, exigindo a lei prova inequívoca, para a antecipação de tutela do artigo 273, há de se entender como vedada liminar, de natureza antecipatória, mediante processo cautelar. Mas não se veda a concessão de medida antecipatória por sentença proferida em processo cautelar (lato sensu), dada a estrita observância do "devido processo legal" e, em particular, do princípio do contraditório.

 

A doutrina dominante, bem representada por Athos Gusmão Carneiro, acaba por contradizer-se. Depois de aprofundar a distinção entre acautelar e satisfazer, acaba admitindo uma certa "fungibilidade"(14). Ora, o que explica essa fungibilidade é exatamente a inexistência de abismo entre essas medidas, uma e outra espécies de um mesmo gênero que é a regulação provisória da lide (litisregulação).

 

8. Dano

 

"Não basta o juízo de verossimilhança, a alta probabilidade de que o autor venha a ser favorecido com a sentença de procedência. A lei exige, mais, que a demora processual possa acarretar ao autor um dano, com características de irreparabilidade ou de difícil reparação(15), ou, alternativamente, exige que o réu, pelo teor da contestação ou pelo seu proceder no curso do processo (ou excepcionalmente, em conduta extraprocessual), revele que não possui motivos sérios para contrapor ao pedido do autor" (p. 29).

 

Cautela supõe perigo. Pode dele prescindir a tutela antecipada. Essa diversidade não tem relação lógica com o caráter interlocutório ou sentencial da medida. Assim, ainda que em processo dito cautelar, é possível conceder-se antecipação de tutela quando, pelo teor da contestação ou por outro motivo, revelar-se que o réu não possui motivos sérios para contrapor-se ao autor.

 

"Se o dano já ocorreu, a antecipação de tutela poderá fazer com que cesse, apagando ou minimizando seus efeitos: em ação declaratória de inexigibilidade de débito, v.g., ou revisional de contrato, poderá a parte postular, invocando fundado receio de dano, a concessão de antecipação de tutela para que seu nome seja expungido, até ulterior decisão, dos cadastros de inadimplentes(16), assim salvaguardando provisoriamente seu crédito comercial e sua ‘existimatio’ (a medida, além de acautelar ‘lato sensu’, antecipa efeitos decorrentes necessariamente da procedência da demanda proposta).

 

"Em ação, v.g., em que se disputa o domínio e posse de bem móvel, suscetível de ser danificado ou depreciado pelo uso, poderá ser adequada a medida cautelar de seqüestro, com o depósito do bem em poder de terceiro; outrossim, se integrados seus pressupostos específicos, dar-se-á em antecipação de tutela a entrega provisória do bem ao próprio demandante, impedindo o grave prejuízo decorrente da privação de seu uso" (p. 31).

 

Levada a rigor a distinção entre cautela e antecipação, o juiz poderia, por decisão incidente, entregar a coisa ao autor, mas não simplesmente seqüestrá-la. Mas quem pode o mais pode o menos. Fica assim demonstrada a possibilidade de obter-se medida cautelar em sentido estrito, por decisão interlocutória prolatada na própria ação de conhecimento.

 

9. Abuso do direito de defesa

 

 

 

"É a segunda via para a obtenção da antecipação de tutela" (p. 33).

 

"o art. 273, II criou uma antecipação de tutela ‘pura’, desvinculada dos pressupostos da urgência e do dano, e ligada tão-somente à idéia central de que a firme aparência do bom direito, exsurgente das alegações do autor, aliada à desvalia evidente, à falta de consistência na defesa apresentada pelo demandado, autorizam a satisfação antecipada, a fim de que o (aparente) titular de um direito possa de imediato vê-lo (provisoriamente) incorporado ao seu patrimônio jurídico" (p. 33-4).

 

"O manifesto propósito protelatório do demandado pode inclusive configurar-se através de conduta temerária, mesmo extraprocessual, dele ou de seu advogado, como a reiterada retenção de autos por tempo delongado, o fornecimento de endereços inexatos a fim de retardar intimações, a prestação de informações errôneas, a criação de embaraços à realização da prova pericial (Bertoldi)" (p. 35).

 

"Arruda Alvim sustenta não ser imprescindível a má-fé do réu: a procrastinação injusta poderá resultar da invocação de uma tese ‘bisonha’ ou contrária à orientação tranqüila dos Tribunais Superiores, por inexperiência ou ignorância do advogado; ou do acúmulo de incidentes despropositados" (p. 35).

 

"o art. 273, II, poderá, com freqüência, ser aplicado ‘quando o processo chegar ao juiz de apelação, momento em que se poderá aferir se está havendo abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu’. Nestes casos, a antecipação de tutela ‘importará afastar o efeito suspensivo normal do recurso, permitindo-se a realização prática do determinado no provimento judicial recorrido (Carlos Alberto de Oliveira)" (p. 35-6).

 

A antecipação de tutela fundada em abuso de direito evidencia o equívoco de sua inclusão no gênero das "medidas de urgência".

 

A essa conclusão já deveria ter levado o exame da ação de reintegração de posse. A respectiva liminar, que constitui, fora de qualquer dúvida, antecipação de tutela, vincula-se ao tempo do esbulho. Nada tem a ver com a urgência da medida.

 

10. Modificação ou revogação da tutela antecipada

 

Salvo recurso, a alteração ou revogação da tutela antecipada supõe fato novo, "pois é manifesta a inconveniência de o juiz, a seu talante e de conformidade com os humores do momento, conceder o bem da vida para retirá-lo logo depois ou vice-versa’ (Araken de Assis)" (p. 84).

 

Athos discorda:

 

"apresenta-se perfeitamente possível que diante, v.g., dos fundamentos da contestação, da força de convicção dos argumentos jurídicos trazidos pelo réu, o juiz chegue à conclusão de que se equivocou, ou de que seu antecessor se equivocou no relativo à questão de direito. A hipótese não é incomum, principalmente quando o juiz da causa é instado a reexaminar decisão liminar proferida por outro juiz. Não nos parece razoável, nem conveniente à ‘justa’ composição da lide, que o juízo de retratação somente possa ser exercido pelo magistrado se interposto agravo" (p. 85).

 

Considero mais correta a posição de Araken de Assis. Embora possa parecer paradoxal, a previsão legal de recurso visa a dar firmeza à decisão. Não houvesse recurso, poder-se-ia pensar na modificabilidade, a qualquer tempo, de decisões por natureza provisórias. A previsão do recurso as torna imodificáveis, salvo na forma do recurso cabível. Trata-se, em última análise, de aplicar o princípio dispositivo, a que muitos juízes não querem submeter-se. A proibição de o juiz agir de ofício é garantia de liberdade!

 

A sentença de improcedência extingue a eficácia da medida antecipatória(17). Mas

 

"Não é de excluir (...) que em casos excepcionais o magistrado possa (= deva) manter a antecipação de tutela para que seus efeitos persistam na pendência do recurso, assim o declarando expressamente na sentença de improcedência; v.g., se o juiz sentencia ciente de que o faz não obstante a orientação prevalecente, em sentido contrário, no tribunal. Como já mencionado, pode outrossim o apelante peticionar ao tribunal, com arrimo, por analogia, ao art. 800, parágrafo único, do CPC, solicitando o restabelecimento da medida antecipada" (p. 86).

 

11. Responsabilidade

 

"Sem prejuízo do disposto no art. 16, o requerente do procedimento cautelar responde ao requerido pelo prejuízo que lhe causar a execução da medida:

 

I - se a sentença no processo principal lhe for desfavorável;

 

II - se, obtida liminarmente a medida no caso do art. 804 deste Código, não promover a citação do requerido dentro em 5 (cinco) dias;

 

III - se ocorrer a cessação da eficácia da medida, em qualquer dos casos previstos no art. 808, deste Código;

 

IV - se o juiz acolher, no procedimento cautelar, a alegação de decadência ou de prescrição do direito do autor (art. 810)". (Código de Processo Civil, art. 811).

 

Essa norma, que estabelece a responsabilidade objetiva de quem obtém medida cautelar injusta, aplica-se à antecipação de tutela, por força de compreensão. Ela já existia antes da Lei, compreendendo as cautelares antecipatórias, ou seja, as cautelares em sentido amplo. "Doutrina prevalecente entende afirmativamente, enquadrando a hipótese como de responsabilidade objetiva" (p. 60). "Em sentido contrário, com a tese de que ninguém deve ser responsabilizado por se ter valido de uma faculdade legítima, situa-se Ovídio Baptista da Silva" (p. 60).

 

As medidas cautelares ou antecipatórias são concedidas na suposição da existência do direito tutelado. Daí decorre, como conseqüência lógica, a responsabilidade objetiva de quem, sem direito as obtém. Nada importa a boa-fé do requerente, convicto de que lhe seria favorável a sentença definitiva. Tampouco importa a imprevisibilidade do resultado final do processo. Efetiva-se a medida a requerimento do autor, e por sua conta e risco.

 

Menos ainda importa a circunstância de haver o autor exercido um direito processual. Não se leve tão longe a teoria do direito abstrato de agir. Abstrata é a ação apenas como direito à sentença, não quando referida a atos de execução.

 

A norma é de transparente justiça. Os danos ocorrem no mundo dos fatos. Não podem ser desfeitos (factum infectum infieri nequit). Serão suportados ou pelo autor ou pelo réu. Justo é que os suporte o autor que obteve tutela de uma aparência de direito a final declarado inexistente.

 

12. Sem comentários

 

Transcrevo a seguir, sem comentários, outras valiosas lições do Autor:

 

12.1.. Momento para conceder-se a antecipação de tutela

 

De regra, a antecipação de tutela é requerida na petição inicial, sendo concedida ou negada pelo juiz ao despachá-la, antes da citação do réu.

 

"se denegada a antecipação de tutela e dessa decisão manifestado agravo de instrumento, poderá o recorrente solicitar ao relator que lhe seja liminarmente deferida a medida; não se cuida, todavia, de um impropriamente denominado ‘efeito ativo’ do agravo, mas sim de ‘antecipação da tutela recursal’" (p. 73).

 

"Poderá a parte autora requerer, e o juiz deferir, a antecipação de tutela após o término da fase de instrução, quando o nível de cognição passou à qualificação de exauriente" (p. 70)?

 

"Araken de Assis responde negativamente" (p. 70). "Opinião diversa a de Luiz Guilherme Marinoni" (p. 70). "Em nosso ver, se o juiz, ao término da instrução, se convence da premente necessidade de deferir imediata tutela ao autor, ante a iminência do dano ou pela ostensividade do própósito protelatório revelado pela conduta pessoal do demandado, ou ainda porque eventual recurso irá contra súmula ou orientação sedimentada do tribunal, deverá ele juiz adotar o seguinte procedimento: a) se pretende proferir sentença por ocasião da audiência, fará lançar em ata primeiro a decisão da antecipação de tutela, e somente depois tomará os debates orais – art. 454; se pretende lavrar por escrito a sentença e entregá-la em cartório, proferirá a decisão interlocutória, e somente após ordenará a conclusão dos autos ou a dilação para o oferecimento de memoriais pelas partes" (p. 71)."

 

"durante o lapso entre a interposição do recurso e a entrada do processo no protocolo do tribunal ‘ad quem’, cumprirá aplicar à antecipação de tutela, analogicamente, o procedimento ‘incidental’ previsto no art. 800, parágrafo único, para as medidas cautelares" (p. 72).

 

"Não raramente, ainda, o recurso é julgado e o resultado proclamado, mas a lavratura do respectivo acórdão demora por meses. Nestes casos – processualmente patológicos -, a melhor solução para a parte será postular a medida de urgência no próprio tribunal, para apreciação pelo sobrejuiz competente para julgar da admissibilidade do futuro recurso cabível ao acórdão. O que não nos parece cabível é aceitar, nestes casos, o uso anômalo do mandado de segurança, uso este aliás preconizado por Teori Zavascki" (p. 73).

 

12.2. Efetivação da tutela antecipada

 

"Note-se, de início, que o § 3o do artigo 273 faz remissão apenas aos incisos II e III do art. 588, omitindo menção ao inciso I, ou seja, ao inciso que cuida da caução a ser prestada pelo exeqüente provisório" (p. 55).

 

"a execução provisória das decisões antecipatórias com caráter condenatório far-se-á sem prévia caução, mas não chegará à expropriação dos bens penhorados e, propiciando embora o levantamento de dinheiro, condiciona-o a caução (Cândido Dinamarco)" (p. 56).

 

"a ‘efetivação’ far-se-á não mediante um novo processo, mas sim nos próprios autos do processo de conhecimento (Cândido Dinamarco), independentemente de citações e de embargos do executado (Carreira Alvim, Flávio Yarshell)" (p. 58).

 

"Como salientou Eduardo Talamini, nos processos tendentes a uma sentença final condenatória, o provimento que decreta a antecipação de tutela, pela sua urgência, terá eficácia executiva ‘lato sensu’ e sua ‘execução’ independerá de novo processo" (p. 59).

 

"As obrigações de pagar (...) submetem-se, ‘no que couber’, às regras da execução forçada como ‘parâmetro operativo’ (Marinoni); todavia, é perfeitamente possível, a nosso sentir, o pagamento imediato, determinado na antecipação de tutela, através da inclusão do credor em folha de pagamento da empresa ré, ou através da apropriação de alugueres devidos ao réu, máxime nos casos de pagamento de caráter alimentar" (p. 46).

 

"No novo anteprojeto em estudo na Comissão de Reforma, a apelação passará, de regra, a ter efeito apenas devolutivo; ficará superada, destarte, a incoerência de o ‘juízo de verossimilhança’, sob cognição sumária, autorizar mediante a antecipação de tutela a imediata satisfação do autor (pela prevalência dos meios executivos, ‘lato sensu’ e mandamentais), enquanto o ‘juízo de certeza’, revelado na sentença após cognição exauriente, tem sua eficácia sustada pela apelação em duplo efeito" (p. 57)!

 

12.3. Restrições à concessão de liminares

 

"Araken de Assis considera a Lei n. 9.494(18) ‘rigorosamente constitucional’, com remissão ao magistério de Calmon de Passos, para quem a antecipação de tutela é problema ‘de política processual, que o legislador pode conceder ou negar, sem que com isso incida em inconstitucionalidade’" (p. 89).

 

"Outros autores com veemência sustentam que o legislador infraconstitucional não poderia opor quaisquer restrições à concessão de liminares, sob pena de ofensa ao direito da parte à plenitude da jurisdição" (p. 90).

 

"oportunidades existem em que a peremptória negativa de liminar pode motivar com certeza, ou com grande nível de probabilidade, o perecimento da própria pretensão, apresentada no processo com visos de real verossimilhança. Nestes casos excepcionais, e apenas neles, o direito constitucional a uma jurisdição eficaz suplantará as limitações estabelecidas em lei ordinária" (p. 90)(19).

 

12.4. Irreversibilidade dos efeitos do provimento

 

"Como pressuposto negativo, a norma legal proíbe a antecipação de tutela quando sua efetivação deva acarretar conseqüências irreversíveis; mas cumpre anotar, desde logo, a ‘relatividade’ do conceito de reversibilidade e a possibilidade de que em determinados casos se apresente uma ‘irreversibilidade recíproca’" (p. 17).

 

"a ‘irreversibilidade’ não se refere propriamente ao ‘provimento’ antecipatório, mas sim aos efeitos do provimento" (p. 60).

 

"Opinou Teori Zavascki que, a rigor, provimentos antecipatórios irreversíveis, concedidos à base de cognição sumária e com incidência antes mesmo da citação e da contestação do réu não seriam compatíveis com as garantias dispostas no art. 5o, LV, da Constituição" (p. 64).

 

"Em princípio, a possibilidade de que a reconstituição do estado de fato anterior possa ser substituída pela prestação de ‘perdas e danos’, em favor do réu prejudicado pela antecipação de tutela tornada sem efeito, tal possibilidade não descaracteriza a ‘irreversibilidade’, eis que, ao fim e ao cabo, todos os danos, e até os danos morais, encontram forma de compensação mediante ressarcimento em pecúnia" (p. 62).

 

"por vezes a concessão da liminar poderá ser mais danosa ao réu, do que a não concessão ao autor. Portanto, tudo aconselha ao magistrado perquirir sobre o ‘fumus boni iuris’, sobre o ‘periculum in mora’ e também sobre a proporcionalidade entre o dano invocado pelo impetrante e o dano que poderá sofrer o impetrado (ou, de modo geral, o réu em ações cautelares" (p. 64).

 

"Cabe ao juiz, escreveu Alexandre de Freitas Câmara, ‘proteger o interesse preponderante, aplicando o princípio da proporcionalidade, ainda que isto implique conceder a antecipação de tutela em situações em que esta produza efeitos irreversíveis" (p. 66).

 

12.5. Tutela antecipada em face do Poder Público

 

"Tem sido afirmado, com autoridade, que se nem a sentença definitiva, proferida após a instrução da causa, pode produzir imediato efeito quando proferida contra entidade de direito público, muito menos tal efeito poderia decorrer de um julgamento provisório e revogável" (p. 77).

 

"a norma constitucional, sendo medida de salvaguarda do erário, ao referir-se ao pagamento de ‘sentença judiciária’ teve em mira não apenas afastar a incidência de ordens de pagamento administrativas, como, principalmente, explicitar a necessidade de decisão judicial após cognição exauriente, ou seja, após a plenitude do contraditório. Não obstante, consideramos lícito ao magistrado, em princípio, ordenar à entidade de direito público, com vistas às prestações vincendas, a inclusão do autor em folha de pagamento, naqueles casos em que não se apliquem restrições legais à concessão de antecipação de tutela" (p. 76-7).

 

12.6. Tutela antecipada nas obrigações de fazer e de não-fazer

 

"Pelo § 1o do art. 461 restou explicitado que a conversão da obrigação de fazer (ou não-fazer) em indenização por perdas e danos, que de antanho era a conseqüência normal do inadimplemento, tal conversão agora só é admissível se o autor assim o requerer, ou naqueles casos em que não seja possível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente ao do cumprimento espontâneo da obrigação pelo devedor" (p. 47).

 

"Para a efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial" (CPC, art. 461, § 5o).

 

"Refere Kazuo a possibilidade de substituições dos meios executivos, argumentando com a obrigação de não poluir que, se inadimplida, pode ser convertida em obrigação de fazer (colocação, v.g., de filtros ou de sistema de tratamento de efluentes); não cumprida, a obrigação pode retornar ao anterior enquadramento, emitindo o juiz ordem de cessação de atividade nociva, a ser efetivada até, se preciso, com auxílio de força policial – art. 461, § 5º . São ordens, em última análise, de eficácia similar às injunctions da common law (Cód. Bras. de Defesa do Consumidor). Estes comandos, como evidente, concorrendo a ‘relevância do fundamento da demanda’ e o ‘justificado receio de ineficácia do provimento final’ (perigo de dano), podem ser emitidos em antecipação de tutela. No fundo, identidade de pressupostos com os aludidos no art. 273." (p. 49).

 

"Como está em Ovídio Baptista da Silva, as faculdades previstas no § 5o do art. 461, são ‘absolutamente inimagináveis numa ação condenatória’, em a qual, como disse Liebman, ‘não é função do juiz dar ordens às partes’; assim, este § 5o confirma a conclusão de que as ações do art. 461 são executivas, ou são mandamentais (in Estudos)" (p. 49).

 

13.Conclusão

 

Regulação provisória da lide ou litisregulação é apenas um conceito. Por si só não resolve problemas. É um instrumento para a compreensão da realidade. É um conceito de ciência pura. Não depende de uma lei que o receba e consagre. Tem a vantagem de explicar tanto os casos de concessão de medida cautelar ou antecipatória, quanto os de negativa. Explica até mesmo os casos em que a lei sequer delas cogita, como antes ocorria no procedimento comum ordinário. Abrange o verso e o reverso da medalha. Supera as palavras utilizadas pelo legislador.

 

Não é a idéia de cautela que explica as medidas cautelares, nem a de antecipação a que explica as medidas antecipatórias, mas a de litisregulação. Penso haver deixado isso demonstrado suficientemente. Utilidade prática? Por enquanto, serviu o conceito para demonstrar o equívoco de se vincular a idéia de cautela à de processo cautelar e a de medida antecipatória à de decisão interlocutória. Mas nem tudo são flores. O conceito de litisregulação tem um gravíssimo defeito: não se encontra na doutrina italiana, nem na alemã. Tampouco foi "made in USA". E isso, em nossa cultura tupiniquim, é um pecado mortal. Esqueçam-no.

 

Notas

 

1 Carneiro, Athos Gusmão. Da antecipação de tutela no processo civil. 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999.

 

2 Litisregulação. Revista da Consultoria-Geral do Estado. Porto Alegre, (3): 55-69, 1972.

 

3 "pendente o processo e até que entregue em definitivo a prestação jurisdicional, o bem objeto do litígio pode sofrer danos ou desaparecer; a marca de comércio pode continuar a ser indevidamente usada, com perda de prestígio e clientela ao seu legítimo titular; o credor permanece sem receber o que lhe é devido, e o proprietário não pode reaver o que lhe pertence; a propaganda enganosa continuará embaindo consumidores; a manutenção do ‘statu quo’ implicará quiçá no perecimento do próprio direito afirmado pelo demandante, e assim por diante" (p. 2-3).

 

4 A antecipação de tutela, adotada pela Lei n. 8.952, de 13.12.94, foi inicialmente sugerida por Ovídio Baptista da Silva, em julho de 1983, no 1o Congresso Nacional de Direito Processual Civil, realizado em Porto Alegre (p. 15).

 

5 Tratei do assunto em: Litisregulação. Revista da Consultoria-Geral do Estado. Porto Alegre, (3): 55-69, 1972.

 

Elementos para uma Teoria Geral do Processo. São Paulo, Saraiva, 1993.

 

6 "Percebe-se, de logo, a profunda diferença entre as providências que objetivam apenas garantir a ‘justiça’ e a prática da futura (provável) sentença, e aquelas providências que antecipam, integrando-o no patrimônio jurídico do autor (no todo ou em parte), exatamente aquele bem da vida postulado pelo demandante. As primeiras eram e são realmente cautelares, "stricto sensu". As segundas, embora sob as ‘vestes processuais’ das medidas cautelares, revestem-se de natureza satisfativa, utilizando os litigantes o artigo 798 como ‘válvula de escape’ para alcançar a efetivamente processual. Uma coisa é proteger, mediante processo autônomo, a eficiência da sentença a ser proferida em outro processo, dito ‘principal’. Coisa substancialmente diversa é realizar desde logo, embora provisoriamente, a pretensão contida no processo ‘principal’" (p. 6).

 

Corretamente observa o Autor: 1) que uma coisa é acautelar, outra, satisfazer; 2) que uma coisa é a medida concedida em processo próprio, subordinado a outro, principal, outra é a medida concedida incidentemente, no curso de um único processo. O equívoco, a nosso ver, está na vinculação estabelecida entre as duas classificações, como se para acautelar fosse sempre necessário processo próprio e não se concebesse antecipação de tutela senão por decisão interlocutória. Pelo menos no plano da teoria geral, é claro que, mediante processo próprio, tanto se pode concede mera cautela quanto antecipar efeito da sentença a ser proferida no processo principal e, por decisão interlocutória, tanto se pode apenas acautelar quanto satisfazer antecipadamente.

 

 

 

7 Trata-se, aí, de alimentos provisórios de natureza indenizativa.

 

8 Entendo, como Pontes de Miranda, que a decretação de nulidade tem natureza (des)constitutiva.

 

9 "fumaça que somente permite a visualização de mera silhueta ou contorno sombreado de um direito" (p. 22).

 

10 Não concordo com a afirmação de Marinoni: "a prova inequívoca a que se refere o art. 273 somente pode ser entendida como ‘a prova suficiente para o surgimento do verossímil’, embora ainda não suficiente para a declaração da existência ou não do direito" (p. 22). Fosse isso verdadeiro, a ação deveria ser julgada improcedente, sempre que o autor não produzisse novas provas. Há que se reconhecer que as provas produzidas pelo autor, in limine litis, são, em princípio, suficientes para a procedência da ação, com ressalva da eventual alegação e prova, pelo réu, de fato impeditivo ou extintivo, ou produção de contraprovas. Observe-se que, em mandado de segurança, a antecipação de tutela é quase sempre concedida com base nas mesmas provas em que se baseia, depois, a sentença de procedência.

 

11 Tem-se denominado provisórios os alimentos concedidos por decisão interlocutória, no próprio processo de conhecimento, e provisionais os obtidos por ação cautelar.

 

12 "A priori, não está excluída a hipótese de o magistrado entender conveniente uma justificação prévia, expressamente prevista no art. 461, § 3o para as obrigações de fazer ou não-fazer, mas também compatível com os demais casos" (p. 69).

 

"E que provas serão estas? Se o pedido de antecipação de tutela for apreciado "limine litis", será tomada em consideração, normalmente, a prova documental apresentada pelo autor com a inicial; excepcionalmente, provas efetuadas "ad perpetuam", justificações prévias, testes de DNA, pareceres de especialistas no objeto da lide" (p. 22).

 

13 Abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu.

 

14 "Feito no nosso país o adequado discrimen entre os provimentos antecipatórios, de natureza satisfativa, e as medidas cautelares stricto sensu, não satisfativas, impõe-se todavia não levar tal princípio às últimas conseqüências, mas admitir, quando possível, uma ‘fungibilidade’ de uns e outros, em homenagem à economia processual e à eficiência e brevidade do processo" (p. 38). "Assim é que, se o demandante postula na petição inicial lhe seja liminarmente deferida uma providência que denomina como antecipatória, mas em realidade constitui providência cautelar, tal equívoco não deve constituir motivo, de per si, para que o magistrado simplesmente a denegue, ou dela não conheça por inadmissível" (p. 39).

 

"Vale anotar que a manobra inversa, ou seja, transmudar providência cautelar em antecipatória, apresenta-se mais difícil, porque mais rigorosos os pressupostos de deferimento da medida de ordem satisfativa" (p. 39).

 

15 "O requisito do dano, do ‘periculum in mora’ é, como vemos, pressuposto comum às medidas cautelares ‘stricto sensu’ e às antecipação de tutela de que cuida o art. 273, I" (p. 30).

 

16 Típica litisregulação: pendente a ação, ficar ou não constando do rol dos devedores o nome da parte que nega sua condição de devedor.

 

17 "Contra, Marinoni, para quem, ‘a não revogação da tutela, através de decisão interlocutória, fará surgir a conclusão de que o juiz, apesar da sentença de improcedência, manteve a tutela’" (p. 85, nota 1).

 

18 A Lei 9.494, de 10 de setembro de 1997, disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública.

 

19 Com sua longa experiência de juiz, Athos sempre deixa uma abertura para as "peculiaridades do caso".

 

6 "A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente" (CPC, art. 461, § 1o).

 

 

 

Fonte:http://www.tex.pro.br