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A teoria das nulidades e o
sobredireito processual
Danilo
Alejandro Mognoni Costalunga
Bacharel em Direito, Especialista
em Direito Processual Civil, Mestrando em Direito Processual Civil, Membro
Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
"E
não haverá consolo maior à alma de um juiz do que tanger o processo com
inteligência e sabedoria, para, de suas mãos deslumbradas, ver florir a obra plástica
e admirável da criação do justo, do humano, na vida"
GALENO LACERDA
SUMÁRIO:
1. Considerações Gerais; 2. Sistema das nulidades processuais; 3. Sobredireito
Processual como categoria relativizadora das nulidades; 4. Conclusões; 5.
Referências bibliográficas.
I - CONSIDERAÇÕES GERAIS
Desde o princípio da
humanidade, que remonta a aproximadamente 2 milhões de anos, a vida em comum
implica no relacionamento entre os seus membros. Os homens, necessariamente,
eram compelidos a se relacionarem uns com os outros, embora essa tarefa, por
vezes, fosse um pouco complexa e delicada.
A partir dessas relações, de
natureza vária, nascem naturalmente normas de condutas espontâneas por parte
dos membros que em sociedade convivem. Estas normas de condutas espontâneas
algumas vezes são aceitas e absorvidas instantaneamente pelos seus membros como
regras sociais, sendo acatadas pacificamente. Outras, no entanto, geram
conflito e discordância, ante a não realização natural daquelas normas,
acarretando a rotura das estruturas sociais. Desta relação íntima de sociedade
e poder é que surge o direito, como fato eminentemente cultural, humano e
social, tendente a pautar aquelas condutas dos homens.
A história nos demonstra que a vida
humana e o próprio direito ao longo de todo esse período, especialmente nos
últimos 500 anos, evoluíram de uma forma sem igual. Com a formação do
"Estado" o direito havido desta relação de sociedade e poder é levado
ao seu conhecimento, recebendo de sua parte acolhida e normatização. A
finalidade do direito neste estágio, como ser normativo, é a de outorgar
proteção ao homem e à sociedade.
Com a natural conseqüência da
modificação do conceito de Estado estabeleceu-se o monopólio da jurisdição, e a
possibilidade de ação e reação pelas próprias mãos dos titulares - a autotutela
-, no sentido de que fosse observado e realizado o direito, foi eliminada. Daí
a necessidade do processo judicial como meio para obtenção da tutela jurídica
estatal.
Inquestionável, neste sentido, que
diante do fato concreto de ter sido a jurisdição monopolizada pelo Estado, e
que é através do processo que o direito é realizado, a ação de direito
material, anteriormente permitida, só poderá ser exercida por intermédio da
ação de direito processual, salvo raríssimas exceções. O dever de prestação
jurisdicional por parte do Estado, uma vez provocado pelo interessado na
solução do conflito, existente em sua relação jurídica material com outrem,
desencadeará uma relação jurídica processual, relação esta que com a obra
memorável de BÜLOW possibilitou o reconhecimento da existência de outra
relação, que não só aquela entre particulares, mas uma relação jurídica de
direito público, entre Estado e particulares. Daí por que falar-se no vínculo
que se estabelece no processo entre as partes e o juiz.
Dessa autonomia da relação jurídica
- material e processual - decorreu conseqüentemente a autonomia do direito
processual civil, que a partir da já mencionada obra do grande processualista
alemão BÜLLOW permitiu ao direito processual civil, antes mero apêndice do
direito material, ser erigido à categoria de verdadeira ciência jurídica.
Em nosso sistema, este processo -
meio pelo qual poderemos ver declarado e realizado todo e qualquer direito -
deverá ser dirigido e conhecido pelos órgãos estatais encarregados pela
prestação jurisdicional. Coube ao Poder Judiciário, um dos três poderes que
compõem o nosso Estado, superando, pois, as reservas doutrinárias de
MONTESQUIEU, que ainda tinha o juiz como um mero subordinado pronunciador das
palavras da lei, essa missão, ou seja, aplicar e fazer incidir a norma legal a
casos particulares, missão essa por demais importante para a satisfação dos
interesses do cidadão e desenvolvimento da paz social.
Note-se que justamente por ser
reconhecido como "Poder Judiciário", o papel que o juiz exerce na
sociedade, julgando, até mesmo, atos dos demais poderes (Executivo e
Legislativo), lhe confere reconhecida e necessária independência no exercício
de suas funções. Tal situação, que tem o condão de afetar legitimamente o Poder
Judiciário, atribuiu-lhe constitucionalmente o dever de realizar o direito
através do processo. É o que prescreve a Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, verbis: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça de direito" (art. 5.º, XXXV, CRFB).
Pois bem, para que possamos fazer
valer efetivamente este ideal, de realização da justiça, é que devemos adequar
o direito ao fato concreto, e à própria natureza do direito posto em causa.
Sabido que o juiz de direito tem em suas mãos, para a prática diuturna de seu
mister, norteado por aquele ideal, um dos melhores Códigos de Processo,
instrumento de declaração e realização do direito material e, sobremaneira, da
justiça, não encontrando paralelo em nenhum outro, embora tenha que
submeter-se, por vezes, ao inconveniente do preciosismo técnico de BUZAID.
Por isso, o juiz precisa e deve
pensar. Inicialmente, porque não é um espectador de uma cena preconcebida; ao
depois, porque deve pensar desatrelado da razão do jurista e do ser humano, que
é por demais limitada, validando, corolariamente, a sua sintonia com o caso
real posto em causa. Se é verdade que o direito nasce com a vida, no caso
concreto, sendo, nesse aspecto, ser espiritual, como bem adverte o ilustre
filósofo CARLOS N. GALVES, necessário se faz que o juiz tenha a presteza, a
sensibilidade para captá-lo. Imprescindível, neste diapasão, que cada vez mais
desconfie daquela razão limitada, porque ela se baseia em abstrações, não
autorizando a concretização da realidade, que, em última análise, está no
próprio indivíduo e tão-somente será encontrada através da intuição intelectual
e sentimental e da exaltação do amor, considerada como a pedra de toque na
arguta lição proclamada por GALENO LACERDA.
Talvez essa reflexão em paragens
mais subjetivas, longe de solucionar o problema filosófico da escolástica,
possibilite o reconhecimento da deficiência na aplicabilidade e interpretação
da lei ao caso concreto com que vêm labutando os operadores do direito. A
tarefa não é fácil, pelo contrário, é de difícil desate, mas não é impossível,
pois as coisas não se mantêm inalteráveis, de acordo com a máxima de HERÁCLITO.
Avulta-se, desde logo, que não se
está aqui defendendo, ou mesmo instigando a corrente do direito alternativo,
que dá atenção maior ao problema do "sentimento de direito". Muito
pelo contrário, o que na verdade se pretende é propiciar o debate, no sentido
de que enfrentemos minudentemente o estudo, através de uma releitura
aprofundada das leis processuais, veículos de realização da justiça, à luz de
princípios e normas fundamentais que inspiram toda a sua estrutura.
Tudo isso de molde a evitar que o
processo por si mesmo se conceba. A sentença é do próprio GALENO LACERDA:
"Subverteu-se o meio em fim. Distorceram-se as consciências a tal ponto
que se cria fazer justiça, impondo-se a rigidez da forma, sem olhos para os
valores humanos em lide. (...) Insisto em dizer que o processo, sem o direito
material, não é nada. O instrumento, desarticulado do fim, não tem
sentido".
Não é possível imaginarmos processo
ou procedimento judicial algum que não reconheça a supremacia do direito, que
se realiza, como sabido, precipuamente pelo princípio da legalidade,
expressamente adotado pelo nosso ordenamento. Mais, não só o princípio da
legalidade assegura a supremacia do direito, mas os valores superiores
igualmente insculpidos na Carta Magna, que diretamente são juridicizados ou
positivados como objetivos últimos do estado de direito. Esses princípios
dispostos no preâmbulo são o ápice de toda a estrutura normativa da
Constituição Federal e do Ordenamento, cabendo ao operador do direito extrair
deles o seu fundamento, funcionamento e finalidade. Só assim estará assegurada
a concretização da utópica democracia.
Logo, é preciso que enfrentemos o
problema atual da processualística em sua verdadeira complexidade e dimensão,
passo esse que já foi dado por GALENO LACERDA, através do sufrágio do despacho
saneador e da sistematização da teoria das nulidades processuais, na sua famosa
monografia intitulada Despacho Saneador, com efeito, identificando-as de
maneira notável, sendo reconhecida como definitiva, e recebendo, como
decorrência, a acolhida de E.D. MONIZ DE ARAGÃO, para quem, "foi GALENO
LACERDA quem logrou desvendar o sistema adotado pela lei num trabalho similar
ao do garimpeiro no localizar e revelar a pedra preciosa" .
Em que pese a admirável tarefa
desvendada pelo culto mestre gaúcho, a insatisfação se fez presente, invadindo
a sua alma com o passar dos anos. Diversamente da personagem histórica Dom
Quixote, surgido de pura e imaginável fantasia de um artista, o fidalgo
incansável GALENO LACERDA continua vivo e é real, abeberado em suprema harmonia
de espírito e genialidade. Em sua longa jornada de mestre e ilustre professor,
não poderia ser de forma diversa, diuturnamente vem desvendando a cada momento
o verdadeiro e real sentido de todo processo, através de arguta condensação,
síntese de amadurecimento do pensamento e do conhecimento, que vai gerando
saudáveis conseqüências no decurso do tempo.
Com efeito, já em meados de 1976,
intuiu a possibilidade de adequar todo o sistema legal do Código a realidades
jurídicas diversas, proclamando, nessa ocasião, a importância fundamental da
adequação como princípio unitário e básico para justificar a autonomia
científica de uma teoria geral do processo.
A partir de então, iniciou-se um
processo de criação maravilhoso por parte do professor GALENO LACERDA. Ao
ensejo de conferência proferida em comemoração dos dez anos de vigência do
atual Código de Processo Civil, sublinhou o notável processualista gaúcho a
existência de uma nova categoria, relativizadora de todas as nulidades
processuais. A esta categoria, após exaustiva análise da evolução da teoria das
nulidades por ele sistematizada, denominou-a de sobredireito processual.
Os resultados que foram colhidos
com essa intuitiva descoberta, como adiante se verá, foi a superação de um
exame meramente formal e externo do processo. Como quem ergue um pano de fundo,
GALENO LACERDA logrou desenrolar os dramas que dentro da alma do jurista
habitam. Neste sentido, bem proclamou o notável processualista e poeta
uruguaio, verbis: "todos estamos habituados a manejar as formas do
processo, seus prazos, suas condições, como se fossem fins em si mesmos. Esse
ramo do direito, pois, nos surge, em sua aparência, como a forma solene, como o
cerimonial da Justiça. A experiência, contudo, nos ensina que isso é unicamente
o invólucro do fenômeno. Por baixo das formas existe um conteúdo profundo e angustioso,
que necessita aflorar à superfície".
Compreendido o processo como meio,
instrumento, a sua estrutura e direção deve ser apontada a uma só finalidade,
de molde a que se possibilite a busca da satisfação dos interesses sociais e
legítimos, através da realização da justiça, com o que restará justificada a
sua própria existência. Pensarmos em processo ou procedimento desatrelado desse
ideal seria admitir-se a negativa de sua própria legitimidade.
II - SISTEMA DAS NULIDADES
PROCESSUAIS
O sistema das nulidades
processuais, como adotado pacificamente por todo nosso ordenamento, teve sua
origem na brilhante tese de concurso de cátedra elaborada por GALENO LACERDA,
em meados de 1953.
A elaboração dessa teoria deveu-se
à inquietude do gênio de GALENO LACERDA em saber quando seria possível ou não
sanar um vício ocorrente no processo. Iniciou com o exame daquela distinção já
existente no nosso Código Civil. Aprofundando a análise no campo próprio do
direito processual, que concebe a existência de nulidade relativa,
diferentemente do direito civil, necessitaria o jurista saber a distinção entre
nulidade absoluta e nulidade relativa, considerando cada um dos atos.
Para tanto, valendo-se do método
indutivo, a partir dos fatos, em determinado momento GALENO LACERDA viu que não
era possível distinguir as nulidades examinando o ato em si mesmo, mas sim
descobrindo o motivo pelo qual ele é viciado, ou seja, por que não obedece ao
preceito legal. Isto é, se há, como existe, distinção entre esses atos, a distinção
reside única e exclusivamente na lei violada, na sua natureza.
Daí por que acentuar o mestre
gaúcho que "o que caracteriza o sistema das nulidades processuais é que
elas se distinguem em razão da natureza da norma violada , em seu aspecto
teleológico" .
Neste sistema das nulidades
processuais, como alhures referido, pacificamente aceito e adotado pela
doutrina brasileira, os defeitos dos atos processuais podem acarretar três
categorias de vícios: nulidade absoluta, nulidade relativa e anulabilidade, sendo
que, para COUTURE, a nulidade relativa é a regra geral das nulidades dos atos
no processo civil.
Para bem determiná-las, repise-se,
mister que a distinção resida não nos atos em si, mas na natureza da norma
atingida. Assim, se a norma violada for de natureza imperativa, cogente,
estaremos diante de um vício essencial, que poderá acarretar nulidade absoluta
ou nulidade relativa. Por outro lado, se a norma violada for de natureza
dispositiva, estaremos aí diante de um vício que, embora também seja essencial,
poderá acarretar anulabilidade. O ato nasce válido, eficaz, mas possui defeito,
vício que, se for apresentado oportunamente em juízo pelo prejudicado, poderá
ser tornado ineficaz, desconstituído.
A distinção entre as nulidades
absolutas e as relativas vem esteada, igualmente, na natureza da norma
infringida e nos fins tutelares da norma violada. Se a norma transgredida tiver
natureza cogente e tutelar interesse predominantemente público, a nulidade
poderá ser considerada absoluta. "Vício dessa ordem deve ser declarado de
ofício, e qualquer das partes pode invocar". Se a norma violada tiver
natureza cogente e tutelar interesse predominantemente de parte, a nulidade
será relativa e, por isso, o vício poderia ser sanado.
O critério que distingue a nulidade
relativa da anulabilidade repousa, do mesmo modo, na natureza da norma atacada.
A nulidade relativa, como visto, viola norma de natureza cogente que tutela
interesse predominantemente de parte. Já na anulabilidade, a norma violada é de
natureza dispositiva e tutela interesse eminentemente de parte, permanecendo o
ato tão-somente na esfera atuante das partes, com o que a sua anulação só
ocorrerá mediante manifestação do interessado, obstada a cognição oficiosa do
juiz. O ato anulável nasce eficaz, mas viciado.
Essa teoria das nulidades até hoje
tem sido aplicada pelos operadores do direito, tamanha a sua importância e
eficácia prática, e deverá assim continuar a valer. A dificuldade que surge na
aplicação dessa notável teoria dá-se quando encontramos normas processuais que
se sobrepõem a essas regras de vícios, como adiante se verá. Para tanto,
perfeita validade tem a aplicação adequada da categoria do sobredireito
processual, proclamada por GALENO LACERDA, a qual dá, precipuamente, prevalência
àquelas normas que sufragam em si mesmas valores superiores e, até mesmo,
supremos.
III -
SOBREDIREITO PROCESSUAL COMO CATEGORIA RELATIVIZADORA DAS NULIDADES
Trinta anos após a edição da obra
memorável de GALENO LACERDA, através da qual conquistou cátedra na saudosa
Faculdade de Direito de Porto Alegre, na qual o então jovem processualista
gaúcho desvendava e consolidava, como acima visto, uma verdadeira teoria das
nulidades na seara do direito processual, motivo de entusiasmos e aplausos por
toda a comunidade jurídica, ao ensejo de conferência proferida em comemoração
ao décimo aniversário do atual Código de Processo Civil brasileiro, GALENO
LACERDA assinalou que o capítulo mais importante de um código de processo se
encontra nos preceitos relativizadores das nulidades.
Isto porque, continua GALENO
LACERDA, " eles é que asseguram ao processo cumprir sua missão sem
transformar-se em fim em si mesmo, eles é que o libertam do contra-senso de
desvirtuar-se em estorvo da justiça" .
Falarmos de preceitos relativizadores
das nulidades processuais, como colocado, de um modo geral, traduz a idéia de
processo como instrumento de definição e realização da justiça. Processo como
instrumento para o acesso à ordem jurídica justa, na expressiva e percuciente
síntese de KAZUO WATANABE e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO.
Em tempos atuais, quando predominam
saudáveis "ondas renovatórias" na vida do direito processual,
corroboradas, de certo modo, pela novíssima reforma do CPC, cujo espírito que a
imbuiu foi endereçado a quatro finalidades específicas , em evidente
harmonização e pertinência o breve ensaio ora esposado, assumindo, como se vê,
alta relevância no imenso e fundamental âmbito do direito processual, longe de
restringir-se a mera tertúlia acadêmica.
Aos preceitos relativizadores das
nulidades processuais, adotado, analogicamente, conceito de ERNST ZITELMANN
para definir as normas de Direito Internacional Privado - direito sobre direito
-, difundido por PONTES DE MIRANDA, GALENO LACERDA inspiradamente denominou-os
de sobredireito processual, porque, segundo sufraga, "se sobrepõem às
demais, por interesse público eminente, condicionando-lhes, sempre que
possível, a imperatividade" .
A categoria do sobredireito
processual, cujo conteúdo assume alta relevância no âmbito do direito
processual, encerrando preceitos relativizadores das nulidades havidas como
absolutas, possibilitou a GALENO LACERDA a retomada e a superação de antigas
idéias, assegurando ao processo a sua instrumentalidade plena e efetiva de
servir à justiça humana, social e concreta, a que se reduz seu princípio
informador e nuclear.
Importante avultarmos o momento no
qual ocorreu a descoberta do sobredireito processual por GALENO LACERDA. A esta
ocasião, o mentor da teoria das nulidades processuais adotada em nosso país
teve essa teoria colocada à prova, ao ensejo da análise concreta de um caso
real, ao tempo em que atuava como desembargador do nosso Tribunal de Justiça. A
experiência de GALENO LACERDA como magistrado foi maravilhosa, sendo
considerada por ele mesmo como a mais rica e importante atividade de sua vida.
Tratava-se de agravo de instrumento
em ação de cobrança de honorários médicos, contra decisão do juiz singular que
rejeitou a preliminar de violação ao disposto no art. 275, I e II, do CPC, que
determina a observância do rito sumaríssimo. Propugnou o agravante a ocorrência
de nulidade absoluta, uma vez que a ação de cobrança de honorários deveria
seguir o rito sumaríssimo: houve uma infração ao rito, que tutela interesse
público, e não de parte. Para tanto, seus argumentos foram centrados na
doutrina do próprio GALENO LACERDA, esposada em seu Despacho Saneador que, por
uma destas vicissitudes da vida, acabou sendo o magistrado eleito para
conhecimento e julgamento do caso referido.
Da valoração adequada da espécie,
GALENO LACERDA constatou que era necessário modificar o anteriormente
sustentado, tendo, nesse caso, reconhecido seu próprio erro, diante de um
conflito normativo no próprio direito processual. Para resolver esse conflito,
aplicou regra mais alta existente no próprio código, no caso vertente a do art.
250 e seu parágrafo único, e a do art. 154, ambos do CPC.
BARBOSA MOREIRA, igualmente,
sustenta que o processo não pode ser forçosamente anulado, caso se tenha
instaurado como ordinário, em hipótese de cabimento do rito sumaríssimo. O
aproveitamento dos atos deverá ocorrer sempre que a utilização do rito
inadequado não houver causado prejuízo à defesa. Do mesmo modo, PIMENTA BUENO,
para quem não há nulidade, tendo em vista que o processo tem por fim conhecer a
verdade.
Vejamos a síntese genial de GALENO
LACERDA, acolhida à unanimidade pelos demais integrantes do colegiado:
"Possibilidade de conversão do
procedimento sumaríssimo em ordinário. O interesse público na instrumentalidade
do processo relativiza, em regra, as nulidades processuais. Aplicação dos arts.
250, parágrafo único, e 154 do CPC, e do art. 1.218 do CC.
"...os valores ou os
interesses no mundo do Direito não pairam isolados no universo das abstrações;
antes, atuam, no dinamismo e na dialética real, em permanente conflito com
outros valores e interesses. Certa, sem dúvida, a presença de interesse público
na determinação do rito do processo. Mas, acima dele, ergue-se outro interesse
público de maior relevância: o de que o processo sirva, como instrumento, à
justiça humana e concreta, a que se reduz, na verdade, sua única e fundamental
razão de ser.
"Essa natureza de meio a
serviço de um interesse público mais alto possui o necessário e indispensável
condão de relativizar a maior parte das normas imperativas processuais e, por
conseguinte, as nulidades resultantes de sua infração.
"Por este motivo, o capítulo
mais importante de um Código de Processo moderno situa-se nas normas
relativizadoras dessas nulidades. Elas é que garantem ao processo cumprir sua
missão sem transformar-se em fim em si mesmo, desvirtuando-se, em contra-senso,
em estorvo da Justiça. Se permitem o neologismo, as regras sobre nulidades
integram-se no ‘Superdireito’ (‘sic’, Sobredireito) processual porque se
sobrepõem às demais, por interesse público eminente, condicionando-lhes, sempre
que possível, a imperatividade." .
Em função desse caso concreto,
GALENO LACERDA descobriu o sobredireito processual. O sobredireito processual,
como concebido pelo seu intuidor, é a aplicação de regras e princípios maiores
que podem revogar ou suprimir a incidência de regras menores.
Por isso, às idéias de finalidade e
instrumentalidade das formas dos atos processuais, não se erra ao se permitir
uma releitura da cominação de nulidade absoluta àqueles vícios essenciais
insculpidos em nosso código, bem como ao se exigir a adequação como princípio
fundamental e unitário do processo, a justificar, até mesmo, a autonomia
científica de uma teoria geral do processo, como bem proclama GALENO LACERDA.
Iniludivelmente, a natureza de
instrumento adequado de declaração e realização do direito material, logo, na
sua função informativa de resolução de conflitos de interesses genéricos, está
a buscar o ideal da efetividade da tutela jurisdicional, calcado na tríplice
identidade do direito tutelado, qual seja, subjetiva, objetiva e teleológica.
Os atos processuais, de regra,
independem de forma, salvo exceção prevista em lei, como acentua o art. 154 do
Código de Processo Civil em vigência. Trata-se, aqui, de verdadeiro princípio
da relevância relativa das formas legais na qual tem especial aplicabilidade a
liberdade das formas, afastando, como corolário, o princípio da legalidade
formal. Por outro lado, o processo é regido pela necessidade de estreita obervância
das regras pertinentes ao seu procedimento. Dessa maneira, prima facie, aquele
ato processual que for praticado em ofensa à forma taxativa e expressamente
disposta em lei, ou aquele ato que atentar contra as regras procedimentais,
será havido como nulo, portador de vício dito essencial, que poderá acarretar
nulidade absoluta ou relativa.
Entretanto, vale dizer, o que
ocasionará o reconhecimento de nulidade ou não desvinculado está dessas normas
que determinam a forma dos atos e a obediência às regras procedimentais. Embora
toda doutrina entenda que a nulidade absoluta, por ensejar vício maior, afeta o
interesse público, dispensando, por isso, a constatação de prejuízo para ser
declarada, enquanto na nulidade relativa o prejuízo deve vir cabalmente reconhecido,
o fato é que assim não pode ser pacificamente aceito, ante a construção de uma
estrutura teleológica, em que os valores e a finalidade da norma são
reconhecidos como supremos.
Com efeito, se, embora praticados
desta maneira, supostamente havida como viciada, atingirem a sua finalidade,
não causando prejuízo algum, reputar-se-ão válidos e legítimos. Isto porque,
sabendo-se qual a verdadeira e única finalidade do processo, bem como
valendo-se de uma visão sistemática de todo o ordenamento, eventual atentado
contra as suas formas e seu procedimento, nenhum vício acarretará, uma vez
alcançado o escopo último a que ele se destina: servir à realização do direito
material e da justiça.
Nos ordenamentos jurídicos
hodiernos não só vige, de modo geral, o princípio da instrumentalidade das
formas, como também os princípios da convalidação, da conservação, da
causalidade, do interesse e da economia processual, todos destinados a
relativizar o assim considerado desatendimento à forma em sentido estrito, sempre
que atinja sua finalidade essencial. Com razão, o art. 154 do CPC, bem como
outros dispositivos do mesmo corte, no sentido de dar prevalência à finalidade,
ou seja, ao aspecto teleológico, como bem demonstrado pelo Dr. CARLOS ALBERTO
ÁLVARO DE OLIVEIRA, "impedem o fenômeno das formas residuais, as formas
que teimam em permanecer apesar da perda de sentido e obstaculizam, do mesmo
modo, sua degeneração, ou seja, sua extensão a termos não previstos
inicialmente. Varre-se, assim, o fetichismo da forma, eliminando-se as
imprestáveis, mantidas tão somente as que tenham finalidade atual ou sirvam à
garantia das partes".
Evidencia-se assim, ao longo da
história, a minimização da questão que concerne à forma em sentido estrito,
vigorando desde muito o princípio de que o aspecto externo deve ceder ao
conteúdo do ato processual, predominando, destarte, princípios relativizadores
das nulidades processuais como categorias fundamentais para a definição da
justiça e do direito.
Tomemos um exemplo, na tentativa de
possibilitar a fácil compreensão deste fundamental e importante tema. O art. 82
do Código de Processo Civil determina em quais hipóteses deve o Ministério
Público, como custos legis, intervir no processo.
Suponhamos que, em uma ação de
nulidade de casamento, digamos com fundamento no art. 183, VI (são impedidas de
contrair o matrimônio as pessoas casadas), do Código Civil , o demandante, para
essa ação legitimado, ao propor a demanda, não propugne pela intimação do
Ministério Público para que acompanhe o feito. Segundo dispõem os arts. 84 e
246 do CPC, seria nulo o processo, ante infração à norma cogente, que tutela
interesse predominantemente público. Dizemos predominantemente público, haja
vista que as partes igualmente têm interesse no justo desate da controvérsia.
Vício dessa ordem, na qual existe cominação expressa de nulidade, por ser
insanável, acarretaria a imediata nulidade do feito, podendo ser ventilada por
qualquer das partes, presentante legal do MP ou pelo próprio juiz.
No entanto, hipoteticamente, nem a
parte demandada nem o juiz verificaram essa omissão, e, por via de
conseqüência, levaram a termo o processo que visava à declaração da nulidade do
casamento. No julgado, conjeturamos a improcedência da demanda proposta, uma
vez que o cônjuge demandado, ao contrário do que sustentava o sujeito ativo da
ação, não era casado e, sim, divorciado, consoante logrou demonstrar com a
produção de cópia da sentença de divórcio trânsita em julgado. Qual haverá de
ser, nesse caso, a providência a ser tomada, verificada, ou até mesmo suscitada
a nulidade ocorrente pela falta de intervenção do órgão ministerial?
Primeiramente, por óbvio, ao juiz
não é dada a oportunidade para suscitá-la, uma vez que lhe falta jurisdição,
ante a lavratura da carta sentencial. De plano, igualmente, afastamos o direito
do demandante de suscitar referido vício, uma vez que foi ele próprio quem deu
causa à nulidade, embora presente o seu prejuízo com a improcedência da ação e
certa a indisponibilidade do direito em concreto. Logo, tão-somente ao órgão do
MP e à parte demandada é que se faculta a argüição de eventual nulidade.
Feita essa breve ressalva, cumpre
agora perquirirmos sobre a pertinência ou não de declararmos a nulidade do
feito e, com isso, procedermos na renovação de todo o processado, que
fatalmente seria julgado da mesma forma, ou seja, no sentido de declarar a
improcedência da ação, ante a prova cabal do divórcio.
Pode parecer que, à primeira vista,
a nulidade cominada tenha, inevitavelmente, o caráter obrigatório de determinar
a insanabilidade do processado, com a conseqüente retificação e repetição dos
atos processuais viciados. Os mais afoitos, sob o pálio de uma interpretação
meramente literal e gramatical do dispositivo legal e isolada do resto do
sistema, a toda evidência, declarariam a nulidade absoluta do feito. Mas assim
não poderia decorrer, uma vez interpretada adequadamente a disposição que
comina a nulidade absoluta, em conjugação e harmonia com o disposto legal dos
parágrafos 1º e 2º do art. 249 e 244, ambos do CPC, que, respectivamente,
fundamentam os princípios do (não) prejuízo e do aproveitamento e da
finalidade, informadores do princípio da instrumentalidade das formas.
Embora o exemplo referido trate de
vício absoluto, em que há cominação expressa de nulidade, tudo nos conduz a
acreditar que a sua relativização, diante do caso concreto, poderá tomar
contornos de efetividade. Tudo dependerá do caso em particular, que estará a
merecer a tríplice adequação das normas processuais ao direito material, daí o
porquê da necessidade imperiosa de aproximação e apaixonamento do juiz à causa.
A se possibilitar a declaração da
nulidade no exemplo acima, por conseqüência tendo de ser renovado todo o
processo , estar-se-á atentando contra o princípio da economia processual, para
falarmos do menos. A exigência na renovação do processo, em homenagem
tão-somente à sacralidade da forma, ou seja, o processo por si mesmo, como
decorreria obviamente, não se admite em hipótese alguma.
Em sentido similar, o exemplo dado
pelo emérito professor OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA, no qual, uma vez
intervindo o presentante legal do Ministério Público, ainda que em segunda
instância, ao ensejo de seu parecer, a nulidade, ante a ausência de sua
intimação no processo de primeiro grau, poderá ser sanada, não sendo raros os
modelos de decisão nas quais os tribunais têm relevado este vício.
Tomemos outro exemplo, a fim de bem
fixar o alcance e importância efetiva deste maravilhoso instituto, que,
adequadamente aplicado, logrará acertar e realizar a justiça e o direito em
concreto. Suponhamos que, em uma ação, o autor produza um documento redigido em
língua espanhola, sem a tradução que lhe exige o art. 157 do Código de Processo
Civil, ou seja, em vernáculo, firmada por tradutor juramentado. Esse documento,
hipoteticamente, seria a cópia de alguns dispositivos do Código Civil Uruguaio.
Juntamente com ele, produziu o autor cópia de obra doutrinária idônea, na qual
vêm reproduzidos para o idioma português os dispositivos suscitados. O réu, por
ser uruguaio, não tem dificuldade alguma na compreensão e leitura do texto, nem
ventila a exigência legal do art. 157 do nosso CPC. O magistrado, por sua vez,
domina com perfeição o idioma espanhol. Qual seria o procedimento a ser adotado
no caso concreto? Deveria o juiz, à luz do disposto no art. 157 do CPC, exigir
a tradução do texto colacionado? Poderia ser declarado nulo o processo a partir
da juntada desse documento, tendo em vista a não tradução para o vernáculo,
ante frontal desrespeito ao disposto no art. 157 do CPC?
Temos que a solução, antes de mais
nada, não aceita generalizações. O juiz deverá examinar caso a caso, sopesando
a prejudicialidade e finalidade do ato perpetrado. Na hipótese vertente,
acreditamos que nenhum prejuízo acarretará a aceitação do texto legal uruguaio
sem a tradução devida para o vernáculo. Primeiro, porque o espanhol, como
sabido, se assemelha muito ao nosso idioma, nesse sentido, não ensejando
dificuldade alguma na sua compreensão. Segundo, porque tanto o autor como o réu
e o juiz conhecem perfeitamente o espanhol, dispensando qualquer tradução para
bem compreenderem o texto de lei. Terceiro, porque o autor trouxe à colação
obra doutrinária idônea, que afasta por completo qualquer dúvida na tradução do
texto.
Veja-se que o exemplo acima trata
de vício essencial. No entanto, por não cominar o dispositivo legal do art. 157
pena de nulidade, consoante bem disposto no art. 244, ambos do CPC, o juiz
deverá "considerar válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar
a finalidade". Logo, perfeitamente autorizado ao juiz aceitar o texto
legal sem a tradução respectiva, uma vez preenchida a finalidade essencial do
ato, que, igualmente, não acarretou qualquer prejuízo para as partes. Vale
ressalvar que, em assim procedendo, não estaria o magistrado desobedecendo, ou
mesmo negando vigência ao disposto no art. 157 do CPC. Muito pelo contrário,
estaria dando prevalência à norma geral e superior do art. 154 e,
especialmente, à do art. 244, ambas do CPC que, em síntese, dão especial relevância
à necessidade técnica de se lograr ao fim ou objetivo último do próprio ato.
O problema da forma dos atos
processuais, sem dúvida, é dos mais importantes na seara do direito processual.
Àqueles que imputam ao rigor da forma as graves mazelas do processo ergue-se a
opinião daqueles que crêem que a falta de forma engendraria confusão e
incerteza. Essa afirmação, por vezes, é identificada com o formalismo.
Entretanto, vale dizer, a certeza é precisamente a de que existem fins mais
relevantes ao prosseguimento dinâmico do processo, que considerado como meio,
instrumento, é precipuamente destinado à realização de alguma finalidade, qual
seja, a pacificação social e o acertamento do direito em concreto.
O gênio de CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE
OLIVEIRA sustenta eruditamente que "a forma investe-se da tarefa de
indicar as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o
material a ser formado, estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e
agir as pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento", enfim,
parafraseando RUDOLF VON JHERING, "a forma é a inimiga jurada do arbítrio
e irmã gêmea da liberdade". Daí por que acudir imediatamente as palavras
com que MONTESQUIEU inaugurou o Livro 29, de seu Espírito das Leis: "As
formalidades da justiça são necessárias à liberdade". Esse o real sentido
e finalidade da forma, que não pode e não deve ser deturpado, sob pena de
erigirmos a forma como valor único em si mesmo.
A esse respeito, as regras de
sobredireito processual, nitidamente antiformalistas, quando ordenam ao juiz
considerar válido o ato, desde que tenha atingido o seu objetivo precípuo (art.
244 do CPC); quando determinam a aceitação do ato, embora viciado, se
inexistente prejuízo à parte (art. 249, parágrafo 1º, do CPC), à toda evidência,
estão a reconhecer a relativização dos vícios ocorrentes por infração a normas
de natureza imperativa, que visam tutelar interesse público.
Por aqui já se verifica que a
categoria do sobredireito processual deve ser adequadamente aplicada quando
ocorrente suposta nulidade absoluta, pois, no que pertine à nulidade relativa e
à anulabilidade, estas podem de todo ser sanadas. E é o próprio OVÍDIO BAPTISTA
que conclui no sentido de que todo o sistema de nulidades dos atos processuais
está primariamente dominado por um conjunto de princípios específicos e
peculiares ao direito processual, gerando um certo relativismo de todas as
regras sob as quais se pretenda classificar os defeitos dos atos processuais e
suas conseqüências, confortando, à saciedade, a orientação alhures lançada por
GALENO LACERDA.
Por esse motivo, o juiz de direito
ao lidar com a matéria-prima no exercício de sua função, ou seja, com conflitos
de interesse gerais e universais, deve validar e aprofundar a sua efetiva
participação com o caso real posto ao seu desate, para que, uma vez abstraída a
legítima hierarquia de interesses tutelados pelos textos de um código de
processo, seja preservado o sentido fundamental e vital de todo o sistema que o
anima. "Neste sentido, tratando-se de um Código de Processo, o interesse
público superior, que o inspira e justifica, é que se preste ele a meio eficaz
para definição e realização concreta do direito material. Não há outro
interesse público mais alto, para o processo, de que o de cumprir sua
destinação de veículo, de instrumento de integração da ordem jurídica mediante
a concretização imperativa do direito material" .
Além desses dispositivos legais,
que encerram evidentemente o caráter de normas de sobredireito processual,
GALENO LACERDA constatou a existência de alguns outros. É o caso, por exemplo,
do parágrafo único, do art. 250, do CPC, que determina sejam aproveitados os
atos praticados, desde que não resulte prejuízo à defesa, apesar do erro na
forma do procedimento. Tudo em homenagem ao preceito mais alto da
instrumentalidade das formas e do processo, que se sobrepõe a qualquer outra
norma. É o caso examinado pelo próprio GALENO LACERDA, por ocasião do
julgamento da apelação cível n.º 583048061, cuja ementa vem assim noticiada,
verbis;
"Pretensão possessória,
encaminhada sob forma equivocada de medida cautelar inominada de imissão de
posse. Constituto possessório. Efeitos. Confere ele ação possessória ao
adquirente, e não de imissão na posse. Possibilidade em tese de cautelas
satisfativas, não, porém, na espécie. Aplicação do art. 250 do CPC, como regra
de sobredireito processual, a fim de a forma processual errônea adaptar-se à
pretensão possessória manifestada. Anulação do processo para tal fim, a partir
do despacho inicial e da citação inclusive" .
Também o do art. 462 do CPC, ao
determinar que, "se, depois da propositura da ação, algum fato
constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da
lide, caberá ao Juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte,
no momento de proferir a sentença", atribuindo, portanto, a idéia da
relevância dos fatos supervenientes, em repúdio ao formalismo excessivo, a fim
de, com os olhos voltados à economia das partes e à necessidade de eliminar-se
o litígio com presteza, possa ser aproveitado o já instaurado para fazer a
justiça ulterior ao momento inicial.
Por fim, a receber por parte do
mestre a natureza de normas fecundas de flexibilidade, se sobrepõem às demais
os parágrafos 1.º e 2.º, do art. 515, do CPC, no sentido de que seja ampliado o
efeito devolutivo da apelação, além dos limites da sentença, a todas as
questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não as tenha julgado
por inteiro. Do mesmo modo, o disposto no art. 517, do CPC, que autoriza sejam
suscitadas na apelação as questões de fato, se a parte provar que deixou de
fazê-lo por motivo de força maior.
Com a nova redação trazida pela Lei
n.º 8.950/94, entendemos que o art. 516, do CPC, igualmente encerra a condição
privilegiada de prevalência sobre as demais regras comuns, ao dispor que
ficarão submetidas ao segundo grau o conhecimento das questões anteriores à
sentença, ainda não decididas. Nesse particular, importante o estudo daquelas
questões que, embora decididas em primeiro grau, ensejam o dever de cognição
oficiosa pelo órgão encarregado de prestar a jurisdição, como, por exemplo, as
referentes às condições da ação e aos pressupostos processuais.
Às vezes, como já mencionado, atos
praticados por aqueles que participam de uma relação jurídica processual
atingem a sua real finalidade, embora as normas que os regulamentem tenham
eleito um meio em detrimento de outro, com o qual lhe atribuem o caráter
formalístico, como muito bem assinalou CHIOVENDA no início do século .
No entanto, predominando a idéia de
processo como fenômeno essencialmente cultural, continuativo e dinâmico, seu
fim e não sua forma é que o define e o delimita. Tanto é o seu fim que o
delimita que a idéia teleológica de processo já de há muito predomina no
pensamento dos mais renomados processualistas, consoante advertência de WACH e
SCHÖNKE, citados por COUTURE . Teleológica, porque o fim visado precipuamente
pelo processo, antes da satisfação dos interesses do indivíduo, é a realização
efetiva da justiça e a pacificação social. Este o conceito social de processo,
veementemente proclamado pelo jovem e talentoso processualista gaúcho DARCI
GUIMARÃES RIBEIRO em suas palestras.
Note-se bem que precisamente por
considerarmos o processo um fenômeno sócio-cultural é que possibilitamos um
passo além para nele também identificarmos, à luz de uma visão jurídica, o seu
aspecto teleológico como nota fundamental e informadora.
Com efeito, o que há de mais
cristalino e axiologicamente irredutível no processo, enquanto fenômeno
sócio-cultural, é o estar sempre dirigido para a efetiva e justa realização de
algo. E sobre essa finalidade, ou seja, sobre a legitimidade do instrumento de
orientar-se na área de sua própria incidência - na vida, no humano -
diferentemente do sol que se põe, da chuva que cai, é que se constitui a
justiça e a paz social, de molde a atribuir-lhe supremacia.
Avulte-se para a descoberta genial
e revolucionária no direito processual. Longe de afirmar-se como alternativa, a
doutrina de GALENO LACERDA vem adminiculada na sólida interpretação sistemática
e teleológica do Código de Processo Civil, considerado por ele um dos melhores
do mundo. Nesse sentido, o operador do direito não pode e não deve simplesmente
ater-se à fria aplicação da lei ao caso concreto. Antes, deverá buscar, da
interpretação e leitura sistemática de todo o ordenamento, os princípios e as
normas fundamentais que animam todo o Sistema.
Não erramos ao considerar como
ocorrente antinomia entre normas do nosso ordenamento jurídico, tendentes a,
aparentemente, afetar toda a estrutura do sistema, uma vez verificada a maior
hierarquia de valores em alguns preceitos, considerados paradigmáticos. É que,
existindo determinada norma que se sobreponha às demais, nesse sentido,
atribuindo-se-lhe caráter de preceito maior, superior, a sua efetiva aplicação
é a única solução para a antinomia aparente, sob pena de, em não sendo
aplicada, negarmos vigência e o caráter da norma hierarquicamente superior.
Nesse momento, especial atenção
deve ter o operador do direito, por ocasião da adequada interpretação e
aplicação da lei na prática de seu mister. Para tanto, deverá conhecer como
ninguém todo o sistema, ou, ao menos, os princípios retores que o animam.
Aliás, como bem sustenta JUAREZ FREITAS, todas as frações do ordenamento
jurídico estão em conexão com a inteireza de seu espírito, daí por que
concluir-se que toda e qualquer interpretação de uma norma jurídica há de,
necessariamente, ser efetivada à luz dos princípios gerais, normas e valores
constituintes que animam todo o sistema.
Deverá o operador do direito
escolher qual das duas normas "conflitantes" prevalecerá, adotando,
para tanto, adequados critérios de hermenêutica e interpretação, bem como,
muitas vezes, o bom senso, a fim de que possa assegurar, declarar ou realizar o
direito com o menor gravame possível.
Essa, sem dúvida, a idéia
fundamental que deverá nortear todos nós, ou seja, o caráter de fato cultural
do processo, cujos fins consistem, precipuamente, na realização da justiça e da
paz social, bem como na solução da lide, em seu aspecto geral e universal.
Necessária, pois, a relativização de todas as normas e princípios processuais
sempre que forem conflitantes com a efetiva obtenção da justiça, sob pena de
autorizarmos a existência de um modelo processual inadequado ao seu objeto. O
escopo social do processo deverá ser perquerido de forma incansável, definindo
e realizando o direito material, de molde a adequá-lo à realidade social a que
se destina.
Por isso a importância do movimento
pela chamada constitucionalização do processo, a evidenciar a natureza
fundamental e política do acesso à ordem jurídica justa e do seu efetivo
exercício, sempre guardando respeito à dignidade da pessoa humana e à paz
social, valores supremos insculpidos na Carta Política Federal. A aplicação e
interpretação sistemática dessas regras permitirá, à evidência, ao operador do
direito a justa composição da lide.
É tarefa primordial do operador do
direito descobrir a relação direta entre o texto da lei e o caso concreto,
entre a norma jurídica e o fato social. Interpretar será o seu único caminho,
isto é, determinando o verdadeiro sentido e alcance das expressões do Direito.
Assim procedendo, como referido, estará aplicando o direito, de modo justo e
efetivo.
IV - CONCLUSÕES
O presente ensaio teve como
principal objetivo analisar a importância da estrutura do sistema das
nulidades, no que pertine ao exame de vícios essenciais do processo, à luz dos
princípios da adequação e da relativização das nulidades, através da categoria
dos sobredireitos processuais.
Após discorrer-se brevemente sobre
a estrutura fundamental e básica da sistematização das nulidades processuais
perpetrada pelo mestre GALENO LACERDA, desse exame, conseguiu-se demonstrar a
sua atualidade e legítima pertinência para a prática diuturna dos operadores do
direito. Tão-somente no que diz respeito aos vícios essenciais e insanáveis,
concebidos como nulidades absolutas, é que deveremos ter especial e redobrada
atenção para o seu reconhecimento, uma vez realizada a leitura sistemática e
teleológica da norma legal, em conjugação com a categoria dos sobredireitos
processuais.
A categoria do sobredireito
processual, compreendida como a aplicação de regras e princípios superiores,
deve ser interpretada de forma a abranger todo o sistema vigente.
Neste diapasão, cremos que, bem
aplicada a teoria das nulidades processuais, em conjunto com a categoria do
sobredireito processual e, principalmente, com a teoria da adequação, o
processo, visto e entendido como verdadeiro instrumento colocado à disposição
dos cidadãos para o efetivo acesso à ordem jurídica justa, servirá à justiça
humana, social e concreta, a que se reduz seu princípio informador e capital.
A realidade da vida nos impõe
diariamente uma multiplicidade de conflitos de valores. Ao invés de rechaçarmos
certos princípios essenciais à justiça e à dignidade da pessoa humana,
deveremos, isto sim, orientar nossa conduta para a sujeição na aplicação de
relevantes e superiores princípios, sem nos basearmos em critérios
preconcebidos, sempre que houver necessidade da observância de preceitos
paradigmáticos de maior hierarquia. A justiça da decisão está na concretude do
bem comum, na valoração axiológica do caso real, sempre dirigido ao fim último
da realização da justiça e da paz social.
Para tanto, mister se faz que para
cada relação jurídica material exista uma estrutura processual adequada. As
normas processuais, como bem proclama o mestre GALENO LACERDA, têm de se
adequar ao direito material, e não este àquelas. Tudo isso, para que seja
possibilitada a outorga de efetiva tutela jurisdicional, que será determinada e
delimitada pela natureza do direito posto em causa, lançando a
instrumentalidade do direito processual à eficácia plena e efetiva de sua utilidade
jurídico-social.
Cumpre destacar, entretanto, que o
problema da efetividade da tutela jurisdicional, que tanto é perseguida pelos
operadores do direito, não tem por causa única e exclusivamente a necessidade
de mudanças na legislação processual, como se pretende. Em verdade, a
problemática da efetividade enseja exame mais profundo, uma vez verificada a
existência de aspectos relacionados com o âmbito externo do modo de atuação do
processo, ou seja, a efetividade concreta dependerá, igualmente, de uma boa e
eficaz organização judiciária, do aparelhamento de seus órgãos e,
precipuamente, do aperfeiçoamento dos juízes e seus auxiliares. A lição de RENÉ
MOREL permanece atual: é inútil dispor de boas leis processuais se é má a
organização judiciária ou não insuficientes os juízes, ao passo que magistrados
com amplos conhecimentos podem, a rigor, atuar bem leis medíocres.
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