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A COISA JULGADA NOS DISSÍDIOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

 

Marcelo Pacheco Machado[1]

 

 

“Porque toda salvação se transforma em estorvo, já que o destino de qualquer progresso é se tornar obsoleto”

(João Uchoa Cavalcanti Netto)

 

 

Sumário: 1. Do objetivo; 2. Comentários ao título; 3. A coisa julgada do inc. III do art. 103 do CDC; 4. Da coisa julgada erga omnes; 5. Da coisa julgada secundum eventum litis, 6. Da litispendência; 7. Da identidade entre ações individuais e coletivas individuais homogêneas; 8. Da coisa julgada coletiva como pressuposto processual; 9. Da impossibilidade da formação de coisa julgada entre ações ajuizadas por diferentes co-legitimados; 10. Dos casos de improcedência por insuficiência de provas; 11. Bibliografia.

 

 

1.      DO OBJETIVO

 

Muito se fala da inaplicabilidade dos conceitos individualistas do Código de Processo Civil ao microssitema da ação civil pública, pelo fato desta tratar de interesses distintos, de amplitude diferenciada.

 Assim, uma vez afirmada esta premissa, todos os problemas que surgem neste novo sistema tendem a ser compreendidos como completamente novos e dissociados dos institutos do direito processual civil individualista.

Mas algo é bem claro, o CPC é diploma integrante ao supramencionado sistema, e, por este motivo, todos os conceitos presentes no código devem ser aplicados às ações coletivas, desde que, obviamente não contrariem as disposições mais específicas presentes na LACP e no CDC.

 Portanto, não faz o menor sentido fazer distinção de conceitos como o da litispendência, litisconsórcio, conexão e continência e da coisa julgada no que se relaciona a sua aplicação aos processos individuais e aos coletivos, pois, por óbvio, a mesma norma jurídica não pode fornecer conceitos distintos quando aplicada em diversos contextos.

Assim, os mesmos institutos do processo civil individualista se repetem no processo coletivo, mas, naturalmente, trazendo características peculiares que levam ao operador do direito a falsa crença de que estaria diante de algo completamente novo, quando, na verdade, os conceitos são os mesmos, pois trazidos pela mesma fonte de normas, o CPC.

Portanto, é o presente artigo uma tentativa de conciliar doutrinariamente o CPC às normas especificas relacionadas às ações coletivas individuais homogêneas no que se refere a coisa julgada e, dessa forma, garantir maior concisão a todo o ordenamento jurídico, evitando a criação de exceções e filigranas doutrinárias que nada mais são do que explicações sofismáticas e metalegais para se estabelecer a própia vontade do doutrinador, que por muitas vezes vence por sua própia autoridade em detrimento da de seu argumento.

 

2.      COMENTÁRIOS AO TÍTULO

 

            Considerações preliminares devem ser tecidas a respeito do supramencionado título na simples intenção de se precisar o objeto do presente ensaio.

            Primeiramente, quanto ao emprego da expressão “coisa julgada”, clarifico que o texto não tratará, ao contrário do que pode ser presumível a partir da leitura do enunciado, da “simples” coisa julgada (no sua acepção semântica), mas sim da coisa julgada material.

            Entende-se a “simples” coisa julgada como o produto daquela relação processual que, depois de exposta a determinado Juízo competente, recebeu um pronunciamento jurisdicional, ou seja, um julgamento, tornando-se assim, simplesmente, algo que foi julgado.

            Portanto, não faz sentido algum falar, especificamente, desta coisa julgada, pois ela tem relevância apenas ao caso concreto, quando acolhe ou não as pretensões do demandante e do demandado.

            Acrescento, entretanto, que também não tratará o texto da coisa julgada formal. Esta é produto do processo que se torna, dentro deste, imutável, por não mais ser cabível qualquer sorte de recurso. A este respeito leciona Ovídio A. Baptista da Silva[2] “Trata-se, portanto, de uma forma de preclusão, que cobre a sentença de que não mais caiba recurso algum. Não se trata de verdadeira coisa julgada, tal como este conceito vem sendo estudado pela doutrina”.

            A coisa julgada a que Baptista refere-se como a que vem sendo estudada pela doutrina é a chamada coisa julgada material (coincidentemente, objeto do presente ensaio), que, ao contrário dos conceitos anteriormente demonstrados, é de definição muito mais complexa.

             Por decênios vem a doutrina tentando definir a “verdadeira coisa julgada”, sem encontrar nenhum vestígio de conformidade. Baptista infere o tema como provavelmente aquele sobre o qual os juristas mais tenham escrito em todos os tempos.

            Portanto, é evidente que, contagiado pelo mau uso da expressão, a aplico na forma tecnicamente inadequada no título deste, posto que na verdade inintencionava referir-me à autoridade da coisa julgada, por Liebman definida[3] como “o modo de manifestar-se e produzir-se dos efeitos da própia sentença, algo que a esses efeitos se ajunta para qualificá-los e reforçá-los em sentido bem determinado”, ao invés de incitar simplesmente o objeto cognoscitivo que recebeu um provimento jurisdicional (simples coisa julgada).

           

3.      A COISA JULGADA DO INC. III DO ART. 103 DO CDC.

 

 

            Antes da vigência do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/1990), a Lei da Ação Civil Pública (7347/1985), era solitária em regular os institutos da ação civil pública no ordenamento jurídico brasileiro, sendo o Código de Processo Civil utilizado apenas como norma suplementar.

            Dessa forma, no período era entendimento doutrinário dominante que a estas ações não se aplicava a tutela de quaisquer interesses individuais, inclusive os chamados homogêneos, pela justificativa de não ser concebível que o Ministério Público[4] ajuizasse ações para defender interesses de indivíduos plenamente capazes de, sozinhos, defenderem seus próprios interesses.

            Não obstante, o CDC em seu artigo 117, veio a prever a inclusão do artigo 21 na lei 7347/1985, determinando que se aplicaria, também, a defesa dos interesses individuais homogêneos, o disposto no Título III da lei que introduziu o CDC. Deste modo, excluiu-se definitivamente qualquer incerteza a respeito da admissibilidade dos direitos individuais homogêneos no rol daqueles defendidos pela lei 7347/1985.

            Assim, é possível evidenciar a interatividade da Lei de Ação Civil Pública com o Código de Defesa do Consumidor que passaram a possuir normas de mútua referência. Este, certamente, trouxe uma gama muito mais complexa de normas a regular as ações civis públicas em nosso ordenamento, preenchendo uma série de conceitos e instrumentos previstos na Lei 7347/1985. Sem dúvida alguma, no que se refere à coisa julgada, não foi diferente, sendo pelo diploma de defesa do consumidor uma série de alterações apresentadas.

            No CDC, trata especificamente da coisa julgada nos dissídios que envolvem interesses individuais homogêneos o inc. III do art. 103, transcrito da seguinte forma:

 

“Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada:

III – erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vitimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do artigo 81.”[5]

 

4.      DA COISA JULGADA ERGA OMNES

 

            O artigo 103 do CDC traz a expressão erga omnes para referir-se a coisa julgada prevista nos incisos I e III, mas o que seria a coisa julgada erga omnes? Seria ela, em si, algo novo? E, também, existiria diferença entre a característica erga omnes prevista nos diferentes incisos?

            Tais questionamentos merecem, de fato, sérias considerações.

            Erga omnes é uma expressão latina que significa contra todos, portanto, quando se fala em coisa julgada erga omnes, diz-se que a autoridade da sentença existirá em face de todos os indivíduos, sem exceção, que a ela deverão se submeter.

            Assim, tomemos como exemplo um típico caso de sentença condenatória que trata de interesses individuais homogêneos, como a situação em que uma montadora é condenada a indenizar todos aqueles que compraram certo modelo de veículo defeituoso. Na presente situação, caso procedente a sentença, segundo o CDC (art. 103, inc. III), a coisa julgada será erga omnes e, dessa forma, sua autoridade prevalecerá contra todos.

            Ora, Caio, por exemplo, não comprou o determinado veículo e nem sofreu qualquer dano indireto em decorrência do ato ilícito da montadora, mas, mesmo assim, a coisa julgada exercerá autoridade em face da sua pessoa?

            A princípio, tal questionamento não faz o menor sentido, pois Caio não foi beneficiado ou prejudicado em função de tal condenação, da mesma forma que um terceiro, no processo civil individualista regido pelo CPC, não será influenciado por coisa julgada em litígio no qual não figurou como parte, assim de acordo com o artigo 472 do mesmo diploma.

            Portanto, observa-se que se tratando de direitos individuais[6] não é possível conceber que os efeitos principais da condenação se estendam ultra partes, muito menos em face de todos, pois eles estão circunscritos por relações fáticas à esfera de cada indivíduo, faltando assim interesse de terceiros para com aquela relação, fazendo com que estes, necessariamente, se excluam da lide e não sejam afetados por seu resultado. Estes são os chamados terceiros juridicamente indiferentes, da doutrina de BETTI[7].

            Outrossim, cabe admitir que toda coisa julgada, sem exceção, produz efeitos contra todos, ou seja, a autoridade da sentença deve existir para determinar que todos os indivíduos existentes em certa jurisdição reconheçam a coisa julgada, sob pena de ela perder sua eficácia. Ora, se determinada coisa julgada fosse apenas imposta às partes, e, por ninguém mais reconhecida, estaríamos de volta ao período de autodeterminação, fazendo, assim, perder todo o sentido o Princípio da Demanda. Nesse sentido leciona CHIOVENDA[8]: “Todos somos obrigados a reconhecer o julgado entre as partes; não podemos, porém, ser por ele prejudicados[9]. Entretanto, nesse caso, os efeitos que se promovem em face de terceiros são efeitos reflexos, comuns a toda decisão judicial.

             “Entendeu SEGNI notavelmente a categoria desses efeitos reflexos, abrangendo neles tanto os efeitos secundários da sentença, quando dizem respeito a terceiros, quanto a extensão a eles da autoridade do julgado, e afirmando decididamente a identidade de natureza de uns e de outros e a sua pertinência comum àqueles fenômenos de repercussão a que deu JHERING o nome de efeitos reflexos.[10]

            Portanto, conclui-se que a expressão erga omnes utilizada no inciso III do art. 103 do CDC é completamente desnecessária, pois na verdade, apenas repete uma característica essencial a toda coisa julgada.

            Assim, deve-se admitir uma diferenciação semântica no que tange a expressão erga omnes quando utilizada nos incisos I e III do art. 103 do CDC, por este ser o único meio coerente de se interpretar tal dispositivo, uma vez que no inciso primeiro a coisa julgada possui características sui generis.[11]

            Na coisa julgada proveniente de lides que visam a tutela de interesses difusos, a expressão erga omnes deve ser necessariamente interpretada em sentido distinto, pois verdadeiramente todos os efeitos da res judicata se produzem em face de toda a coletividade, pelo fato de todos, sem exceção, possuírem interesse naquela relação processual, enquanto, na proveniente de lides relacionadas a direitos individuais homogêneos, apenas efeitos reflexos serão produzidos em face de todos, restringindo-se os efeitos principais da sentença a apenas aqueles que possuem interesse legítimo na relação processual desenvolvida, podendo ser diretamente afetados no plano substancial  pela decisão (evidentemente, somente no caso de procedência do pedido em relação ao autor[12]).

            Ora, a coisa julgada nos dissídios que tutelam interesses difusos relaciona-se a direitos tutelados por todos (direitos difusos), como, por exemplo, o da preservação do meio ambiente, o que gera, portanto, uma coisa julgada que, de fato, merece ser diferenciada, pois todos estão substancialmente envolvidos no conflito.

            No caso da tutela dos interesses individuais homogêneos existe um grupo determinado ou determinável que será diretamente afetado pelo julgado, então, como falar que todos poderiam ser afetados pela decisão judicial (efeitos principais da decisão), se, substancialmente, isto seria impossível?

            Desta incoerência, só nos resta interpretar o inciso terceiro com bastante restrição, sob pena de ser impossível o fazer de outra forma, entendendo, assim, como erga omnes apenas os efeitos reflexos da sentença.

 

5.      DA COISA JULGADA SECUNDUM EVENTUM LITIS

 

            Dita, também, o inciso terceiro do artigo 103 do CDC, que a coisa julgada nos casos do inc. III do art. 81 do mesmo diploma será erga omnes apenas no caso de procedência do pedido. Ao acréscimo do referido inciso, esclarecem os § 1º e 2º do mesmo artigo:

 

“§1º - Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. § 2º - Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.”

 

            Pois bem, anteriormente, já concluímos que a coisa julgada, nesses casos, jamais poderá ser erga omnes quanto aos efeitos principais da sentença. Todavia, com tal expressão o legislador busca de forma infeliz determinar que no caso de procedência do pedido, todos aqueles que possuem seus interesses substituídos[13] por um dos co-legitimados que ajuizaram a ação coletiva poderão ser beneficiados para poderem, em habilitação posterior, apurar o quantum individual devido.

            Outrossim, visto a existência de previsão expressa, a coisa julgada coletiva não poderá prejudicar interesses individuais, que, por óbvio, poderão ser manifestados posteriormente mesmo que tenha sido julgada improcedente a ação coletiva.

            A respeito dos casos de intervenção, previstos no parágrafo 2º, a norma é clara (pondo-se à parte críticas a respeito de sua coerência) no sentido de determinar que aqueles que foram litisconsortes em ação coletiva não poderão ajuizar ação individual posterior nos casos de improcedência, visto que serão atingidos pela coisa julgada desfavorável.

            Podendo-se, assim, presumir a possibilidade de indivíduos atuarem como litisconsortes no processo coletivo, possibilidade esta criada pelo legislador, que, na verdade, destoa da teleologia do processo coletivo que é exatamente evitar a presença de vários sujeitos processuais.

            Por conseguinte, observa-se que a lei, apesar de permitir o litisconsórcio, o desestimula afirmando que os litisconsortes serão atingidos pela coisa julgada nos casos de improcedência, dando a eles tratamento diferenciado dos demais envolvidos.

            Ora, aqueles que intervierem como litisconsortes estariam abdicando de seu direito de serem substituídos na ação coletiva por um dos co-legitimados, demandando assim individualmente seus interesses, mesmo que no mesmo processo da ação coletiva, portanto, a coisa julgada que se formará em face do litisconsorte não será a coisa julgada coletiva a que se presta diferenciar o CDC, mas sim uma coisa julgada individual, que como já observado, é pressuposto processual negativo ao ajuizamento de nova demanda individual.

            Portanto, não se pode conceber a possibilidade de um qualquer litisconsorte ajuizar posterior ação individual, pois este, para isto, fatalmente fará jus ao arquivamento do processo sem julgamento de mérito, com base no art. 267, V, do CPC.

            Assim, conclui-se que a coisa julgada coletiva, como já demonstrado, não impossibilitará o ajuizamento de posterior ação individual no caso de improcedência e que, no caso de procedência, não se fará em face de todos, mas apenas em face daqueles substituídos naquele processo por um dos co-legitimados que ajuizou a ação civil pública. A este respeito confirma o § 3º do artigo 103 do CDC:

 

“Os efeitos da coisa julgada de que cuida o artigo 16, combinado com o artigo 13 da Lei n.º 7347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste Código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vitimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos artigos 96 a 99.”

 

            Portanto, observa-se outra previsão legal expressa de que os indivíduos, quando substituídos, não poderão ser prejudicados por coisa julgada em ação coletiva, sendo eles beneficiados pela condenação genérica que permitirá posterior execução individualizada. Tudo de acordo com o princípio da não prejudicialidade de terceiros, bem evidenciado por CHIOVENDA na já citada afirmação: “Todos somos obrigados a reconhecer o julgado entre as partes; não podemos, porém, ser por ele prejudicados”.

            Não obstante, caso existente ação individual anterior a ação coletiva, deve o indivíduo requerer a sua suspensão e aguardar o julgamento da ação posterior, para, no caso de procedência se beneficiar e, no caso de improcedência, continuar o trâmite normal de sua ação individual, visto que, caso venha a se formar coisa julgada anterior em ação individual, não se pode logicamente conceber a possibilidade de o indivíduo vir a ser representado na ação coletiva por um dos co-legitimados, devido a sua falta de interesse, pois ele já recebeu um provimento jurisdicional. Assim, não poderá o indivíduo ser beneficiado pela coisa julgada coletiva posterior. A este respeito, o art. 104 do CDC:

 

“As ações coletivas, prevista nos incisos I e II do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes  a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida a sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.”

           

6.      DA LITISPENDÊNCIA

 

            Na análise do supracitado dispositivo, o que se evidencia é que não existe litispendência como pressuposto processual negativo quando em análise uma ação individual e uma ação coletiva que trate de direitos difusos ou coletivos, mas quanto aos individuais homogêneos o código não é claro.

            Compreendemos, porém, que, apesar de não ser explicita a permissão, o CDC admitiria a possibilidade do tramite conjunto de ações coletivas e individuais idênticas (caso possível a identidade destas ações), portanto, que poderiam ser taxadas como litispendentes em pura análise ao CPC. Entretanto, por força de norma mais especifica presente no CDC, a litispendência não funcionaria como pressuposto processual negativo.

             Senão vejamos. No artigo 104 do CDC, segunda parte, afirma-se a possibilidade de existir simultaneamente ação coletiva individual homogênea e individual propriamente dita que “induziriam” litispendência, pois prevê a possibilidade do demandante individual requerer a suspensão do processo, o que subentende, naturalmente, que também existe a possibilidade do processo continuar com seu tramite natural, caso não requerida a suspensão.

            Assim, hipoteticamente, partindo-se da premissa de que seria possível caracterizar litispendência entre uma demanda individual e outra coletiva, não seria vedado o tramite conjunto de ambas as ações caso não requerida a suspensão da demanda individual.

 

7.      DA IDENTIDADE ENTRE AÇÕES INDIVIDUAIS E COLETIVAS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEAS

 

            Uma vez já fixada a premissa da possibilidade de utilização do CPC como fonte de normas para a regulação do sistema das ações coletivas, note-se o que dita expressamente o diploma em seu artigo 301, § 2º:

           

“Uma ação é idêntica à outra, quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.”

 

            Assim, a partir da leitura do texto legal há de se compreender, sem margem a distintas interpretações, que, para que se concebam iguais duas ações é essencial que exista a chamada tríplice identificação de partes, pedido e causa de pedir.

            Assim, para apenas cogitarmos a possibilidade de identidade entre ações individuais e coletivas é necessário que sejam iguais as partes em ambas as ações, portanto, o pólo ativo deve ser ocupado pelo mesmo sujeito em ambos os casos.

            Dessa forma, é desde início limitada esta possibilidade, pois é bastante rara a situação em que o pólo ativo pode ser ocupado pelo mesmo sujeito em ações coletivas e individuais. Isto porque o artigo 82 do CDC restringe aqueles que podem ocupar o pólo ativo de uma demanda coletiva, elencando certos e específicos entes legítimos para o ajuizamento de ações civis públicas.

            Portanto, para que exista uma identidade de partes é necessário que um daqueles entes citados no artigo 82 do CDC seja parte ou tenha sido parte na ação coletiva e na ação individual.

            Mas, não obstante a possibilidade de o mesmo sujeito ajuizar demandas individuais e coletivas, não é possível que este mesmo co-legitimado ajuíze estas ações com o igual pedido e causa de pedir, isto porque, primeiramente, não há como se falar em pretensões idênticas que motivam o ajuizamento das distintas espécies de ações.

            Vicente Greco Filho[14] define a causa de pedir como a junção da causa de pedir próxima e remota, aquela, segundo o autor, é justamente o fundamento jurídico que justifica o pedido. Portanto, a partir destas afirmações, pode-se perceber a íntima relação da causa de pedir com o pedido, pois esta fundamenta a existência do pedido, ela é exatamente o motivo pelo qual se pede algo.

            Portanto, há de se admitir, a priori, que não é possível a identidade de pedidos entre ações individuais e coletivas, primeiro, porque nestas o pedido – quando de condenação - será sempre um pedido genérico, mas principalmente porque, as causas de pedir terão naturezas distintas, pois em ações individuais – via de regra - se defende direito próprio e, nas ações coletivas se defende direito de outrem, que não é parte.

            Dessa forma, os fundamentos jurídicos que motivam a propositura das ações serão sempre diferentes, o que leva a conclusão de que, visto a impossibilidade de uma ação coletiva ser repetida em uma ação individual e uma individual em coletiva, é impossível a formação de coisa julgada e litispendência em relação a estas duas sortes de ações.

           

8.      DA COISA JULGADA COLETIVA COMO PRESSUPOSTO PROCESSUAL

     

            “Há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso”. É a redação da segunda parte do § 3º do artigo 301 do CPC.

            Não há norma no ordenamento jurídico brasileiro que defina especificamente a coisa julgada proveniente de ações coletivas, portanto, de acordo com o próprio artigo 21 da lei 7347/85, o CPC deve ser utilizado como norma subsidiária e, conseqüentemente, sua definição de coisa julgada como regra para definição da coisa julgada no sistema das ações coletivas.

            Dessa forma, identifica-se primeiramente que, para que exista a coisa julgada como pressuposto processual negativo é necessária a repetição de uma ação que já teria transitado em julgado, portanto, deve haver uma sentença passada em julgado proveniente de uma ação idêntica a que se pretende propor para que essa seja dada como dotada do pressuposto processual negativo, e, portanto, extinta sem julgamento de mérito.

            Assim, recaímos na questão do tópico anterior, onde foi necessário estabelecer os elementos da ação e exigir a sua identidade para que sejam concebidas como idênticas duas ações, pois a identidade é um requisito para a determinação da coisa julgada, como previsto na norma supramencionada.

            Portanto, evidenciamos que se formará a coisa julgada no âmbito das ações coletivas apenas na situação em que existirem duas ações coletivas idênticas.

            Observemos, porém, que, como já frisado, só existirá a identidade entre as ações coletivas e, portanto a coisa julgada, quando o pedido, a causa de pedir e as partes de duas ou mais ações forem idênticas. Assim, resta evidente que, só existirá coisa julgada nas ações coletivas quando um mesmo co-legitimado ajuizá-las.

            Tal situação fica muito bem caracterizada quando um co-legitimado ajuíza uma segunda ação coletiva com o mesmo pedido e causa de pedir de outra ação coletiva já transitada em julgado que ele mesmo propôs. Dessa forma, a segunda ação proposta deverá ser extinta sem julgamento de mérito com base no artigo 267, V do CPC.

     

9.       DA IMPOSSIBILIDADE DA FORMAÇÃO DE COISA JULGADA ENTRE AÇÕES AJUIZADAS POR DIFERENTES CO-LEGITIMADOS.

           

            Pelas razões já expostas, fica bem claro que, pois necessariamente ser distinta a ocupação do pólo ativo, é impossível a existência de coisa julgada entre demandas propostas por diferentes co-legitimados, pois a existência deste pressuposto processual depende da verificação de ações idênticas, que, para assim serem tachadas, necessitam de partes iguais, portanto, que seus autores não sejam distintos.

            Entretanto, situação inusitada ocorre entre ações civis públicas, pois o mesmo objeto cognoscitivo pode ser exposto ao judiciário por meio de ações distintas.

            Ora, isto só ocorre porque a legitimação extraordinária, por permitir a tutela de interesse de terceiros, pode permitir que iguais interesses substanciais de pessoas idênticas sejam tutelados em ações diferentes, quando diferentes co-legitimados ajuízam diferentes ações civis públicas expondo a mesma situação fático-jurídica e pedindo o mesmo.

            Neste caso, o que se evidencia é uma semelhança entre as ações que vai além da igualdade do pedido e da causa de pedir, pois os efeitos principais de ambas as coisas julgadas se estenderão ao mesmo grupo de pessoas.          

            Não obstante, apesar de em ambos os casos a coisa julgada se estender ao mesmo grupo de pessoas, esta, via de regra, não se estende aos autores das ações civis públicas, pois eles são entes dissociados da relação fática deduzida em juízo, sendo permitido a eles o ajuizamento das ações civis públicas por força direta de lei.

            Portanto, detectada a presença de coisa julgada em processo semelhante - no grau anteriormente mencionado - ao que virá a se formar, é evidente que aquela não deverá operar como pressuposto processual negativo para o processo a ser proposto, visto a distinção das partes, mas, antes mesmo de se verificar pressupostos processuais, poderá ser percebida da carência de condição da ação.

            Isto porque, o co-legitimado que intentar propor a segunda ação semelhante não possuirá interesse de agir, devido a, data vênia, evidente falta de utilidade de um novo provimento jurisdicional a respeito daquela mesma situação jurídica, outrora deduzida em juízo por meio de ação coletiva distinta.

            O fato daquele conflito de interesses já ter sido deduzido em juízo uma vez e, conseqüentemente, atingido o seu fim normal, com a produção de um provimento meritório, já é suficiente para tornar completamente inútil um novo provimento a respeito daquela mesma lide, não importando, portanto, que o conflito de interesses tenha sido deduzido em juízo por meio de ações distintas, vez que estas são caracterizadas formalmente pelas partes que as compõem.

            Ora, a utilidade que se refere a doutrina como requisito do interesse de agir  “é uma utilidade que se passa no plano do direito processual, utilidade do provimento e não do bem pretendido[15].”

            Assim, questiono: qual é a utilidade de um provimento em uma ação civil pública ajuizada por um diferente co-legitimado, que se funde nos mesmos fundamentos de fato e de direito de outra ação civil pública que já transitou em julgado, possuindo, também, pedidos iguais?

            A mera existência da coisa julgada referente a primeira ação torna desnecessária e inútil a existência da segunda ação, pois o pedido imediato da segunda ação será exatamente a concessão de um provimento igual ao que foi concedido no trâmite da primeira ação.             

            Não há utilidade em se manifestar o judiciário a respeito de um conflito para qual este já se pronunciou, pois a coisa julgada existente, embora diferente da que se formaria na nova ação, supre a necessidade de um novo pronunciamento, pois gerará efeitos às mesmas pessoas que gerou a coisa julgada existente, em função da mesma relação material.

            Portanto, não há como se conceber a existência de interesse processual para o ajuizamento da segunda ação, que deverá inexistir por falta de sua condição essencial.

 

10.   DOS CASOS DE IMPROCEDÊNCIA POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS

           

            O CDC, em seu artigo 103 incisos I e II, prevê que “não farão coisa julgada” as ações cujos pedidos forem julgados improcedentes por insuficiência de provas.

            Não obstante, no inciso III do mesmo artigo a mesma expressão não é utilizada, o que, a priori, permite concluir que nos casos de ação civil pública que represente interesses individuais homogêneos, as ações julgadas improcedentes por insuficiência de provas não impedirão a “formação da coisa julgada”.

            Ora, tal diferenciação é bastante lógica, pois no caso da tutela dos interesses individuais homogêneos restará ainda a possibilidade do ajuizamento de ação individual no caso de improcedência da ação coletiva, por isso, se, hipoteticamente, foram mal substituídos os indivíduos na ação coletiva, posto não terem sido apresentadas as provas necessárias ao convencimento do juiz, e, conseqüentemente a ação vir a ser julgada improcedente, os prejuízos sofridos pelos substituídos serão mínimos, pois eles ainda poderão ajuizar ação individual, expondo as provas e argumentos que entenderem de direito.

            Entretanto, quanto à tutela dos direitos difusos e coletivos o mesmo não poderá ser afirmado, pois os indivíduos não poderão ajuizar ação individual posterior buscando a tutela destes interesses, ou, pelo menos, da parte deles relacionada a cada indivíduo, posto serem os indivíduos ilegítimos e serem os interesses indivisíveis, o que acarreta em uma impossibilidade lógica.[16]

            Portanto, a estes interesses, a norma jurídica traz uma diferenciação no que se refere aos efeitos da sentença, quando esta julgar a lide improcedente por insuficiência de provas, permitindo, assim, que, mediante apresentação de prova nova, a mesma demanda seja novamente ajuizada. [17]

            Ora, tal tratamento particular se faz necessário visto a extensão e importância dos interesses inerentes a estas lides, uma vez que os direitos difusos e coletivos possuem relevância para toda a humanidade.

            É possível afirmar que uma decisão infeliz, nesses casos, pode causar danos irreparáveis ou de reparação extremamente paulatina e dispendiosa que gerem efeitos, simultaneamente, a todos os habitantes do Planeta Terra, daí o imensurável risco de lidar com estes interesses e a justificativa de não se permitir a formação da coisa julgada quando insuficientes as provas, pois tal fato, invariavelmente, prejudica o juízo de certeza do magistrado.

            Por conseguinte, visto a importância dos interesses tutelados, não pode ser razoavelmente concebível que exista uma decisão judicial a respeito de lides referentes a interesses difusos e coletivos sem que haja o máximo possível de convencimento do julgador.

 

11.  BIBLIOGRAFIA

 

AGUIAR, Leandro Katscharowski. Tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos e sua execução. São Paulo: Dialética, 2002.

 

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, vol. I. São Paulo: Saraiva, 1965.

 

DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública.São Paulo: Saraiva, 2001.

 

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GRINOVER, Ada Pellegrini...[et al.]. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto /– 7.ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

 

LIBMAN, Enrico Túlio. Eficácia e Autoridade da Sentença, trad. bras., 2. ed.,1981.

 ----------------------------- Manuale di diritto processuale civile. Milano, 1973.

 

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública. 5 ed. São Paulo, Revista dos Tribunais.

 

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 10 ed. São Paulo, Saraiva : 1998, p. 125.

 

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil. – 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, v. 1.

 

SILVA, Ovídio A. Baptista da e GOMES, Flávio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

 

 

 

           

           

           

 

 



[1] Estudante do 4º período da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo.

[2] Silva, Ovídio A. Baptista da e Gomes, Flávio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997. p. 318.

[3] LIBMAN, Enrico Túlio. Eficácia e Autoridade da Sentença, trad. bras., 2. ed.,1981. p.54.

[4] O Ministério Público é um dos co-legitimados a propor a ação civil pública (art.5º da lei 7347/85) e responsável pelo ajuizamento da imensa maioria das ACPs.

[5] Vale ressaltar que o inciso III do parágrafo único do artigo 81, a que se refere o trecho transcrito, trata da definição dos interesses ou direitos individuais homogêneos, daí, a certeza que o dispositivo trata da coisa julgada a que nos propomos a falar.

 

[6] Os direitos individuais homogêneos são de fato direitos individuais, acrescidos, apenas, da característica de terem pontos comuns a demais direitos individuais.

[7] Trattato, p. 175. Citado por Liebman em Eficácia e Autoridade da Sentença. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense 1984. p. 92. “terceiros juridicamente indiferentes, estranhos à relação e sujeitos de relação compatível com a decisão; para estes logram aplicação combinada e atenuada ambos princípios, de tal modo que é a sentença juridicamente irrelevante para eles, mas vale como coisa julgada para outrem, e pode produzir mero prejuízo de fato;” Betti admite a possibilidade de existir prejuízo de fato pois, um terceiro poderá ser afetado indiretamente no mundo material por mudanças nele ocorridas em função de nova coisa julgada.

[8] Instituições de Direito Processual Civil, vol. I. São Paulo: Saraiva, 1965. (trad. port., p. 571).

[9] Posteriormente, maiores comentários serão tecidos sobre o tema quando analisado o § 2º do art. 103 do CDC.

[10] Liebman, Enrico Túlio. Eficácia e Autoridade da Sentença. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense 1984. p. 84.

[11] O mesmo não pode se afirmar da sua utilização no inciso III.

 

[12] Devido à coisa julgada secundum eventum litis.

[13] Digo substituídos pois acredito que, excepcionalmente, no caso dos interesses individuais homogêneos ocorre o fenômeno da substituição processual (legitimação extraordinária), pois na verdade são interesses individuais completamente determináveis que são tutelados. A única diferença dos demais casos de substituição é que, neste específico, a substituição é limitada quanto ao pedido, pois ao legitimado extraordinário nos casos do inc. III do art. 103 do CDC é permitida apenas a formulação de pedido de condenação genérica, não sendo possível que o representante promova a liquidação individual, apenas pela dificuldade prática de se liquidarem milhares de possíveis condenações individuais dentro de um mesmo processo. Não obstante, nos casos dos incs. I e II do art. 103 do CDC não se pode falar em substituição processual, pois os interesses tutelados não são individuais ou plurindividuais, mas sim transindividuais. Ou seja, nos casos de interesses transindividuais inexiste a presença de interesses de diferentes indivíduos somados, mas sim um único interesse que é plenamente indivisível e transcendental, paradoxalmente não pertencente a ninguém e a todos ao mesmo tempo, uma vez que sua tutela individual é impossível.

 

[14] Greco Filho, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro v.1. – São Paulo: Editora Saraiva, 1999. p. 91.

[15] DINAMARCO, Candido Rangel. Execução Civil. 8ª ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2002.

[16] Refiro-me a uma impossibilidade lógica, pois, uma vez serem indivisíveis os interesses coletivos e difusos não se pode conceber a divisão destes interesses a parte que, hipoteticamente, cada indivíduo viria a possuir, para que estes individualmente busquem a sua tutela individual.

[17] Conclui-se assim que, para as ações coletivas que tratam de interesses coletivos e difusos, a coisa julgada improcedente por insuficiência de prova não é pressuposto processual negativo de validade.