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A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS
NA PRÁTICA DA PROVA
Professor Ronald Amorim e Souza
Senhoras e senhores, que acudiram ao convite para participação
nesse Seminário, queremos agradecer inicialmente a distinção para aqui estar, o
que nos honra sobremodo. Externamos a satisfação no reencontro de numerosos
colegas, amigos, de quem por vezes temos notícias, mas não nos aproximávamos da
figura física. Digo-lhes que, diante das generosas palavras com que fui
saudado, não devem criar grande expectativa em derredor do que lhes possa
expor. Como disse, certa feita, o Ministro Mozart Russomano, “temo
que o que tenha a dizer não seja novo, ou o que por acaso diga de novo não seja
bom”.
Nós nos propomos a considerações de ordem prática sobre o ônus da
prova porque sentimos que é uma deficiência na nossa formação profissional.
Todos vivemos, evidentemente, da prova - advogados, juízes, procuradores,
delegados, toda a gente do Direito vive da
prova - e as faculdades sabem que precisamos enfrentar a prova no
Direito Penal, no Direito Civil, no Direito Comercial, no Direito do Trabalho,
no Direito Eleitoral, em qualquer Direito. Causa espécie é que não haja uma
cadeira, na faculdade, para nos treinar para isso. Uma cadeira que fosse: Prova
1, Prova 2, Prova 3, Prova 4, até que saíssemos
da Escola sabendo um pouco da prova.
Pela quantidade de alunos que hoje há em cada sala, nós não
estamos sabendo fazer nem sequer provas
de avaliação...
O que é provar? Existe um direito à prova? Há uma liberdade de
provar? Ora, quando pretendemos provar, qual é o nosso objetivo? Fazer com que
aquilo que afirmamos transpareça como sendo um fato que efetivamente ocorreu.
Se nos negam a oportunidade de fazer esta evidência, estão privando-nos,
cerceando o direito de provar. Entretanto, ainda que tenha esse direito, posso
abster-me de provar e, pelo abandono da lide, pelo abandono da responsabilidade
da prova, exerci a minha liberdade de provar ou de não provar. Quando isto
acontece, o que pode o juiz fazer? O
ônus pode ser objetivo ou subjetivo. O ônus objetivo é o que as partes têm que sentir e desenvolver
ou desencumbirem-se ou se
exonerarem no processo, na lide. O ônus
subjetivo é a avaliação que faz o Estado, através do juiz, se efetivamente a
parte que tinha aquele ônus desencumbiu-se
dele, deu conta da carga que
tinha e provou o que se propôs a provar.
Ultimamente, não sabemos se por culpa nossa - de nós que
lecionamos o Processo do Trabalho - ou
se pela competência dos professores de Processo Civil, o que mais percebemos é que há uma preocupação muito
maior do profissional de Direito com o Processo Civil que com o Processo do
Trabalho, quando ele milita na área trabalhista. E isto acaba alcançando também
a figura do juiz. Com isto está ocorrendo uma transmigração de regras
processuais civis que são algo como a transmigração da família real - não estão
chegando porque quisessem vir mas, porque há um desconhecimento da regra
trabalhista aplicável, há um melhor conhecimento da regra processual
civil. Estamos convivendo com conceitos
que não se mesclam como água e óleo. E o pior é que para demonstrar que essa
invasão, esta transmigração não está sendo bem acolhida, as regras do Direito
do Trabalho, do Processo do Trabalho, que mais se mostram eficazes estão
regressando, estão retornando e chegam ao Processo Civil com a experiência
demonstrada na vivência trabalhista e
hoje as pessoas descobrem que tais regras existem e que podem fazer bem.
Temos três preocupações a respeito da prova que são basilares: a
primeira delas advém do artigo 816, da CLT, que diz que a prova das alegações
incumbe a quem as fizer. No Código de Processo Civil, artigo 333, está dito que o ônus da prova cabe ao autor
quanto ao fato constitutivo de seu direito; ao réu, a existência do fato
impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Se tirarmos esse preceito do Código de Processo
Civil e nos firmarmos na regra da Consolidação - que diz que o ônus da prova incumbe a quem alegar - vamos ter o
mesmo preceito que está dito no Código de Processo Civil, sem que tenhamos
qualquer tipo de preocupação de distribuir esse ônus, seja para o autor, seja
ele para o réu, em função da natureza das alegações.
Se o fato que invoco inibe
o autor de ter o direito que pleiteia, essa inibição obviamente toca a mim
provar. É isto que está na regra do
artigo 816, da CLT. Mas há uma constante e inconseqüente invocação do artigo
333 do Código de Processo Civil sempre que se quer fazer análise da prova.
Num outro ponto, há um higiênico mandamento constitucional a
respeito de não se admitir no processo a prova obtida por meios ilícitos. E
alguém há de perguntar: “e será que existe prova obtida por meio
ilícito?”.
Ao tempo em que fomos juiz substituto, tivemos a oportunidade de
julgar um inquérito para apuração de falta grave, em que o empregador tinha
violado a pasta do empregado, para dela retirar os documentos, porque pretendia
instruir a falta grave para justificar o rompimento do contrato de trabalho.
Entendi, naquela época - e assim vão alguns janeiros - que não era lícito à
parte valer-se da prova, porque inidoneamente obtida. Para minha surpresa e
tristeza, vi a decisão reformada na 2ª
instância, porque a interpretação que
estava dando não teria nenhum suporte no ordenamento jurídico.
É bem verdade que moral e direito não são círculos concêntricos,
mas é inegável que se tangenciam e onde se tangenciam há lugar para a justiça.
E o melhor ideal de justiça é de distribuí-la porque, ao longo de alguns anos
de exercício da judicatura, sempre nos preocupamos com ela, sempre ficamos
felizes quando era possível aplicar o direito à justiça, aplicar o direito
fazendo justiça.
A lei é uma fotografia que
retrata a vontade da sociedade num dado momento - mas essa fotografia pode
ficar para nós como aquela fotografia antiga, que serve para mostrar como nós
éramos num dado tempo. Assim faz com a lei. O que temos a buscar é o retrato
atualizado, o retrato mais recente da lei. E nós somos o fotógrafo dessa
realidade.
O ônus de provar não está distribuído com regras rígidas apenas
pelo fato de ser extintivo, modificativo, impeditivo ou constitutivo. É pela
natureza do fato que se invoca que assumimos a obrigação de provar o fato.
Aprendemos que o ônus da prova das horas extraordinárias é do empregado. Por quê? Porque a depender da alegação que
se faça em derredor da invocação dessas horas extraordinárias, o empregado pode
não precisar fazer a prova delas. Imaginemos que o empregador negue o trabalho
extraordinário do empregado, é obvio que esse empregado terá que provar, porque
terá que demonstrar o fato que constitui o embasamento de sua pretensão. Pode,
entretanto, o empregador dizer: “A prefeitura não deixa a loja ficar
aberta além das 18:00 horas. Ele não poderia trabalhar horas extraordinárias
por essa circunstância”. Então, não está negando que houvesse
trabalho extraordinário - está negando que o fato da hora extra nem era
imaginável. Se o empregado consegue dizer que ele arrumava as prateleiras da
loja depois do horário previsto pela prefeitura para o comércio fechar, ele já
está derrubando a alegação da empresa, isto se a empresa tiver trazido para os
autos a postura municipal que impede o funcionamento após às 18:00 horas.
Existe fato impeditivo, que é ônus do empregador provar, e que o empregado fica
desobrigado de fazê-lo se a prefeitura não tem a postura ou se o empresário ou
o empregador não trouxer a prova da
existência daquele Direito Municipal, daquela postura. Não houve, em verdade,
nenhum motivo para se negar ao empregado o trabalho extraordinário que alegou
fazer.
Também pode o demandado alegar que há fato modificativo - que o
excesso de jornada seria para compensar a supressão ou a redução do trabalho em
um ou outros dias da semana. Neste caso, também aí o empregado não precisa
fazer qualquer prova. Por quê? Porque o fato do trabalho em excesso de duração
da jornada já foi em si admitido, mas o que se está dizendo é que esse trabalho
extraordinário não gera o direito à percepção do adicional respectivo, em
virtude de ser fruto de um ajuste feito com o sindicato para compensar a
redução ou a supressão do trabalho. Neste caso, quem alegou este fato é que vai
ter que fazer a prova de que há o instrumento e que o instrumento condiz com os
fatos narrados na defesa e em obstáculo à pretensão do autor.
Também existe a alegação do fato extintivo - quando o empregador
diz que pagou todas as horas extraordinárias trabalhadas. Se ele assim afirma,
aquelas horas alegadas pelo autor têm que constar dos recibos de salários nas
folhas de pagamento. Então, o que temos aí? Apesar de estarmos enquadrando em
fato constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, estamos sempre
ressaltando que quem alegou é que tem a obrigação de provar.
Isto de estar provando, entretanto, traz alguns tipos de meditação
em derredor. Consideremos que há prova nos autos mas ela nos deixa com uma
razoável dúvida. Aquele ônus subjetivo, onde vamos examinar, como Órgão do
Estado, se efetivamente foi feito aquilo que a parte alegou como defesa,
se foi feita a prova correspondente. Sempre há uma armadilha, principalmente
na interpretação segundo aquela regra que diz in dubio pro operario. Nesse
momento, há uma vontade enorme de decidir em favor do empregado, imaginando
que, se a prova não foi suficiente ou se me deixou alguma dúvida, em alguma
coisa, a regra deveria ser dessa natureza. Já que me pus em dúvida, já que o processo me causou a dúvida, que decida em favor do empregado.
Ora, se nós consideramos o Direito do Trabalho como um direito
privado - e efetivamente o é - nós teríamos que ver que um princípio das
obrigações no direito privado é beneficiar o devedor, isto porque consideramos
que o devedor é a parte mais débil, mais fraca, na relação jurídica.
Quando nós nos pomos diante de uma relação trabalhista, o credor é
o empregado, o devedor seria o empregador. Então, aquela máxima, aquela
regra in dubio pro misero, que poderia
nos auxiliar em alguma coisa, pode aumentar a perplexidade. Por que aumenta a
perplexidade? Porque, efetivamente, este regramento - esta forma de interpretar
- não foi feito para que se desse aplicação em decisão judicial. O princípio in
dubio pro misero ou in dubio pro operario é regra de interpretação nas relações
que se estabeleçam entre empregados e empregadores, seja na dúvida quanto à
aplicação de uma dada regra, seja na dúvida sobre a escolha de qual das regras
aplicar, seja na hipótese de propiciar a condição mais favorável para o
trabalhador. E quem assim expõe não somos nós - escudamo-nos num autor
de nomeada e bastante conhecido
de todos, que é o professor e jurista Américo Plá Rodrigues. Diz ele, citando
Benito Peres, que a regra se aplica
para interpretar a norma jurídica mas não se justifica sua aplicação na
apreciação da prova porque os fatos devem chegar ao juiz tal como ocorreram.
Uma coisa é a interpretação da norma para avaliar seu alcance e
outra, muito distinta da apreciação de uma medida de prova, é decidir a lide. É que este princípio não
permite suprir deficiências probatórias no processo, nem autoriza a sentenciar
ultra petita, já que as regras formais do processo continuam vigentes,
continuam válidas. E mostra o argumento contrário, a contrapartida desse
entendimento - cita Santiago Rubistein
- para quem a dúvida do julgador pode resultar da interpretação de um texto
legal ou da aplicação de uma norma a um caso concreto e também da valoração das
provas apresentadas pelas partes no processo, sendo aplicável, em todas essas
hipóteses e em especial, quando se pretende determinar se há um fato concreto,
corresponde tal ou qual norma. Ou seja, a subsunção do fato na norma ou sob a
norma. E qual é o ponto de vista dele, Américo Plá Rodrigues? Diz ele: “A
meu juízo cabe aplicar a regra dentro deste âmbito em casos de autêntica
dúvida, para valorar o alcance ou o significado da prova; não para suprir
omissões mas, sim, para apreciar adequadamente o conjunto dos elementos
probatórios, tendo em conta as diversas circunstâncias do caso. Entendemos que
as mesmas razões de desigualdade compensátoria que deram origem à aplicação
desse princípio justificam que se
estenda a análise dos fatos, já que, pelo geral, o trabalhador tem muito maior
dificuldade que o empregador para provar certos fatos ou abordar certos dados
ou obter certos informes ou documentos”.
(Princípios de Derecho del Trabajo, Montevidéo, 1975, p. 52/53).
Então, nós vemos aí que não
há como nos valermos de um princípio que é tipicamente de direito material, de
direito substantivo, para superar a deficiência de raciocinar melhor no exame
da prova recolhida no processo ou de fazer o processo retornar à instância
probatória, para melhor recolher elementos de prova que nos subsidiem uma
convicção e formem uma decisão.
Do mesmo modo é fácil para nós, quando não estamos na função
judicante, proceder à crítica do julgamento, à crítica da sentença. Por quê?
Porque nós já encontramos expostos os argumentos que subsidiaram ou
fundamentaram a decisão do juiz. E a postura crítica é muito fácil se nós nos
armamos de instrumento bastante para destruir a construção, a edificação, que
foi a sentença. Algumas palavras, alguns adjetivos que levantam dúvidas sobre a
certeza do raciocínio. Há
advogados que dizem ter as
sentenças uma classificação dúplice:
elas são brilhantes ou data venia.
Quando as sentenças são brilhantes, os adjetivos são todos para elogios; quando
elas são data venia, eles são todos de dinamite, todos para destruir aquilo que
o juiz preparou. Falta-nos aquela preocupação de, como advogados, também
contribuirmos para o processo de elaboração da sentença. Porque o advogado não
está no processo esgrimindo argúcia, ele não está lá para testar sua capacidade
de raciocinar rápido, sua inteligência ou seu preparo. Ele está lá para trazer
a juízo os dados que sejam importantes, para que a justiça possa erigir a
sentença. E os advogados são, obviamente, instrumentos de justiça tanto quanto
o juiz. Para isso, nós precisamos de quê? Que os advogados se sintam também
culpados, no momento em que a sentença não lhes foi em todo favorável e eles
possam dizer: “Deixei de trazer esse elemento de prova.
Passou-me argüir tal assunto. Deveria
ter insistido em tal aspecto”. Exatamente para chamar ou para
conseguir a atenção do juiz para os dados que eram importantes e que ele,
apressadamente, deixou passar, na expectativa de que o juiz sanasse a sua
omissão - e esse não é o trabalho do juiz. Não é que ele não queira fazer, é
que não deve fazer, é que não pode fazer.
Talvez estejamos sentindo,
aqui, um pouco a falta de importação de alguns preceitos. Fomos longe aqui,
fomos à transmigração da família real. Naquela época, da transmigração da
família real, houve um episódio que todos conhecem como a abertura dos portos
do Brasil às nações amigas - fato que está sendo recentemente praticado outra
vez - estamos abrindo os nossos portos às nações amigas. Então, as
coisas que chegam, no porão dos aviões ou dos navios, chegam rapidamente - os
automóveis, os comestíveis, aquelas
coisas de eletrônica - tudo está chegando. Mas o saber está vindo de caravelas
a enfrentar calmarias. Estamos com injustificável atraso em aceitar ajuda nesse
mecanismo de apuração da verdade na prova processual. Não nos reportamos a
equipamentos de eletrônica, a gravadores, a câmeras de filmagem. Não.
Reportamo-nos à formação das pessoas, à dignidade humana. Dignidade humana que
faz com que nós nos valorizemos profissionalmente e saibamos a quanto podemos
alcançar no exercício da nossa profissão. Em qualquer comunidade, há os
advogados que recebem as reverências de todos os colegas, de todos os juízes,
por ser um paradigma profissional. Do mesmo modo há os juízes que, pela qualidade
do trabalho, pela rapidez da prestação jurisdicional, seja pela compostura que
tem na sociedade, todos lhe devem reverência porque sabem que se trata de uma
pessoa digna. Em nome dessa dignidade, nós estamos deixando de dar aplicação,
no Brasil, a um princípio que é utilizado nos países em que não há o direito
basicamente escrito como o nosso - o direito positivo - mas onde predomina o
direito consuetudinário.
É comum que aconteça, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos,
como na Austrália, como na Nova Zelândia que são países que têm direito escrito
mas que ainda trazem muito do consuetudinário de seus colonizadores, onde dois
institutos ajudam sobremaneira a justiça. Ao usar a expressão inglesa para lhes
transmitir o que é, vamos desdobrar o
pensamento; um é o pre-trial conference e o outro é o pre-trial hearing. No
primeiro caso, é uma conferência ou uma reunião que os advogados celebram entre
si, quando têm que iniciar uma lide, uma demanda. Antes de chegar à Justiça, o
advogado de quem vai propor a demanda dirige-se ao demandado, procurando saber
quem seja seu advogado, dizendo-lhe que tem uma demanda a propor. Estes se
reúnem e vão discutir o caso entre eles. O advogado do demandado pode
esclarecer que isto nós admitimos, mas
não o fazemos com aquilo por já ter
pago uma parte, de maneira que só levam para juízo, só levam para o processo,
aquilo que foi absolutamente impossível de comporem antes do litígio.
Dá-se a pre-trial hearing quando
conseguem que haja um outro momento para tentar não chegar à instrução da lide:
é pedir uma audiência ao juiz. Então, naqueles pontos em que eles se mantêm
irredutíveis, vão ponderar diante do
juiz cada qual sua posição e este lhes
pode dizer, com base no precedente, nos casos que decidiu anteriormente, em
dadas hipóteses, o entendimento da Corte. E aí, cada um ponderará se vale ou não a pena levar a lide
adiante. Mas, se nós fizermos isto no Brasil, no mínimo o juiz será acoimado de
suspeita porque está pré-julgando a matéria quando, apenas, cuidou de fazer o apelo ao bom senso.
Outra coisa que poderia nos ajudar em termos de distribuição da
carga da prova estaria exatamente em não vindicar aquilo que nós sabemos que
não há a mínima possibilidade de ser acolhido mas, apenas e tão somente, para
arriscar a hipótese de uma revelia.
Então, o que encontramos, de vez
em quando, é a hipótese de ter alguém propondo uma lide temerária, na
expectativa de que possa efetivamente tirar proveito disso porque joga com a hipótese de uma revelia.
Ora, a Justiça, por si mesma, é um fardo que se carrega por
vocação. Ninguém vai para a Justiça e nela permanece como juiz se não tiver a
vocação. Efetivamente nenhum juiz fica tranqüilo sabendo que há muitos processos
para decidir, nenhum juiz fica tranqüilo sabendo que alguém foi ilaqueado na
sua boa-fé, foi enganado. Só em revelar algumas fraquezas profissionais cremos
estar contribuindo para que outros não fraquejem onde fraquejamos. Podemos lhes contar
fatos que nos ocorreram na mesa de audiência, a passarela mais rica por
onde vimos desfilar tudo o que de interessante aconteceu na vida.
Na primeira semana em que estávamos presidindo uma Junta - éramos juiz substituto - apareceu um
reclamante a pedir três dias de aviso prévio - como tinha acabado de ser
concursado, relativamente bem
classificado, empossado, presidindo a 1ª Junta
de Conciliação e Julgamento de Salvador, disse-lhe: “Não, aviso prévio de três dias, o senhor aí está
passando por cima do razoável”. Tomamos de uma Consolidação que havia
em cima da mesa e dissemos para o
reclamante: “Se o senhor mostrar aviso prévio de três dias na Consolidação, eu próprio
pagarei”. E o Reclamante, seguro, disse: “É
o artigo 487 da CLT”.
“Pois não, senhor, sirva-se, leia”. Ele
abriu, leu e havia. Era a 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de
Salvador e a Consolidação que lá estava, nos idos de janeiro de 1966,
continha o texto original. Já havia
sido revogada antes que fôssemos
estudar na faculdade e nunca
soubéramos do aviso prévio de três dias. Daí em diante, nunca mais duvidamos de
ninguém, reclamante nem reclamado, e se pudéssemos fazer, um dia, um monumento
à justiça, seria a este reclamante que nos ensinou a primeira regra da
magistratura: a humildade.
Numa outra vez, num outro momento, enfrentando também mesa de
audiência, tivemos oportunidade de
sentir na pele o que é a humilhação que o trabalhador sofre. E o homem lutava
apenas para ter a sua Carteira de Trabalho anotada. Ele só queria a Carteira de
Trabalho anotada porque já tinha conseguido novo emprego, mas o empregador
antigo estava se valendo da justiça para aguardar que chegasse o instante da
audiência, para ver se havia conciliação ou para levar o processo até a
sentença. O homem veio nos procurar e
pediu que déssemos baixa na sua Carteira de Trabalho. Ficamos em dúvida sobre o que fazer. Ele se
aproximou, abriu um embrulho que tinha nas mãos - era uma faca, dessas facas
que nós chamamos de peixeira, uma faca grande, já enferrujada, embrulhada num
papel. E ele disse que tinha saído de casa quando a mulher estava dividindo o
último ovo que eles tinham. Foi em busca do patrão porque, se o filho dele
morresse de fome, o do patrão também morreria. Esse paroxismo de violência nos
fez imaginar que a justiça não acompanha a angústia das pessoas, com a
ansiedade, com a carência necessária para atender a isso sem gerar maiores
conflitos, sem ocasionar desdobramentos. Mandamos procurar o advogado da
empresa em todo o prédio das Juntas e ele não foi encontrado. Chamamos pelo
Diretor de Secretaria e lhe dissemos: “Olha, a
ordem que estou lhe dando não tem
nenhuma base legal, mas se não der a baixa da carteira dele, eu darei”.
Tiramos quinhentos cruzeiros - que era pouco dinheiro na época, mas daria para
comprar alguma coisa para aquele pobre homem botar em casa, dobramos bem
dobrado e quando ele se despediu,
cumprimentei-o, tentando passar o dinheiro para a sua mão. Ele recebeu o dinheiro, olhou-o e
me devolveu, dizendo: “Eu estou em busca da justiça, eu não
quero sua caridade”.
É preciso que a gente aprenda que a justiça não é apenas uma
sentença, não é apenas olhar friamente o que as partes trouxeram como meio de
prova para o processo. A justiça é, sobretudo, a consciência que nós temos de
que somos responsáveis por ela tanto quanto o juiz; que nós devemos trazer, com
toda sinceridade, com toda presteza, com toda dignidade, o instrumento de que
dispomos para que ela se faça melhor e mais rapidamente.
Como lhes disse de início,
não nos propusemos a lhes trazer nada de novo que fosse bom mas, pelo
menos lhes dissemos, de coração, o que era nosso propósito dizer.
Retirado de: http://www.amatra.com.br