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Clóvis Kemmerich
Procurador do INSS no RS, Mestrando em
Processo Civil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do
livro Lei dos planos de benefícios da previdência social anotada, pela
Saraiva.
Sumário: 1. Introdução.
2. A importância da História. 3. A abordagem funcionalista. 4. Normas
procedimentais e Direito Processual. 5. A tradição jurídica ocidental. 6. A
manifestação da função das normas procedimentais. 7. A proteção contra o
arbítrio. 8. Entre o procedimento e a justiça. 9. Conclusão. Referências
bibliográficas.
1. Introdução
As regras
procedimentais possuem funções que lhes são próprias e que se tornaram
manifestas nos primórdios da civilização ocidental. O poder soberano, ou do
Estado, também possui suas funções. As funções das regras procedimentais não
são idênticas às do poder soberano. Consistem, em vez disso, na limitação desse
poder. O presente estudo procura demonstrar essas afirmações, identificando, na
história do direito ocidental, as funções fundamentais das regras
procedimentais. No título, "função" está no singular por referir-se a
uma função principal, abrangente de outras a ela relacionadas.
2. A
importância da História
Dentre seus
inúmeros méritos, Mauro Cappelletti foi um notável comparatista e estudioso da
história do direito. Rodolfo Sacco refere-se a ele como sendo "seguramente
o jurista italiano mais admirado nas cortes mundiais" (SACCO, Introdução
ao direito comparado, p. 39). Traço inconfundível de sua obra é a vocação
para a identificação e solução de problemas concretos da administração da
justiça. Suas preocupações eram essencialmente práticas, razão pela qual não
deixava de mencionar detalhes que, se omitidos, tornariam quiçá ainda mais
sedutoras algumas das suas idéias. Assim foi que, ao dedicar um estudo ao
acesso à justiça, enfatizando a necessidade de técnicas que tornassem o
processo judicial mais simples, rápido e acessível, não hesitou em escrever:
“O maior perigo
que levamos em consideração ao longo dessa discussão é o risco de que
procedimentos modernos e eficientes abandonem as garantias fundamentais do
processo civil – essencialmente as de um julgador imparcial e do contraditório.
(...) Por mais importante que possa ser a inovação, não podemos esquecer o fato
de que, apesar de tudo, procedimentos altamente técnicos foram moldados através
de muitos séculos de esforços para prevenir arbitrariedades e injustiças. E,
embora o procedimento formal não seja, infelizmente, o mais adequado para
assegurar os "novos" direitos, especialmente (mas não apenas) ao
nível individual, ele atende a algumas importantes funções que não podem ser
ignoradas” (CAPPELLETTI/GARTH, Acesso à justiça, p. 163).
Para
Cappelletti, portanto, o procedimento possui funções que lhe são próprias,
destinadas a prevenir arbitrariedades, e que foram moldadas através de muitos
séculos. Mas como se pode chegar a essa conclusão sobre as funções do
procedimento? Estudo da história e comparação, diria outro italiano. Enrico
Allorio referia-se ao significado da história para o direito processual quando
escreveu:
“O interesse do
processualista (...) pela história se justifica sempre como interesse pelo
conhecimento da realidade espiritual, subjacente às normas do direito: daquela
realidade que, coincidindo com a função, ou causa, da norma jurídica, deve ser
considerada pelo jurisconsulto teórico (...)” (ALLORIO, Significato della storia ..., p. 115).
3. A abordagem
funcionalista
O emprego do
termo “função” em vez de “fim”, por Cappelletti e Allorio, foi muito feliz,
embora possa não ter sido consciente. Foi muito feliz porque o termo “fim”
evoca a concepção aristotélica de algo certo e invariável, que os gregos
denominavam telos (τέλος, "fim"). O
termo “função”, diversamente, remete a algo cultural e histórico, a destinação
à satisfação de uma necessidade ou vontade. Aquilo que possui uma função aqui
pode ter outra acolá, aquilo que hoje preenche uma função amanhã pode não ter
função alguma. Apesar disso, é mais comum os juristas falarem do
"fim" do direito, como na clássica obra de Jehring (Zweck im Recht),
ou dos "fins" do processo, tema enfrentado pelos mais influentes
processualistas da tradição do civil law, como Wach, Chiovenda,
Carnelutti e Calamandrei. Mas por que esses grandes juristas, tendo tratado dos
fins do processo, não examinaram as funções do procedimento?
4. Normas
procedimentais e Direito Processual
As normas de
procedimento, ou simplesmente o procedimento, no sentido de exigências
estabelecidas para que se obtenha um resultado, no caso do processo judicial,
para que se obtenha uma decisão judicial favorável, constituíam tema central de
uma fase anterior à dos processualistas citados, denominada, por Alcalá-Zamora
y Castillo, fase do procedimentalismo (ver Proceso, autocomposición y
autodefensa, p. 105). Ou seja, os juristas que tratam dos fins do processo
já são de uma fase posterior à do procedimentalismo, e na qual se buscou a sua
superação, denominada processualismo científico.
Na fase do
processualismo científico, as grandes discussões e teorias tiveram como temas
centrais a autonomia da ação e a do direito processual. Isso não quer dizer que
na fase do processualismo científico não tenham sido desenvolvidas teorias
acerca de procedimento. Pelo contrário, nessa fase também o procedimento
recebeu um tratamento teórico, enquanto na fase anterior recebera apenas
tratamento prático. É o que ensina Alcalá-Zamora y Castillo: "os
processualistas fazem Teoria do direito processual, inclusive acerca do
procedimento, e rompem suas amarras com a prática forense" (CASTILLO, Proceso,
autocomposición y autodefensa, p. 110). A fase do processualismo científico
chamou-se assim por nela haver sido revelada a autonomia do direito processual,
fato que o alçaria a objeto de uma ciência própria, a ciência do Direito
Processual. Nesse quadro, em que se fazia necessário lançar os fundamentos de
uma nova ciência, constitui fato compreensível que não se tenha tratado da
função do procedimento. Sobre a atitude dos processualistas da primeira metade
do século XX, ver DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, p. 152.
Aliás, uma das maiores preocupações nessa fase era a de partir para estudos
mais aprofundados do que aqueles centrados no procedimento. Giuseppe Chiovenda
expressa bem a preocupação do processualismo científico, em texto clássico
dessa fase.
“É verdade que
este estudo autônomo de um instituto jurídico, que se desenvolve em uma série
de atos exteriores, pode facilmente degenerar: e a decadência sobrevém quando o
estudo se conduz mais sobre o fenômeno exterior que seus nexos ocultos. Destes
se assenhora então o direito civil: e a doutrina do processo rigorosamente
entendido cai nas mãos dos práticos, e ‘prática’ são chamados os escritos a que
esses se dedicam” (CHIOVENDA, L'azione nel sistema dei diritti, p. 4).
Embora o estudo
do direito processual tenha partido em outra direção, o procedimento continua
existindo e, via de regra, as discussões dos processualistas mais ativos da
atualidade têm como objetivo o aprimoramento dos procedimentos existentes. A
oportunidade de uma reflexão sobre a função do procedimento aparece, assim, com
a urgência das coisas que já deveriam ter sido feitas.
5. A tradição
jurídica ocidental
Quando se
investiga o uso que é feito de alguma coisa, deve-se ter consciência de que as
diferenças culturais, além de outros fatores, interferem nesse uso. Max
Gluckman explica as diferenças no modo de pensar dos povos através da idéia de
herança cultural.
“Se a
mentalidade do africano difere da do europeu, se deve a ter sido criado em uma
sociedade diferente, na qual, desde seu nascimento, suas idéias e comportamento
se têm moldado de acordo com as de seus pais e compatriotas. Se herda uma
‘mente’, a herda em um sentido social, não físico” (GLUCKMAN, La lógica de
la ciencia ..., p. 115).
Em termos
bastante gerais, é possível trabalhar com a idéia de que a "mente"
herdada pelo Ocidente o identifica como "uma cultura, uma civilização
histórica particular" (BERMAN, La formación de la tradición ..., p.
11). O direito, como fenômeno cultural, ou sociocultural, também assume uma
forma própria nessa civilização e é nela que alcança seu maior desenvolvimento
teórico.
Ao falar-se das
origens do Ocidente, com todas as ressalvas que essa abordagem comporta, não
podem deixar de ser mencionadas as heranças da Grécia e Roma antigas, do
Cristianismo e da história da mescla desses três elementos, na Idade Média
européia. A influência grega foi notável para o pensamento político; a
influência romana, para o direito em geral; e a escola de Bolonha, na idade
média, para o estudo do processo judicial. Roma assimilou muito da cultura
grega e dos povos conquistados e o direito romano foi a matéria-prima da escola
de Bolonha, além de impregnar o direito e processo canônicos. Por tudo isso, pode-se
dizer que o direito romano foi o principal elemento da formação do civil law.
Contudo, o direito inglês também teve contato com o direito romano. Após o
período da conquista romana, do ano 43 ao 410 d.C., o direito canônico foi o
principal veículo de contato dos povos da Inglaterra com o direito romano. Mas
a influência do direito romano não foi tão direta na Inglaterra quanto no
continente. Merryman assinala bem essa diferença.
“Afirma-se que
o direito romano foi a maior contribuição de Roma à civilização ocidental, e os
modos de pensamento romanos foram filtrados certamente em todos os sistemas
legais ocidentais. Nesse sentido, todos os juristas ocidentais são juristas
romanos. Mas nas nações de civil law a influência do direito civil
romano é muito mais generalizada, direta e concreta que no mundo do common
law” (MERRYMAN, La tradición jurídica romano-canónica, p. 32).
O passado
jurídico comum da Europa é o antepassado próximo de todo o direito ocidental,
ambiente no qual é possível perceber uma função uniforme das normas
procedimentais, embora os procedimentos estabelecidos em cada ordenamento sejam
bastante diferentes entre si.
6. A
manifestação da função das normas procedimentais
Segundo
Chiovenda, Bolonha teria sido a Roma do direito processual, pois nessa cidade
floresceram os estudos do Digesto, a partir do século XII, e desde então o
pensamento sobre o processo obteve um avanço jamais alcançado anteriormente. Um
dos principais legados dos juristas seculares e canonistas, desse período, foi
uma doutrina do procedimento justo como limite para o poder absoluto do
soberano.
Até então, e
desde a queda do Império Romano, as disputas eram simplesmente resolvidas pela
força ou submetidas a alguma forma de assembléia popular. Manlio Bellomo
escreve que, nesse período, ...
“Qualquer um
que, em sua vida diária, pensasse que seus interesses haviam sido prejudicados
ou antevisse que um ato ruinoso estava para lhe causar dano tinha apenas duas
maneiras de defender-se ou vencer a causa: a força dos braços ou a força de uma
justiça eqüitativa, fundada no coração humano e animada pela fé em Cristo”
(BELLOMO, The common legal past of Europe, p. 50).
Nessa época, a
Inglaterra ainda não havia adotado o julgamento pelo júri, sendo comuns, a todo
o Ocidente, os costumes dos povos bárbaros, ou seja, as provas baseadas em
crenças na intervenção de alguma divindade ou, simplesmente, na fatalidade do
destino. Conforme Thayer, "as antigas formas de julgamento (omitindo
documentos) eram principalmente estas: (1) Por testemunhas; (2) O juramento da
parte, com ou sem compurgadores; (3) A ordália; (4) Duelo" (THAYER, The
older modes of trial, p. 47).
Os
compurgadores eram pessoas, em número variável, que juravam juntamente com um
dos litigantes, como meio de prova nas disputas judiciais. As ordálias, ou
ordálios, ou juízos de Deus, consistiam em testes judiciais, na crença de que a
divindade interferiria nos acontecimentos revelando quem tinha razão. O judicium
ferri candentis serve para ilustrar o tipo de prática utilizada nesse
período. Nessa ordália, o interessado deveria pegar ...
“com as mãos um
ferro incandescente. (...) A mão do quidam é em seguida (...) enfaixada e
selada com chancela oficial. Examinam-na ao cabo de três dias para ler ali o
veredicto de Deus, que se exprime concedendo ou não ao membro mártir um começo
de cura (...)” (ASSIER-ANDRIEU, O direito nas sociedades humanas, p.
168).
Quando a prova
era feita através de duelos, estes eram travados entre os litigantes ou pessoas
que lutassem por eles (campeões) ou, ainda, entre um destes e alguma
testemunha. De modo geral, as testemunhas deveriam estar prontas para provar as
suas afirmações “por juramento e duelo” (ver THAYER, The older modes of
trial, p. 66). Na França o duelo judiciário foi proibido por S. Luís, em
1258, mas subsistiu até o fim do século XIV (ver GIORDANI, História do mundo
..., p. 282). Na Inglaterra, somente em junho de 1819 essa modalidade
judicial foi abolida oficialmente (ver THAYER, The older modes of trial,
p. 70).
Fosse qual
fosse a modalidade adotada, a justiça era um assunto comunitário ou mesmo
privado. O que significa dizer que o príncipe, ou soberano, não estava no
centro dos julgamentos. Mas o fato de o príncipe não tomar para si o papel de
juiz (exceto ocasionalmente) não significava uma divisão do poder, nem sequer
uma limitação deste. Não se tratava de algo como o que conhecemos por rule
of law. Simplesmente o príncipe ainda não havia percebido totalmente que o
direito poderia ser usado como um eficaz instrumento do poder. Não havia uma
base teórica suficiente para isso.
Uma mudança
nesse quadro começou a ganhar forma com a "descoberta" do Digesto de
Justiniano, em Bolonha, por volta do ano 1100, após séculos de esquecimento. O
direito de uma civilização morta demonstrou não ser uma idéia morta, e o
continente europeu experimentou a força que essa idéia poderia ter. Enquanto o
direito romano ressurgia, o direito canônico se renovava, gerando as grandes
compilações que iriam formar o Corpus Iuris Canonici. Direito romano e
direito canônico eram dois corpos jurídicos que vinham gradualmente ganhando o status
de direito comum a toda a cristandade. O arcabouço teórico gerado pelas
influências recíprocas desses dois conjuntos jurídicos foi percebido pelo
soberano como uma bênção para o fortalecimento dos seus poderes frente aos
senhores feudais. Conforme destaca Wieacker, a idéia de lei que vinha com o
direito romano era a de ...
“comando do
poder – impunha a sua pretensão absoluta de vigência em relação a todos os
membros da comunidade submetida, tornando assim pela primeira vez possíveis
formas alargadas de domínio” (WIEACKER, História do direito privado moderno,
p. 16).
Obviamente as
afirmações anteriores são uma generalização e deixam sem menção detalhes e
exceções que um estudo mais aprofundado comportaria. Basta mencionar, por
exemplo, que na Alemanha a assimilação dos novos estudos do direito romano
ocorreu bem mais tarde que na maior parte da Europa. Com essa ressalva, pode-se
dizer que a tradição imperialista do direito romano, aliada a uma fundamentação
deísta da soberania, trazida pelos canonistas, era a arma que o soberano estava
esperando para suplantar, a um só tempo, os poderes territoriais, as instâncias
judiciais populares e corporativas e a diversidade de fontes do direito.
Um dos poderes
almejados pelo príncipe era definir as disputas entre os seus súditos ou entre
estes e a própria coroa. Kantorowicz dá uma boa noção do caráter dessa
aspiração e de como as idéias dos canonistas eram utilizadas para
concretizá-la.
“Iustitia
enim perpetua est et immortalis, diz a Bíblia em Sabedoria (1, 15) e com
base na força desse versículo, Baldus, utilizando definições aristotélicas,
glorificava a Justiça como um habitus qui non moritur. O rei individual
pode morrer; mas o Rei que representa a Justiça soberana e era representado
pelos juízes supremos, não estava morto; continuava sua jurisdição
incessantemente mediante a atuação de seus oficiais, (...)” (KANTOROWICZ, Os
dois corpos do rei, p. 252).
Dois textos do
Digesto eram citados com freqüência para fundamentar as prerrogativas
jurisdicionais do soberano: Dig. 1.1.7, onde Papiniano declara que o direito
pretoriano (direito romano sobre o processo), é parte do ius civile;
e Dig. 1.2.1.6, onde Pompônio fala em três leis: (a) a lei das XII tábuas, da
qual teria nascido, (b) o ius civile e (c) as ações da lei, que se
teriam originado das duas anteriores (Ver PENNINGTON, The prince and the law,
p. 147). Essas passagens eram citadas como prova de que as normas
procedimentais (o direito pretoriano e as ações da lei) eram parte do direito
positivo (ius civile) e que, portanto, faziam parte do arsenal de
poderes do príncipe.
Os juristas
inicialmente aceitaram o direito do príncipe de subverter o procedimento
judicial: se a autoridade do príncipe era suficiente para criar e modificar o ius
civile, logicamente poderia alterar ou excluir as ações que protegiam os
direitos. Em suma, consideravam as actiones uma parte do ius civile,
e este uma emanação do poder do príncipe, o qual resultava da vontade de Deus.
Mas se
poderosos governos centrais começaram a surgir no final do século XI, uma
autoridade maior ainda era reivindicada pelo papa. Gregório VII revolucionou o
direito do Ocidente ao proclamar "a supremacia legal do papa sobre todos
os cristãos e a supremacia jurídica do clero, comandado pelo papa, sobre todas
as autoridades seculares" (BERMAN, La formación de la tradición ...,
p. 104).
Nessa disputa
entre o "rei-sacerdote" e o "sacerdote-rei", ao indivíduo
acusado de um crime ou demandado por algum bem restava pouco mais do que
confiar no bom julgamento da autoridade encarregada do seu caso: a autoridade
secular já podia tudo, inclusive subverter o procedimento, e a autoridade eclesiástica
dizia poder mais ainda.
Huizinga
escreve que "de vez em quando o magistrado empreendia campanhas regulares
de severa justiça, ora contra os salteadores, ora contra as bruxarias e a
sodomia" (HUIZINGA, O declínio da idade média, p. 283). Mas quanto
maior era a assunção de poderes pelas autoridades, seculares ou eclesiásticas,
maior se tornava a preocupação dos juristas, ao menos de alguns deles, em
fundamentar o direito individual a um procedimento justo. A introdução da
tortura e a determinação com que a Igreja e o príncipe buscavam erradicar o
crime provocaram a reação doutrinária em defesa dos direitos dos acusados e dos
litigantes em geral.
Da
fundamentação jurídica do absolutismo (plenitudo potestatis) decorria
logicamente a arbitrariedade. O soberano poderia valer-se do direito e do
processo. E de fato o fazia. O rei John Lackland (ou João sem Terra), por
exemplo, tanto abusou da sua posição que levou os nobres da Inglaterra a
obrigá-lo a assinar a Magna Carta (1215) , um compromisso de que respeitaria o
direito e o due process of law. Mas antes desse compromisso na
Inglaterra, originalmente limitado aos nobres, os juristas do continente já
possuíam uma idéia clara e desenvolvida do direito a um procedimento justo.
Muitas vezes,
para escapar de um julgamento arbitrário, os litigantes tinham de procurar
alguma autoridade que, por amizade ou compaixão, lhes obtivesse uma carta do
papa garantindo um julgamento conforme o ordo iudiciarius (processo
romano-canônico). No início do século XIII, os juristas começaram a descrever o
ordo iudiciarius, o que os levou a refletir sobre as normas que
regulavam o papel do príncipe como juiz. O ordo iudiciarius era um
procedimento (regramento do processo) mais racional que a maioria dos costumes
da época. A doutrina que colocava o ordo como um procedimento de
cumprimento indispensável para a imposição de uma decisão judicial contra o
indivíduo, antecipou no continente europeu a doutrina do due process of law,
do direito inglês, que hoje constitui um princípio adotado em todo o mundo
ocidental.
De fato, a
preocupação dos juristas, na metade do século XIII, era com a fundamentação
desse direito, uma vez que eles mesmos haviam elaborado doutrinas que
justificavam o poder absoluto. O recurso ao direito romano era inútil quando se
pretendia limitar o poder das autoridades, seculares e religiosas, que se
diziam representantes de Deus na terra. Além disso, no direito romano, o ordo
era considerado uma extensão indispensável da autoridade pública, ou seja, o
processo judicial estava centrado na autoridade e não no jurisdicionado.
Lembrou-se,
então, de buscar na Bíblia a obrigatoriedade de que o ordo fosse
respeitado. Os expoentes dessa doutrina foram Paucapalea, o qual argumentava
que até mesmo Deus citou Adão antes de expulsá-lo do paraíso; Duranti, que
concluiu que nem mesmo a um excomungado ou ao próprio demônio deveria ser
negado o direito a ter seu caso ouvido em juízo, e Monachus, que cunhou o
conhecido princípio “inocente até que se prove culpado”, para citar apenas três
dos juristas mencionados por Pennington (ver The prince and the law, p.
142, 162-163). Difundido o esforço doutrinário, desses e de outros juristas, na
segunda metade do século XIII já se havia reconsiderado a idéia de que as
regras de procedimento eram parte do direito positivo (ius civile).
A preocupação
desses juristas não era meramente com a observância de quaisquer normas
procedimentais, mas principalmente com as funções para as quais os
procedimentos eram estabelecidos. Um procedimento deveria servir como garantia
das partes, e não para incremento do poder das autoridades. Monachus, por
exemplo, criticou o decreto Rem non novam, do papa Bonifácio VIII, que
estabelecia que "a citação pelo papa seria válida quer o acusado soubesse
dela ou não" (PENNINGTON, The prince and the law, p. 161).
7. A proteção
contra o arbítrio
Os juristas
medievais conseguiram encontrar a fundamentação mais convincente, em sua época,
para os direitos do indivíduo frente à autoridade. Mas o que isso representa
para o direito processual atual? Por acaso os fundamentos empregados na idade
média, baseados quase que inteiramente em crenças religiosas, possuem força
justificadora nos dias de hoje?
As doutrinas
medievais captaram claramente uma necessidade a ser atendida e viram no emprego
de um procedimento judicial mais racional (o ordo iudiciarius) o meio de
atendê-la. A proteção contra o arbítrio era necessária e o procedimento do ordo
preenchia essa função de um modo satisfatório para a época. Desde então, a
necessidade de proteção contra o arbítrio continuou sendo percebida e o
aprimoramento do procedimento judicial não deixou de ser o melhor meio de
suprir essa necessidade. A contribuição dessas doutrinas não está, portanto, na
fundamentação de direitos procedimentais inalienáveis, mas na revelação da sua
função na proteção contra o arbítrio.
O conhecimento
da função de alguma coisa está ligado à necessidade ou vontade que ela atende.
Se a necessidade existe e nada ocupa a função de atendê-la, o resultado é uma
insatisfação, uma carência. Contudo, o mero conhecimento da função de uma
instituição jurídica é insuficiente para uma explicação tão completa quanto
possível do fenômeno examinado pois, como afirma Durkheim, "um costume ou
uma instituição social mudam de funções sem por isso mudarem de natureza"
(DURKHEIM, As regras do método sociológico, p. 106). Mas uma explicação
completa do que sejam normas procedimentais não é o objetivo deste estudo. Em
vez disso, o que se busca aqui é lembrar a necessidade de garantias contra o
arbítrio e que as normas procedimentais ainda são fundamentais para isso. Em
outras palavras, a investigação tem como objeto central a função que
atende a uma necessidade, e como objeto secundário o procedimento, como
titular constante (mas não exclusivo) dessa função.
O arbítrio, no
sentido de mal causado sem uma causa que o justifique, não é aceito nem
mesmo nas sociedades mais primitivas. O antropólogo Evans-Pritchard demonstra
que a crença na bruxaria, nas sociedades por ele observadas, não é oposta ao
mundo racional. Ao contrário, ela serve para complementar as explicações que
estão ao alcance dessas sociedades sendo, portanto, perfeitamente racional. O
que o ser humano não aceita é que o mal lhe seja imposto sem uma causa. Isso
explica por que as antigas formas de julgamento, ou melhor, de prova (ordálias,
duelo, juramento), eram consideradas racionais até uma certa fase do
desenvolvimento científico e passaram a ser vistas como arbitrárias com o
avanço da compreensão do mundo empírico.
8. Entre o
procedimento e a justiça
Mas a
necessidade de proteção contra o arbítrio é apenas uma das que ocorrem no meio
social. E pode-se afirmar, a priori, que não é a mais importante. Carnelutti
diz que o fim do processo é compor os litígios, ou seja, proporcionar paz, com
justiça. A justiça é uma necessidade que, muitas vezes (mas nem sempre),
rivaliza com a necessidade de garantias contra decisões arbitrárias.
Essa tensão,
conforme anota Carlos Alberto A. Oliveira, já havia sido percebida por Hegel:
“Desse aspecto
deu-se conta Hegel, ao enfrentar a aporia entre segurança e justiça, pois
vislumbra na dialética do processo íntima contradição pela qual este, que
começa por ser um meio, passa a se contrapor como algo exterior ao seu fim,
podendo até se transformar no seu contrário, tornando-se fim em si mesmo.
Prega, então, de forma radical, o rompimento com o direito formal por razões de
moralidade subjetiva ou quaisquer outras” (OLIVEIRA, Do formalismo no
processo civil, p. 183).
Galeno Lacerda
aponta o mesmo problema, em estudo cujo tema central é o fim do processo:
“Sem dúvida,
para isto contribuiu uma falsa noção do papel da forma no processo. Preocupado
com a salvaguarda do direito de defesa, elevado mais tarde pelos publicistas
anglo-americanos às alturas de preceito constitucional, com a fórmula ‘due
process of law’, MONTESQUIEU abre o livro 29 de seu Espírito das Leis com estas
palavras: ‘As formalidades da justiça são essenciais para a liberdade’.
"Mas elas, apressava-se a acrescentar, poderiam ser tantas que
contrariassem a finalidade das leis que as tivessem criado, e os processos não
teriam termo; a propriedade dos bens permaneceria duvidosa. Os cidadãos
perderiam a liberdade e a segurança; os acusadores não teriam meio de
convencer, nem os acusados de justificar-se’. O trágico é que a ressalva final
foi esquecida pela doutrina, por juízes e legisladores” (LACERDA, Processo e
cultura, p. 83).
O conflito
constatado por esses autores tem influenciado concretamente os diversos
ordenamentos jurídicos e doutrinas da atualidade, resultando ora em maiores
garantias para as partes, ora em mais poderes para o juiz. Apontada por
Dinamarco como "o pólo metodológico mais importante do sistema processual
na atualidade" (DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, p.
373), a corrente doutrinária do “acesso à justiça” inclina-se fortemente para
esta última solução. Ocorre nessa doutrina uma orientação teleológica que
abarca tudo o que diz respeito ao processo judicial: ação, jurisdição,
processo, e procedimento. Apesar de ressaltar a importância do procedimento,
subordina-o, bem como ao processo, aos fins da jurisdição e esta aos fins do
Estado (ver DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, p. 190, 387).
Tal orientação
teleológica talvez não seja causadora de problemas quando exercida em situações
ideais, em que o Estado é justo, o juiz é justo e o adversário é honesto. Mas
as normas procedimentais possuem uma função própria justamente porque na vida
real as coisas podem acontecer, e costumam acontecer, de maneira diferente do
ideal, e nessas situações a confiança que as partes depositam no juiz, ou no
príncipe, de nada lhes serve.
9. Conclusão
Montesquieu faz
a ressalva contra o excesso de formalidades. Cappelletti faz a ressalva contra
o abandono das formas necessárias. Não existe qualquer contradição lógica entre
os dois postulados: um fala de formalidades excessivas, outro fala das
necessárias. São campos distintos, portanto.
Mas o que é
excessivo e o que é necessário precisa ser definido e essa definição deve levar
em conta circunstâncias históricas, sociais, econômicas, psicológicas,
presentes na comunidade à qual esteja endereçada. Essa é a grande tarefa do
processualista de hoje, inabarcável por qualquer autor isolado.
No entanto,
considero que tal tarefa não poderia sequer ser pensada sem a compreensão de
que as normas procedimentais ainda possuem uma função, de que essa função já
lhes foi atribuída nos primórdios da civilização ocidental e de que ela não é a
mesma do poder soberano, sendo justamente o limite deste.
O presente
estudo enfrenta apenas algumas das questões mais óbvias desses tópicos e se
concentra na cultura ocidental, ainda que seu tema possa encontrar paralelos
muito próximos em qualquer comunidade do planeta. Espera-se que tal recorte do
objeto sirva de orientação em meio à vastidão do tema e à abundância do
material acumulado ao longo de séculos, possibilitando a obtenção de conclusões
menos genéricas e mais úteis.
Referências
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Retirado de: www.saraivajur.com.br