Luiz Claudio
Portinho Dias*
1. Introdução
Característica marcante do
mundo globalizado é o surgimento de organizações intergovernamentais, com
atribuições de todas as espécies no sentido de implementar o processo de
integração de mercados. Entre nós esta realidade não se altera, tendo sido
constituído, desde a celebração do Tratado de Assunção, em março de 1991, o
Mercado Comum do Sul (1).
A partir daí, desencadeou-se o
processo de negociações multilaterais a respeito dos mais variados temas de
interesse das partes integrantes. Para tanto, protocolos foram assinados,
disciplinando questões específicas e estabelecendo o que se pode chamar de
arcabouço normativo do Mercosul. São esses protocolos, regras abstratas de
integração, que pretendem regulamentar as futuras situações concretas de
interesse das comunidades envolvidas.
2.
Incorporação dos Atos Internacionais
Questão importante, e que já
tem apresentado alguns incidentes diplomáticos entre os Estados-membros, é a
que diz respeito à aplicação destas normas no território de cada nação
participante. Em outras palavras, a incorporação dessas normas ao ordenamento
jurídico doméstico de cada país.
E esses problemas decorrem,
principalmente, da confusão que se tem feito a respeito da natureza jurídica de
tais regramentos. Esquecem-se muitos que, até o presente momento, o Mercosul
não se constitui como um organismo supranacional; suas deliberações não gozam
de soberania e não têm, por isso, natureza de direito comunitário (2). Os
protocolos são típicas normas de direito internacional público, reclamando, por
isso, um processo de recepção no ordenamento jurídico interno de cada
Estado-membro (3).
Nesse horizonte, duas são as
correntes que procuram situar a matéria e que têm gerado, há séculos,
divergências intermináveis. A problemática dos tratados internacionais frente
ao direito positivo dos países que o firmaram é antiga e rendeu ponderados
argumentos de ambas os lados. De um lado, a teoria monista preconizada por
Kelsen, que sustenta produzir a ratificação dos tratados efeitos concomitantes
na esfera internacional e interna. De outro, a teoria dualista de Triepel, que
proclama a coexistência de duas ordens independentes, uma nacional e outra
internacional, que reclama um processo de recepção para ter trânsito e
aplicabilidade naquela.
No Brasil, desde o julgamento
do RE 71.154-PR, tem-se sustentado a prevalência da teoria dualista. Restou
consignado no voto condutor do relator, Ministro Oswaldo Trigueiro, que: "Lei
Uniforme sobre o Cheque, adotada pela Convenção de Genebra. Aprovada essa
Convenção pelo Congresso Nacional, e regularmente promulgada,
suas normas têm aplicação imediata, inclusive naquilo em que modificarem a
legislação interna..." (RTJ 58/70 - sem os grifos no original).
Posteriormente, no RE n. 80.004-SE (4), a questão foi novamente apreciada,
sedimentando-se a jurisprudência nesse sentido.
Nos judicial cases,
embora num contexto mundial superado pelo transcurso dos anos, o Supremo
Tribunal Federal firmou lições que até os dias atuais se mostram modernas sobre
a matéria. O Ministro Cunha Peixoto sustentou, com base em Amilcar de Castro, a
impossibilidade de se confundir o tratado com uma lei ordinária. Segundo ele, "tratado
não é lei; é ato internacional, que obriga o povo considerado em bloco; que
obriga o governo na ordem externa e não o povo na ordem interna. (...) O
tratado explana relações entre governantes (horizontais, sendo as pessoas
coordenadas), enquanto que a lei e o decreto explicam relações do governo com
seus súditos (verticais, entre subordinante e subordinados). Por conseguinte,
as regras de direito internacional privado contidas em tratado normativo, para
se converterem em direito nacional e serem, então, obedecidas pelo povo e pelos
tribunais, devem ser postas em vigor por uma ordem de execução" (5).
Embora o mundo tenha se
transformado, com a união das nações em blocos e mercados, poucos são os países
que se desvencilharam da teoria dualista, abrindo mão de sua soberania
legislativa (6). Dos quatro membros do Mercosul, até a presente data, nenhum
confere caráter self-executing aos protocolos e tratados (7).
No Brasil, a executoriedade das
normas do Mercosul é condicionada. Depende de um ato subjetivamente complexo,
resultante da conjugação de vontades do Parlamento e do Chefe do Poder
Executivo. Ao Presidente da República incumbe celebrar os atos internacionais
(art. 84, VIII, da CF/88), ao passo que o Congresso tem a competência exclusiva
para resolver, definitivamente, sobre os mesmos (art. 49, I, da CF/88) (8). A
integração no acervo normativo, contudo, prescinde ainda da promulgação, que é
o ato que confere publicidade à norma, mediante decreto do Poder Executivo (9).
3.
Hierarquia Normativa dos Atos Incorporados;
Superada esta análise do
procedimento de integração das normas do Mercosul ao sistema jurídico nacional,
impõe-se, agora, perquerir a respeito de sua hierarquia na pirâmide kelseniana.
Entre nós, este debate se
travou no Excelso Pretório, entre setembro/75 e junho/77, quando do julgamento
do RE n. 80.004-SE. Discutia-se, na ocasião, a validade do Decreto-lei n.
427/69 (10) diante da Convenção de Genebra - Lei Uniforme sobre Letras de
Câmbio e Notas Promissórias.
Na oportunidade, a maioria dos
membros do STF (11) concluiu pela paridade normativa entre atos internacionais
e leis internas brasileiras e, por consequência, concluiram que a regra
internacional é revogada pela lei nacional que lhe seja posterior (12). Essa
orientação vem sendo prestigiada na Suprema Corte até os dias atuais, tendo
sido adotada no despacho proferido na ADIn n. 1480-3-DF e também na Carta
Rogatória n. 8.279-4 da República da Argentina (13).
Como esclarece o Ministro Celso
Mello, "a eventual precedência dos atos internacionais sobre as normas
infraconstitucionais de direito interno somente ocorrerá - presente o contexto
de eventual situação de antinomia com o ordenamento doméstico -, não em virtude
de uma inexistente primazia hierárquica, mas, sempre, em face da aplicação do
critério cronológico (lex posterior derrogat priori) ou, quando cabível, do
critério da especialidade (RTJ 70/333 - RTJ 100/1030 0 RT 554/434)" (14).
É importante anotar, todavia,
alguns casos especiais. A legislação tributária, por exemplo, recebe tratamento
diverso, em virtude de previsão específica. Nesse âmbito, dispõe o art. 98 do
CTN que: "Os tratados e as convenções internacionais revogam ou
modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhe
sobrevenha". É flagrante a impropriedade terminológica na disposição
legal. Na verdade um tratado internacional não revoga nem modifica a legislação
interna, até mesmo porque se for denunciado a lei interna com ele incompatível
estará restabelecida. O que o CTN pretende dizer é que os tratados e convenções
internacionais prevalecem sobre a legislação interna, seja anterior ou
posterior a ela (15).
Por fim, cumpre fazer menção à
regra estabelecida no parágrafo 2º do art. 5º da Carta Constitucional de 1988,
que estabelece: "os direitos e garantias expressos nesta Constituição
não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte". Para nós, essa disposição confere status de mandamento
constitucional às normas internacionais que estabelecerem outros direitos
fundamentais que não aqueles previstos expressamente em nossa Lei Maior. Assim,
incorporados tais direitos fundamentais ao regramento doméstico brasileiro,
tornar-se-ão cláusulas pétreas insuprimíveis e irrevogáveis (art. 60, §4º, da
Carta da República de 1988).
4.
Conclusões
Ponderados os argumentos aqui
expendidos, podemos concluir que:
1. na atual conjuntura do
Mercosul, suas normas não possuem o atributo da auto-executoriedade, dependendo
de um processo de internalização nas legislações domésticas de cada
Estado-membro;
2. integradas ao
ordenamento jurídico nacional, as normas do Mercosul encontram-se em paridade normativa
com as leis ordinárias brasileiras, ressalvados os casos específicos da
legislação tributária e dos direitos fundamentais;
3. a tendência mundial,
espelhada na Comunidade Econômica Européia, é a superação das barreiras e o
abandono da absoluta soberania legislativa nacional, com surgimento do direito
comunitário, sustentado em normas self-executing pelos
Estados-componentes, dispensado, portanto, o processo integrador das normas
internacionais.
4. O Mercosul somente se
transformará no pretendido mercado comum depois de efetuadas as necessárias e
imprescindíveis reformas constitucionais e alterações estruturais nos quatro
países membros, o que possibilitará a a vigência de um direito comum entre as
partes.
NOTAS
5. O Mercosul é um
organismo internacional composto pelo Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai que
visa a integração destas nações com vistas à constituição de um mercado comum
que possibilite o livre fluxo de pessoas, bens, seviços e capitais. Todavia,
até o presente momento pode-se afirmar que não passa de uma união aduaneira
precária, pois o que temos é apenas a liberação ou a redução da tarifação
alfandegária (impostos de exportação e importação) de algumas mercadorias
comercializadas entre os países componentes.
6. As normas de direito
comunitário são aqueles produzidas por órgãos supranacionais, nos quais os
agentes tem representação distinta de seus Estados de origem, exercendo
competência antes restritas aos Estados soberanos. Por isso, são
auto-aplicáveis nos ordenamentos jurídicos internos, sem qualquer obstáculo à
sua executoriedade.
7. "A questão da
executoriedade dos tratados internacionais no âmbito do direito interno -
analisado esse tema na perspectiva do sistema constitucional brasileiro - supõe
a prévia incorporação desses atos de direito internacional público ao plano da
ordem normativa doméstica" (Ministro Celso Mello, ADIn 1480-3-DF, DJU I,
2.8.96, pp. 25.792 a 25.795);
8. Ver a íntegra do acórdão
na RTJ 83/809-848;
9. Voto proferido no RE
80.004-SE, in RTJ 83/518;
10. Os países da europa,
integrantes da CEE, são o exemplo marcante. Mas isso se deve a natureza
supranacional atribuída do mercado, do direito comunitário dele emanado e da
avançada cultura que permite a sobrevivência do novel modelo sem um poder de
coação sobre os Estados-membros. Pode-se dizer que o direito comunitário
convive em harmonia com as ordens internas de cada nação, numa relação de
dependência mútua.
Portugal, por exemplo, admite a recepção automática das normas internacionais
(Constituição, art. 8º) e, inclusive, a superioridade hierárquica das normas da
CEE sobre a legislação interna (cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 1998, pp. 725/727). Aliás, o
sistema português admite, excepcionalmente, a incidência de normas formalmente
inconstitucionais constantes de tratados internacionais (Constituição, art.
277, n. 2)
A Alemanha também consagra o princípio da recepção automática, nos arts. 24 e
25 da Grundgesetz. O art. 11 da Constituição italiana preceitua que a
Itália "consente, em condições de reciprocidade com outros Estados, nas
limitações de soberania necessárias a uma ordem, asseguradora da paz e da
justiça entre as nações".
Enfim, o direito comunitário da Comunidade Econômica Européia constitui-se de
normas self-executing, isto é, de normas que tem recepção e aplicação
direta nos países membros.
11. A Argentina adota
procedimento de aprovação congressual aos tratados internacionais (art. 75,
inciso 22, de sua Constituição). No Uruguai, compete a Assembléia Geral (Congresso)
aprovar e reprovar, por maioria absoluta, os tratados celebrados pelo Poder
Executivo (art. 85, 7º c/c art. 168, n. 20, da Constituição de 1967). Aliás, a soberania legislativa uruguaia ganhou ênfase no art. 4º de
sua Constituição, verbis: "La soberanía en toda su plenitud existe
radicalmente en la Nación, a la que compete el derecho exclusivo de estabelecer
sus leyes, del modo que más adelante se expresará";
12. "... No direito
brasileiro, dá a Constituição Federal competência privativa ao Presidente da
República, para celebrar tratados e convenções internacionais ad referendum do
Congresso Nacional (...). Por outro lado, tem o Congresso Nacional competência
exclusiva para resolver definitivamente sobre tratados e convenções celebrados
com os Estados estrangeiros pelo Presidente da República (...).
Assim, celebrado o tratado ou convenção por representante do Poder
Executivo, aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Presidente da
República, com a publicação do texto, em português no órgão de imprensa
oficial, tem-se como integrada a norma da convenção internacional no direito
interno" (Revista de Jurisprudência do TJ-RS, Vol. 4/193);
13. A falta de publicação do
Decreto Legislativo n. 192/95 (Protocolo de Medidas Cautelares de Ouro Preto-MG)
levou o STF, por unanimidade, a negar o exequatur a carta rogatória expedida
pela Justiça da República da Argentina mediante a qual se pretendia, com
fundamento no Protocolo de Medidas Cautelares adotado pelo MERCOSUL, o
seqüestro de mercadorias a bordo de navio atracado em Belém-PA, bem como o
arresto do próprio navio (Carta Rogatória n. 8.279 - Informativo STF n. 109);
Conforme Francisco Rezek, "O ordenamento jurídico, nesta República, é
integralmente ostensivo. Tudo quanto o compõe - resulte de produção legislativa
internacional ou doméstica - presume publicidade oficial e vestibular. Um
tratado regularmente concluído depende dessa publicidade para integrar o acervo
normativo nacional, habilitando-se ao cumprimento por particulares e
governantes, e à garantia de vigência pelo Judiciário" ("Direito
dos Tratados", Forense, 1984, p. 384);
14. Esta regra instituiu o
registro obrigatório da Nota Promissória em Repartição Fazendária, sob pena de
nulidade do título cambiário;
15. Restou vencido o saudoso
Ministro Xavier de Albuquerque, relator, que com o brilhantismo de costume,
sustentava sua tese em dois argumentos: a) a supremacia dos tratados em relação
à legislação interna, com base no art. 98 do CTN; e b) a necessidade de honrar
e respeitar as convenções internacionais, o que retiraria o direito dos países
signatários de estabelecerem outras restrituções aos títulos cambiais que não
aquelas previstas na Lei Uniforme de Genebra.
16. Aplicação do critério
cronológico - lex posterior derogat priori;
17. "Cumpre assinalar,
finalmente, que os atos internacionais, uma vez regularmente
incorporados ao direito interno, situam-se no mesmo plano de
validade e eficácia das normas infraconstitucionais. Essa visão do tema
foi prestigiada em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento do RE nº 80.004-SE (RTJ 83/809, Rel. p/ o acórdão Min.
CUNHA PEIXOTO), quando se consagrou, entre nós, a tese - até hoje prevalecente
na jurisprudência da Corte (e recentemente reiterada no julgamento da ADI nº
1.480-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO) - de que existe, entre tratados
internacionais e leis internas brasileiras, de caráter ordinário, mera
relação de paridade normativa." (Carta Rogatória n. 8.279-4 da
República da Argentina, Min. Celso Mello, Informativo n. 109 do STF, grifos no
original);
18. ADIn 1480-3-DF;
19. Ver Hugo de Britto
Machado, Curso de Direito Tributário, 12ª edição, Malheiros, p. 59;
Retirado de:
http://intermega.com.br/caput/artigos/internacional/merco.htm