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A Jurisdição e o Processo Constitucional em um Estado Democrático de Direito

Francisco de Castilho Prates

 

 

 

Advogado e Mestrando em Direito Constitucional pela FDUFMG

 

Sumário:

 

Introdução

 

1 – Processo e Constituição                                                                        

 

2 – Princípios Fundamentais na Constituição de 1988

 

2.1 – Do Acesso à Justiça                                                                            

 

2.2 – Do Devido Processo Legal                                                                  

 

2.3 – Do Contraditório                                                                                   

 

3 – A Jurisdição e o Processo Constitucional diante

 

      dos direitos fundamentais da cidadania

 

Considerações Finais

 

Referências Bibliográficas                                        

 

 

 

 

 

 

 

Introdução

 

 

 

Habitamos um mundo cada vez mais complexo e dinâmico, onde as certezas e verdades inquestionáveis não mais existem, resultado de um progresso técnico jamais visto antes, obrigando-nos, a todo momento, a revermos nossos pontos de vista e relermos velhos conceitos, impondo a problematização de temas até recentemente impensáveis, como, por exemplo, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, a eutanásia e matérias relativas a bioética.

 

É dentro desse contexto que tentamos estudar e compreender a Jurisdição e o Processo Constitucional, já que os mesmos, ainda mais quando pautados por um Estado Democrático de Direito plural e aberto, encontram-se no centro deste turbilhão de idéias e transformações, assim sendo, antigos dogmas formais devem ser questionados em prol de uma perspectiva libertária da mesma Jurisdição e do mesmo Processo Constitucional.

 

Direitos e garantias fundamentais do seres humanos, antes apenas inscritos e consagrados em um plano meramente formal, necessitam, hodiernamente, serem materializados, implicando em uma internacionalização e no aperfeiçoamento da proteção jurídico-constitucional, fazendo com que inúmeras novas ações e procedimentos aparecessem com a finalidade de reforçar os ideais do constitucionalismo e assegurar plenitude ao princípio da supremacia da Constituição.

 

Com base nestes pressupostos é que erigimos como objetivo geral deste artigo procurar demonstrar a dimensão essencial que a Jurisdição e o Processo Constitucional possuem na defesa e proteção dos direitos e liberdades fundamentais para a cidadania, buscando revelar que a jurisprudência constitucional, ao discutir temas “perturbadores”, dentro de padrões processuais democráticos, acaba por impulsionar a sociedade em direção de uma estrutura mais transparente e, por isso mesmo, mais justa e coerente, já que não nega a diversidade e a alteridade constitutivas de nossos contextos sociais, reforçando o sentimento de Constituição.

 

Daí, que admitimos como ponto de partida deste nosso trabalho o fato de que “os direitos elencados na Constituição podem ampliar-se, de modo que a juridicidade, a efetividade e a justiciabilidade possam tornar concretos os direitos da cidadania. A jurisprudência constitucional propiciou a ampliação dos conceitos básicos de direitos e liberdades fundamentais.” (BARACHO, 2003: 11)

 

Os direitos humanos fundamentais não podem ficar a mercê da boa vontade e da indulgência dos governantes e dos poderes públicos, não bastando apenas o seu reconhecimento na Constituição, requerendo para a sua aplicabilidade que instrumentos processuais acessíveis e não herméticos estejam a disposição da população, denotando que princípios processuais constitucionais, como os do acesso à justiça e o devido processo legal, entre outros, são basilares em uma compreensão realmente democrática da Jurisdição e do Processo Constitucional como mecanismos que possibilitem a plenitude desses mesmo direitos fundamentais.

 

Nessa ordem de idéias, pretendemos demonstrar que por vivermos em uma época como a contextualizada acima, o estudo sistemático da Teoria Geral da Jurisdição e do Processo Constitucional se revela por demais necessário, fazendo-se mister que reconheçamos as decisões constitucionais mais controvertidas como as mais importantes, pois são nelas que encontramos os temas nevrálgicos para a nossa sociedade, fator este que é essencial para não permitirmos que discursos que tenham como finalidade fechar ou imutabilizar o elenco dos direitos fundamentais sejam bem sucedidos, revelando, mais uma vez, a força viva da jurisprudência constitucional.

 

 

 

1 – Processo e Constituição

 

 

 

O estudo que agora iniciamos é de extrema relevância no presente, haja vista a importância que a doutrina e a jurisprudência têm dado aos institutos processuais como forma de garantir o pleno exercício dos direitos fundamentais consubstanciados nos modernos textos constitucionais democráticos, sendo esses mesmos direitos fundamentais entendidos como direitos processuais, assegurados que são por mecanismos e instrumentos jurídico-constitucionais que potencializam, em muito, o seu emprego por todos os cidadãos.

 

Assim, qualquer análise da Teoria Geral do Processo tem que se remeter, ainda que indiretamente, aos ditames constitucionais, pois são estes que traçam e delimitam seu desenvolvimento, não se admitindo, desta maneira, que os institutos processuais sejam compreendidos em uma perspectiva estanque, isolada, isto é, em um marco democrático o processo demonstra ser não apenas um instrumento formal e técnico a serviço da idéia de justiça, mas também um forte aliado do exercício da liberdade e da igualdade.

 

Denota-se que é o processo, quando os princípios basilares deste estão inseridos em um paradigma democrático e constitucional, que garante que todos os cidadãos terão, em tese, o mesmo tratamento por parte do aparato do Estado, revelando que somente a partir de uma inter-relação entre Processo e Constituição é que a integridade, coerência e validade do próprio ordenamento jurídico, como um todo principiológico considerado, será concretizada.

 

Verificamos, desde já, que a garantia de que os institutos processuais observarão as disposições elencadas em uma Constituição democrática pressupõe admitirmos a superioridade ou supremacia do texto maior, sendo todos os mecanismos e noções do processo subordinados às suas determinações, as quais objetivam tornar efetivas as garantias básicas e os direitos individuais.

 

Ora, a partir dessas considerações, podemos apreender que:

 

“As garantias constitucionais do processo alcançam todos os seus participantes. O processo como garantia constitucional consolida-se nas constituições do século XX, através da consagração de princípios de direito processual, com o reconhecimento e a enumeração de direitos da pessoa humana, sendo que estes consolidam-se pelas garantias que os tornam efetivos e exequíveis.” (BARACHO, 2000a: 50)

 

 

 

 Essa constitucionalização do processo deve dar o norte para todos os ramos do direito em uma democracia participativa e inclusiva, sendo extremamente necessária diante dos riscos e contingências existentes em nossa sociedade contemporânea, na qual vem imperando uma anomia e um niilismo crescente, pois possibilita que todos os destinatários das decisões e provimentos jurisdicionais reconheçam-se nas sentenças emanadas pelos órgãos competentes, já que as suas pretensões a direitos terão maior oportunidade de serem expostas, avaliadas e debatidas, pública e transparentemente, propiciando uma salutar legitimidade para as instituições estatais, configurando um procedimento que acaba por salvaguardar a noção de liberdade.

 

Daí, afirmar José Alfredo de Oliveira Baracho que:

 

“O Processo Constitucional tem por objeto essencial a análise das garantias constitucionais, como são vistas atualmente, isto é, como instrumentos predominantemente processuais, dirigidos a reintegração da ordem constitucional, quando ocorre o seu desconhecimento ou violação pelos órgãos do poder.” (BARACHO, 2001: 139)

 

 

 

Eis aí alguns pressupostos que nos permitem diagnosticar que tal visão e compreensão do processo está configurada, profundamente, em algumas das garantias fundamentais estabelecidas em nossa Constituição Federal, que, entre outras, são aquelas relacionadas com o acesso ao judiciário ou o também denominado direito de ação e defesa (art.5°, XXXV) e ao princípio do devido processo legal e do contraditório (art.5°, LIV e LV), bem como a necessidade de que todas as decisões sejam públicas e fundamentadas, não mais se admitindo os absurdos tribunais de exceção e qualquer outra espécie de mecanismo ou legislação que possa vir a negar a densificação de uma simétrica participação no processo. Diga-se que neste ponto limitar-nos-emos a indicar ou identificar esses princípios, sem adentrar em pormenores, já que ao longo deste artigo os mesmos serão abordados com maior profundidade e cautela.

 

Afere-se, claramente, que, no presente, nenhum dos ramos do direito, por estarem os mesmos em um Estado Democrático de Direito plural e complexo, podem deixar de considerar e aplicar, acima de tudo, os dois princípios nucleares de um processo libertário, quais sejam: o que garante, o mais amplamente possível, a todos os cidadãos, o acesso ao Poder Judiciário e aquele que concretiza em toda a sua dimensão o devido processo legal, já que esses podem ser entendidos como pressupostos necessários ao exercício de todos os outros princípios.

 

Contudo, convém lembrarmos, para reforçar ainda mais os argumentos supra citados, que a partir do artigo 5º, parágrafo segundo, da nossa Constituição de 1988, podemos vislumbrar que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

 

Percebe-se, com a passagem acima transcrita, toda a dimensão que a proteção à dignidade da pessoa humana atingiu em nosso ordenamento constitucional, proteção essa que, em grande medida, é efetivada através de instrumentos processuais realmente acessíveis, os quais são parte essencial para permitir o surgimento de uma sociedade mais justa, livre e equilibrada.

 

Em outras palavras, o processo, em todo seu âmbito de atuação, deve ser reinterpretado à luz dos princípios elencados na Carta Constitucional de 1988, a qual pressupõe a compreensão da idéia de cidadania em um ambiente de reconhecimento dos direitos fundamentais, os quais são fonte inegável de inclusão e integração social.

 

Não basta, todavia, que os direitos fundamentais estejam consagrados constitucionalmente, sendo necessário implementá-los e garanti-los na prática, pois do contrário teríamos um esvaziamento do seu significado, o que seria preocupante, já que tais direitos possuem um alto valor simbólico para a democracia constitucional, haja vista carregarem consigo a exigência de justiça, decorrendo daí a importância de um processo voltado para a sua concretização, ou seja, os direitos fundamentais são uma espécie de referência constitucional para toda atividade processual em um Estado Democrático de Direito.

 

Neste sentido, Flávia Piovesan assinala:

 

“Com efeito, a busca do texto em resguardar o valor da dignidade humana é redimensionada, na medida em que, enfaticamente, privilegia a temática dos direitos fundamentais. Constata-se, assim, uma nova topografia constitucional, na medida em que o texto de 1988, em seus primeiros capítulos, apresenta avançada Carta de direitos e garantias, elevando-os, inclusive, à cláusula pétrea, o que, mais uma vez, revela a vontade constitucional de priorizar os direitos e garantias fundamentais.” (PIOVESAN, 2000: 55)

 

 

 

Princípios processuais, como os citados anteriormente, a partir de posicionamentos como o retratado acima, revelam-se inatingíveis até mesmo por Emendas Constitucionais que, por algum motivo ou razão, pretendam reduzir seu campo de incidência, já que os mesmos podem e devem ser entendidos como garantias constitucionais pétreas do exercício da cidadania e da própria sociedade, requerendo que estejam sempre presentes quando das decisões judiciais.

 

A compreensão da Teoria Geral do Processo, em um paradigma democrático-constitucional como o da Carta de 1988, impõe a consideração e a prevalência dos argumentos levantados por todos os cidadãos e jurisdicionados envolvidos, em uma igualdade processual que não se confunde com o direito material pretendido, podendo os mesmos receber uma “sentença que é ato do Estado, mas que não é produzida isoladamente pelo Estado e sim resulta de toda uma atividade realizada com a participação, em garantia de simétrica paridade, dos interessados, ou seja, dos que irão suportar os seus efeitos.” (GONÇALVES, 1992: 188)

 

Com efeito, o Processo Constitucional tem como escopo primordial e central a defesa e garantia de todos os princípios dispostos em nosso texto fundamental, sempre dentro de um parâmetro dado pelo Estado Democrático de Direito, mas dando um relevo maior e significativo à proteção daqueles princípios diretamente referidos aos indivíduos, buscando evitar que atos e decisões ilegítimas das autoridades e entidades estatais possam ficar sem a devida resposta.

 

É o processo, por exemplo, como igual proteção ao exercício do direito à diferença, entendida esta, em toda a sua amplitude, ou seja, diversidade religiosa, de orientação sexual, de concepções e projetos de vida os mais díspares possíveis, que afirma a circunstância de que toda decisão judicial, em si mesma, tem de estar e ser conforme a Constituição.

 

Daí, a necessidade premente de que a sociedade civil possua meios e instrumentos processuais de ação e defesa efetiva, como por exemplo, um controle de constitucionalidade eficiente e democrático, o mandado de segurança coletivo, a ação civil pública e a ação popular, entre outros mecanismos, contra a sempre presente possibilidade de arbitrariedades e abusos por parte dos poderes públicos, isto é, de uma provável interferência indesejável do Estado e do mercado na configuração das relações jurídicas e sociais.

 

Como bem ensina e lembra o Professor Aroldo Plínio Gonçalves:

 

“A primeira proteção que o ordenamento jurídico necessita oferecer aos jurisdicionados é a proteção de seu direito de, quando destinatário dos efeitos da sentença, participar dos atos que a preparam, concorrendo para sua formação, em igualdade de oportunidades.” (GONÇALVES, 1992: 173)

 

 

 

Desta maneira, e mesmo que não pretendendo entrar especificamente no campo da filosofia do direito, não há como negar que o processo não pode ser descrito ser ter em mente a idéia da justiça, já que esta se mostra de fundamental importância na formação e justificação de todas as decisões judiciais dentro de um Estado Democrático de Direito.

 

Sem objetivar a justiça, mesmo que essa seja de difícil determinação e possua diversos significados, o processo se contradiz e, paradoxalmente, ao invés de ser um valioso instrumento para compor os conflitos existentes, acaba por ampliá-los, pois não conseguirá acomodar as diversas pretensões e reivindicações que se manifestam na nossa sociedade.

 

Além disso, somente quando os procedimentos determinantes das decisões jurídicas forem verdadeiramente democráticos, e potencializarem uma participação positiva dos interessados na formação dessas mesmas decisões, é que poderemos assegurar não a existência de um processo justo abstratamente, mas de um direito processual, que por estar sedimentado nos princípios constitucionais, busca, incessantemente, realizar a justiça concretamente.

 

“A formulação de um Processo Constitucional que possa ser instrumento de absorção das crises e dos conflitos, a nível institucional, torna-se necessária para o Estado democrático, que somente assim poderá corresponder aos apelos da sociedade contemporânea. Este Processo não será, apenas, instrumento de realizações particularistas, assentadas em concepções individualistas, que se satisfazem, com composições judiciais, que não ultrapassam interesses de minorias ou de grupos.” (BARACHO, 1984: 354)

 

 

 

Daí, que a possibilidade de uma participação cidadã o mais crítica e ativa possível é considerada requisito essencial para se ter uma identidade constitucional democrática, e os instrumentos processuais, abrindo espaço de discussão e argumentação a todos, são mecanismos centrais para o direito moderno, permitindo que sejam aplicadas, por exemplo, através de um efetivo procedimento contraditório, as normas aos casos concretos, assegurando a plenitude ao devido processo legal, reconhecendo que só nas situações de aplicação se devem fundamentar as decisões judiciais, em uma noção processual de justiça.

 

Pasquale Pasquino, ao tratar do Recurso Constitucional Direto existente no ordenamento alemão, ao qual todo cidadão germânico é legitimado, deixa muito claro essas novas perspectivas que o Processo Constitucional, em sua relação com as formas democráticas, tem tido necessidade de assumir.

 

 “Vale la pena di osservare, tornando sul rapporto fra giustizia costituzionale e democrazia, che questo tipo di ricorso sviluppa una dimensione nuova della partecipazione dei cittadini alla vita pubblica. È forse possibile descrivere questo sistema come uno in cui i cittadini hanno di più che i semplici diritti politici di partecipazione al processo legislativo, esercitati attraverso la scelta dei rappresentanti (e del governo) in occasione di elezione periodiche e competitive. Essi hanno anche il diritto di entrare in un dialogo continuo ed ininterrotto con i loro governanti, inviando ricorsi diretti ai giudici costituzionali e ottenendo risposte alle loro domande e rivendicazioni.” (PASQUINO, 2002: 364 – 365) (Grifos Nossos)

 

 

 

Seguindo essa linha de pensamento é que podemos reparar que o Processo Constitucional e a Jurisdição Constitucional tem adquirido, a cada dia mais, maior importância, pois novos temas e questionamentos, os mais complexos e polêmicos possíveis, têm sido trazidos ao debate através da jurisprudência constitucional, jurisprudência esta que, em sociedades tão dinâmicas como as nossas, assume um papel de destaque crescente.

 

Como leciona José Alfredo de Oliveira Baracho, em seu artigo Processo e Constituição: O Devido Processo Legal:

 

“Como instrumento de atuação das fórmulas constitucionais, o processo acarreta a transformação de mero direito declarado em direito garantido. O nível constitucional a que são levados muitos dos preceitos processuais possibilita a efetiva defesa das partes e a sustentação de suas razões.” (BARACHO, 1980,81,82: 67)

 

 

 

Consequentemente, a relevância que se confere ao tema ora em estudo, justifica o exame sistemático, a ser iniciado, de alguns dos princípios processuais fundamentais inseridos em nossa atual Constituição, com ênfase ao acesso à justiça, o devido processo legal e seu corolário lógico, o contraditório, buscando demonstrar que os mesmos devem ser interpretados de acordo com o respeito à alteridade e à pluralidade, a partir de uma perspectiva principiológica da Constituição, ressaltando que argumentos como os de maior segurança jurídica ou celeridade processual não podem se sobrepor aos direitos e garantias fundamentais de exercício da cidadania, pois a participação dos destinatários na elaboração e aplicação das leis é um valioso mecanismo de controle democrático das instituições.

 

2 – Princípios Processuais Fundamentais na Constituição de 1988

 

 

 

2.1 – Do Acesso à Justiça

 

 

 

O princípio do acesso à justiça, também conhecido doutrinariamente como direito ao exercício de ação e de defesa, possibilita, a grosso modo, que todos os cidadãos compareçam em juízo para a defesa de direitos seus que julguem estarem sendo lesados ou ameaçados. Tal garantia constitucional está consagrada entre nós no artigo 5º, inciso XXXV, o qual dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”

 

 Denota-se que tal princípio, em um marco democrático como o assumido pelo texto constitucional de 1988, deve ser entendido em sentido amplo, pois para efetivá-lo devem ser tomadas todas as medidas que facilitem o acesso ao Judiciário, daí a importância de legislações, entre outras, que garantem o auxílio judicial aos mais necessitados ou a não cobrança de custas daqueles comprovadamente carentes, sendo que a partir de 1988 os Estados devem implementar, em igualdade de condições com o Ministério Público, as chamadas Defensorias Públicas, como mais uma forma de ampliar as possibilidades de acesso à justiça.[1]

 

O acesso irrestrito ao Poder Judiciário pode ser visto como uma das maiores aquisições do processo democrático, já que representa a garantia de que todas as pessoas, de modo indistinto e sem discriminações, poderão defender os seus direitos mais elementares, configurando-se em um mecanismo fundamental para assegurar o respeito e a dignidade do ser humano, revelando ser um verdadeiro direito cívico.

 

“O direito de ação consolida-se na compreensão de que todas as pessoas têm de obter a tutela efetiva dos juízes e tribunais, na concretização e exercício de seus direitos e interesses legítimos. A ação, considerada como direito público constitucional, é aceita pela doutrina.” (BARACHO, 2000a: 53)

 

Contudo, não obstante reconhecermos o inegável avanço que a Carta de 1988 produziu, existem ainda inúmeros obstáculos para a positivação plena do princípio processual em tela, haja vista que somente uma parcela ínfima da nossa população vai ao Poder Judiciário para tentar fazer valer os seus direitos, o que apenas dificulta o nosso amadurecimento institucional, refletindo, de certo modo, uma descrença, por parte da nossa sociedade civil, com a instância judicial.

 

Lembre-se que um princípio constitucional não é uma mera peça de retórica vazia mas, ao contrário, sua aplicação revela ser obrigatória, isto é, mesmo quando o Legislativo se omite, deve o Judiciário adaptar a legislação ao que os princípios determinam, sendo esse procedimento uma idéia basilar em um Estado de Democrático de Direito.

 

Há também a circunstância de que em razão da amplitude dada, pela Constituição de 1988, à garantia do exercício do direito de ação e defesa, não há necessidade de que a pessoa, física ou jurídica, esgote todos os recursos da esfera administrativa para comparecer em juízo, não podendo qualquer legislação impor ou determinar condições, além daquelas constitucionalmente previstas quando da declaração do estado de defesa ou do estado de sítio (CF/88, arts. 136 e seguintes), que restrinjam, o livre acesso ao Judiciário.

 

Como bem observam Antônio Carlos de Araújo Cintra, Cândido Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, ao tratarem da Teoria Geral do Processo:

 

“Seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando simplesmente uma pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia satisfazê-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma solução que faça justiça a ambos os participantes do conflito e do processo. Por isso é que se diz que o processo deve ser manipulado de modo a propiciar às partes o acesso à justiça, o qual se resolve, na expressão muito feliz da doutrina brasileira recente, em ‘acesso à ordem jurídica justa’”. (ARAÚJO CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 1998: 33)

 

 

 

Em síntese, podemos verificar a exigência de uma democrática e transparente justiça processual, pois somente assim o princípio constitucional do acesso à justiça será observado em toda a sua integridade, demonstrando que em torno desse mesmo princípio gravitam todas as demais garantias processuais fundamentais, já que sem ele nenhum dos outros princípios sairá do papel, permanecendo inertes perante um contexto que se mostrará fechado.

 

Assim, o acesso à justiça reforça a tese de que necessitamos trabalhar com uma idéia de um espaço público de discussão e decisão que se fundamente em processos os mais abertos possíveis, permitindo que todos os temas e questionamentos de interesse da sociedade sejam levantados e problematizados, em uma prática jurídico-política democraticamente efetiva, sabedores que as garantias de exercícios de direitos inseridas em uma visão processual, como a aqui tratada e admitida, referem-se não apenas aos indivíduos, ontologicamente considerados, mas concernem a toda a nossa contemporânea sociedade.[2]

 

Neste mesmo diapasão, valemo-nos, mais uma vez, dos ensinamentos e conhecimentos do Professor Aroldo Plínio Gonçalves, o qual afirma que:

 

“A instrumentalidade técnica do processo está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos.” (GONÇALVES, 1992: 171)

 

 

 

Tomado sob esse ângulo mais participativo e democrático, o qual se coaduna com a ordem principiológica encontrada na Constituição brasileira de 1988, ordem esta que marca uma profunda ruptura com o ordenamento constitucional anterior, de viés demasiadamente autoritário e centralizador, o processo mostra-se como um grande discurso, onde todos os cidadãos possuem o direito e a garantia de levarem ao Poder Judiciário os seus argumentos e demandas, revelando que o mesmo processo não é um fim em si mesmo.

 

Em outros termos, o exercício do direito de ação e de defesa processual é um princípio nuclear da organização jurídico-constitucional em uma democracia participativa, pois possibilita que todos os litígios sejam solucionados em um ambiente de maior clareza, de livre convencimento dos juízes e de publicidade das decisões.

 

Concluí-se com a afirmativa de que “a segurança da proteção jurídica consiste no fornecimento de benefícios, através de meios jurídicos e financeiros para atender as necessidades, para chegar a uma solução justa, em qualquer litígio, fazendo valer os direitos de defesa, nos mais amplos caminhos que percorre a sociedade civil democrática.” (BARACHO, 2000b: 60)

 

 

 

2.2 – Do Devido Processo Legal

 

 

 

Partindo de um ponto de vista histórico, podemos já encontrar, com as devidas cautelas, na famosa Magna Carta inglesa, do ano de 1215, de grande relevo no direito anglo-saxão, as noções centrais do moderno princípio do devido processo legal, pois o referido documento, em seu artigo 39, já dizia que:

 

“nenhum homem livre será preso ou privado de sua propriedade, de sua liberdade ou de seus hábitos, declarado fora da lei ou exilado ou de qualquer forma destruído, nem o castigaremos nem mandaremos forças contra ele, salvo julgamento legal feito por seus pares ou pela lei do país.”

 

 

 

Ainda buscando demonstrar o enorme valor que o princípio em tela possui na trajetória humana em direção a uma justiça mais concreta, devemos também citar os artigos VIII e XI, n°1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, in verbis:

 

“art.VIII – Toda pessoa tem o direito de receber dos Tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais, que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

 

 

 

art. XI – 1 – Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”

 

 

 

A Constituição brasileira de 1988, assumindo a democracia constitucional, em sua dimensão plural e libertária, consagrou, em seu artigo 5º., inciso LIV, abaixo transcrito, o devido processo legal como uma das garantias fundamentais para a plenitude da cidadania.

 

“Art.5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 

...................................................................................

 

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” (Grifos Nossos)

 

 

 

Afere-se, a partir dos textos acima expostos, a dimensão que esse princípio possui em nosso Estado Democrático de Direito, pois o mesmo corporifica, juntamente com a garantia do acesso à justiça e do efetivo respeito ao contraditório, a espinha mestra de todo o nosso arcabouço de garantias processuais constitucionalmente asseguradas.[3]

 

Tal princípio exige que os instrumentos jurídicos sejam guiados por uma verdadeira isonomia processual, sendo essa pressuposto necessário para a edificação de uma jurisdição democrática, ou seja, faz-se mister, entre outras, que as seguintes garantias, que serão mais analisadas no decorrer deste ponto, por terem sido elevadas a categoria constitucional com o texto de 1988, sejam levadas em consideração e concretizadas:

 

a)    direito a um juiz previamente estabelecido – o juiz natural;

 

b)    direito ao duplo grau de jurisdição;

 

c)     igualdade processual das partes;

 

d)    direito à ampla defesa;

 

e)    direito ao contraditório;

 

f)publicidade e dever de motivar as decisões judiciais.

 

Vemos, assim, que o princípio do devido processo legal liga-se não ao direito material controvertido, mas ao processo como caminho realizado em igualdade, como condição substantiva para que as decisões emitidas pelo Judiciário reflitam, dentro de suas humanas possibilidades, o ideal de justiça que perpassa todo o paradigma participativo e democrático inserido em nosso texto maior.

 

Verifica-se que o devido processo legal impõe o respeito ao contraditório, o qual será melhor trabalhado no próximo ponto, garantindo-se às partes, envolvidas em qualquer matéria litigiosa, o direito de realizar e produzir provas, levando para o interior da relação processual todos os elementos que acreditam revelar a verdade, além de poder sustentar os seus argumentos e razões, mesmo que isso signifique manterem-se em silêncio, pois ninguém é obrigado a fazer provas contra si mesmo, dando vida ao postulado constitucional da ampla defesa.

 

 

 

Nessa mesma linha, ensina José Alfredo de Oliveira Baracho:

 

“O devido processo exige que os litigantes tenham o benefício de um juízo amplo e imparcial, perante os tribunais. Seus direitos não se medem por leis sancionadas para afetá-los individualmente, mas por disposições jurídicas gerais, aplicáveis a todos aqueles que estão em condição similar.” (BARACHO, 1980,81,82: 89)

 

 

 

O devido processo legal, quando efetivado em consonância com o princípio da igualdade de todos perante e na lei, revela ser uma fonte de legitimação para toda a estrutura institucional, pois o mesmo, nessas circunstâncias, ao afastar ou pelo menos imunizar argumentos de base autoritária, acaba por gerar decisões participadas, que por essa razão, são mais legítimas e coerentes.

 

Daí, o nosso texto constitucional exigir que todas sentenças devam ser motivadas, justificadas e fundamentadas, pois só assim é possível pensarmos em um controle democrático da jurisdição, isto é, todas essas medidas não visam, intrinsecamente, à proteção tão-somente das partes que estejam no processo mas, sobretudo, demonstrar a toda coletividade a justiça e correção presentes em cada sentença determinada, realçando o fato de que “in una democrazia il potere giudiziario non può sottrarsi a forme di controllo della pubblica opinione...” (ANDOLINA, VIGNERA, 1990: 174 – 175)

 

É o devido processo democrático que nos possibilita ver que o direito, enquanto ordenamento, ao ser aplicado pelos juízes aos casos concretos, não pode simplesmente seguir, de modo acrítico e absoluto, os textos normativos, não considerando os princípios processuais em tela, pois são esses últimos que garantem a igual chance de ser ouvido e de falar em juízo, fazendo com que as decisões judiciais sejam resultado de uma participação livre e simétrica, onde todos as partes possam controlar o desenvolvimento progressivo dos atos processuais.

 

Na verdade, o princípio constitucional do devido processo legal, por tudo até aqui afirmado, é entendido como uma das pedras fundamentais de todo o funcionamento da jurisdição, possuindo um papel primordial no que se refere à compreensão da contemporânea Teoria Geral da Jurisdição e do Processo Constitucional. 

 

A guisa de erigirmos uma singela conclusão deste ponto, poderíamos, para ficarmos na brevidade de um escrito, dizer que:

 

“A expressão devido processo significa o processo que é justo e apropriado. Os procedimentos judiciais podem variar de acordo com as circunstâncias, porém os procedimentos devidos seguem as formas estabelecidas no direito, através da adaptação das formas antigas aos problemas novos, com a preservação dos princípios da liberdade e da justiça.” (BARACHO, 1980, 81, 82: 89)

 

 

 

Tais argumentos serão subsídios importantes, quiçá essenciais, para a compreensão de uma concepção constitucionalmente adequada do que seja o princípio do contraditório, ou seja, a simétrica e potencial participação de todos os afetados pelas decisões judiciais, no plano processual, na conformação das mesmas, refletindo efetivamente a garantia do acesso à justiça e a cláusula do devido processo legal, em uma perspectiva democrática do processo, significando, desde já, que “se a justiça não se apresentar no processo não poderá se apresentar, também, na sentença.”(GONÇALVES, 1992:125)

 

 

 

 

 

 

 

2.3 – Do Contraditório 

 

 

 

Como já vimos, os princípios processuais devem ser compreendidos a partir da ótica do Direito Constitucional, reafirmando a sólida relação entre Constituição e Processo em um Estado Democrático de Direito, pois neste, vários instrumentos do processo foram inseridos no texto fundamental como garantias elementares da cidadania.

 

É neste contexto que devemos estudar o princípio do contraditório, o qual refere-se a uma técnica instrumental do processo que determina, em um ambiente de democracia plural, que todos os atos do processo sejam pautados por uma bilateralidade, ou seja, as partes não devem ser vistas como puramente opostas ou antagônicas, mas muito mais como colaboradoras, em uma exteriorização do princípio da ampla defesa, em um processo dialético que conjugue a possibilidade do direito de ação com o direito de defesa, significando, em última instância, “la possibilità, cioè, per ciascuno dei destinatari del provvedimento giurisdizionale di partecipare al relativo procedimento formativo su un piano di reciproca e simmetrica parità...”(ANDOLINA e VIGNERA, 1990: 103)

 

Percebe-se que o contraditório decorre, em grande medida, do antigo adágio romano audi alteram partem, que significa que todos os atingidos terão as mesmas chances de influir, com a força de seus argumentos, no livre convencimento do juiz, sendo que o contraditório deve estar presente em todas as fases e atos processuais que possam vir a atingir o exercício de quaisquer direitos das partes envolvidas, conferindo, como já salientado, legitimidade às decisões.

 

 

 

 

 

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, ao analisar o tema, afirma que:

 

“O que garante a legitimidade das decisões são antes garantias processuais atribuídas às partes e que são, principalmente, a do contraditório e a ampla defesa, além da necessidade de fundamentação das decisões. A construção participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da atuação do juiz, mas também do Ministério Público e fundamentalmente das partes e dos seus advogados.” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002: 78 – 79)

 

                                                                   

 

Ora, denota-se que o relacionamento e a interação entre a Teoria Geral da Jurisdição e do Processo Constitucional e a Teoria Geral do Processo, em virtude do reconhecimento da supremacia da Constituição, têm inserido conceitos e noções clássicas do processo na categoria de garantias fundamentais, já que os mesmos tornaram-se centrais e essenciais para se compreender o próprio funcionamento processual.

 

Com efeito, a consagração de princípios como o contraditório na esfera dos direitos fundamentais dos homens, só reforça a tese de que não se pode mais admitir mecanismos jurídicos que, ainda que indiretamente, criem obstáculos a efetivação desses mesmos preceitos, constitucionalmente assegurados, os quais, como realçado, são agora norteadores de toda a estrutura do processo.

 

Nesta ótica, o processo, por ser caracterizado pela observância do princípio do contraditório, passa a ser não mais um dado meramente formal, onde imperava unilateralmente a força impositiva do juiz, mais uma construção deliberativa e participada, em que todos os interessados influem na elaboração do ato final, coroando o desenvolvimento de um processo justo com uma decisão prolatada pelo Poder Judiciário.[4]

 

Em outros termos, podemos verificar que o “direito ao contraditório decorre da exigência de co-participação paritária das partes, no procedimento formativo da decisum judicial.” (BARACHO, 2000a: 58)

 

É o contraditório que determina que todas as partes envolvidas sejam adequadamente citadas, impondo que as mesmas tenham oportunidades iguais de se manifestarem sobre os fatos e argumentos apresentados antes que qualquer decisão seja tomada pelo órgão judiciário. Assim, na falta desse princípio, todos os atos processuais produzidos sem a sua inteira observação, quando prejudiciais a qualquer dos envolvidos, é fator de potencial nulidade, demonstrando, mais uma vez, a sua relevância, não podendo o mesmo ser desconsiderado.

 

A grosso modo, podemos descrever, com o auxílio dos mestres processualistas italianos, Ítalo Andolina e Giuseppe Vignera, o contraditório como um instrumento que objetiva “garantire anche alle parti diverse dall’attore la possibilità di far sentire la loro voce prima che il giudice provveda sulla domanda...” (ANDOLINA e VIGNERA, 1990: 108)

 

Abra-se, neste momento, um pequeno parêntesis, para salientar-se que todas essas afirmações possuem como pano de fundo o paradigma do Estado Democrático de Direito, no qual se deve buscar o reforço constante da tolerância com a diferença, com o outro, aferindo que a democracia é um projeto em contínua construção, o que implica ainda mais o respeito e o reforço do princípio do contraditório, haja vista que o mesmo, em uma perspectiva moldada pelo moderno Direito Constitucional, não pode ser mais descrito como tão-somente mais um elemento técnico-formal configurador do processo, pois agora é elevado a categoria de princípio fundamental do texto constitucional.

 

Em síntese, podemos determinar que o princípio do contraditório é uma ferramenta processual poderosa do exercício da liberdade e de garantia da Constituição, pois como bem escreveu outro grande estudioso italiano da matéria processual, Elio Fazzalari, ao se referir ao processo: “la sua essenza di struttura privilegiata per la gestione democratica di attività fondamentali; e, dunque, di strumento per la realizzazione e per la salvaguardia delle libertà.” (FAZZALARI, 1994: 618)

 

São esses os pressupostos que nos permitem afirmar, já com vistas ao próximo ponto, que o “Processo Constitucional não é apenas um direito instrumental, mas uma metodologia de garantia dos direitos fundamentais. Suas instituições estruturais (jurisdição, ação e processo) remetem-nos à efetivação dos direitos essenciais.” (BARACHO, 2000a: 93)

 

 

 

3 – A Jurisdição e o Processo Constitucional diante dos direitos         fundamentais da cidadania

 

 

 

A busca pela concretização dos denominados direitos fundamentais, em uma escala jurisdicional e processual, deve ser entendida como um pressuposto para a efetivação da cidadania, já que há uma interdependência entre o exercício pleno desses direitos com a própria idéia de uma democracia constitucional.

 

É a democracia vista como se fosse um “direito” consolidado no texto constitucional de modo positivo, tornando-se, em grande medida graças a uma dinâmica jurisdição constitucional, mais do que uma simples teoria política ou filosófica, afirmando-se, concretamente, através da realização dos direitos básicos à dignidade humana.

 

“El constitucionalismo actual no sería lo que es sin los derechos fundamentales. Las normas que sancionan el estatuto de los derechos fundamentales, junto a aquéllas que consagran la forma de Estado y las que establecen el sistema económico, son las decisivas para definir el modelo constitucional de sociedad.” (PÉREZ LUÑO, 1995: 19)

 

 

 

Deve existir então, como já dito anteriormente, arenas públicas de debate e decisão, nas quais as decisões judiciais implementadas tenham de ser justificadas em uma estrutura que preserve e amplie os princípios centrais de um processo democrático, característica esta que determinará novos padrões de aprendizado institucional, evitando que o discurso do Estado Democrático de Direito se torne vazio de sentido.

 

Evidencia-se, então, que em época de uma crescente internacionalização do Processo e da Jurisprudência Constitucional, o sentido de cidadania necessita ser reconstruído a partir de uma base não assistencialista, a qual equipara o cidadão a um menor impúbere, como se este necessitasse de um “tutor”, reconhecendo a igualdade dos indivíduos enquanto membros plenos, ativos e responsáveis de uma dada sociedade, e ao mesmo tempo reconhecendo e tematizando o pluralismo existente, em espaços locais mais próximos dos indivíduos e de suas relações intersubjetivas, valorizando os fundamentos de uma jurisdição constitucional em um Estado Democrático de Direito.

 

A cidadania, para se transformar em realidade, pressupõe uma concretização de valores éticos inseridos nos direitos fundamentais, demonstrando que a simples menção a estes pode nada significar, se junto com o reconhecimento textual, não forem asseguradas garantias reais de torna-los realidade, ou seja, o ponto central, quando da interpretação e aplicação das normas legais, é a dignidade do ser humano, o que está explicitamente consagrado na Constituição brasileira de 1988.[5]

 

           Vejamos, com José Alfredo de Oliveira Baracho, a importância que uma proteção jurisdicional efetiva tem na esfera dos direitos fundamentais, a citação é um pouco longa, mas ver-se-á logo o seu interesse:

 

“O reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais não é suficiente, desde que não vem acompanhado de garantias que assegurem a efetividade do livre exercício de tais direitos. As liberdades adquirem maior valor quando existem garantias que as tornam eficazes.

 

O sistema de proteção dos direitos fundamentais concretiza-se na sua viabilização em sede jurisdicional. O bloco garantista consagra mecanismos variados, alguns têm caráter abstrato. Certos instrumentos ou previsões constitucionais não estão vinculados a uma vulnerabilidade real e concreta de um direito fundamental, mas são condições e requisitos, de caráter geral, para atuação dos poderes públicos ou que limitam sua atuação.

 

Os direitos fundamentais vinculam o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, e a própria jurisdição, como direitos diretamente aplicáveis. É neste sentido que a jurisdição em suas distintas instâncias, em razão das normas constitucionais, está obrigada à imediata aplicação dos direitos fundamentais.” (BARACHO, 2000a: 100 – 101)

 

 

 

Seguindo essa linha de raciocínio, é importante lembrarmos que, não obstante a redemocratização ocorrida com a promulgação da atual Constituição e, com a presença no cenário político-jurídico de novas linguagens e atores, ainda se faz necessário um implemento verdadeiro dos princípios processuais democráticos inseridos no texto constitucional vigente, já que entendemos ser a consolidação desses um fator essencial para sairmos da “simples” proclamação dos direitos e liberdades fundamentais e passarmos para um plano de realizações plenas dos mesmos, configurando uma Justiça Constitucional que se revele como um instrumento “pedagógico” contra idéias autoritárias de poder.

 

Sendo assim, o primordial na compreensão dos direitos da cidadania no Brasil é de que estes só se realizarão inteiramente quando reformas profundas, em todas as suas dimensões, tornarem os procedimentos jurisdicionais e decisórios mais acessíveis a todas as camadas sociais, imperando uma gestão plural e democrática dos temas e interesses públicos.

 

Desse modo, a formação de uma Jurisdição Constitucional mais independente e atuante, assumindo posições mais firmes e críticas em relação aos atos da Administração Pública, é elemento-chave na inserção da sociedade civil organizada brasileira em um contexto mais solidário e justo, permitindo uma inclusão social verdadeiramente democrática, já que a mesma se alicerçará na garantia de que os princípios mestres do processo serão empregados para reforçar a integridade, a coerência e a supremacia das disposições constitucionais.

 

Desta sorte, a pretendida concretização do exercício dos direitos e liberdades fundamentais do homem está, intrinsecamente, vinculada a exigência de que sejam edificados mecanismos jurídico-processuais que possibilitem, em princípio, que quaisquer violações ou abusos que venham a ocorrer no âmbito desses mesmos direitos sejam passíveis de controle e aferição por parte dos órgãos do Poder Judiciário, isto é, a garantia constitucional reconhecida aos direitos fundamentais implica, óbvia e logicamente, na existência de um instrumental de defesa e proteção, o que nos remete, novamente, para a importância de compreendermos os institutos processuais a partir da Constituição.

 

Como vislumbra o Professor Marcelo Cattoni:

 

“Ao possibilitar a garantia dos direitos fundamentais processuais jurisdicionais, nos próprios processos de controle jurisdicional de constitucionalidade, em via incidental ou principal, a jurisdição em matéria constitucional também garantirá as condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos, pela aplicação a si mesma do princípio do devido processo legal, compreendido, aqui, como ‘modelo constitucional do processo.’” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002: 155 – 156)

 

 

 

Em suma, a estruturação da Jurisdição e do Processo Constitucional, como meios democráticos que objetivam a efetiva aplicação dos direitos fundamentais, determina uma noção tautológica das garantias e dos direitos por elas assegurados, ou seja, direitos garantidos implicam na garantia dos direitos. Tem-se assim, caracterizada a circunstância de que os problemas e questionamentos que giram entorno da efetividade e aplicabilidade dos direitos fundamentais vinculam-se, direta e indiretamente, ao papel exercido pela referida Jurisdição e Processo Constitucional.

 

Eis aí, em rápidas pinceladas, os pressupostos que nos permitem verificar que:

 

“Torna-se cada vez mais importante o aperfeiçoamento dos institutos que completem o papel do processo constitucional na efetivação da cidadania plena. Como titulares de direito, os cidadãos, no exercício da cidadania plena, não podem ser impedidos do gozo de seus múltiplos direitos, reconhecidos e elencados na Constituição e na legislação infraconstitucional, mesmo daqueles cujas leis não foram promulgadas ou que se tornem menos efetivos e eficazes na ausência destas.” (BARACHO, 1995: 55)(Grifos Nossos)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Considerações Finais

 

 

 

. Todos os argumentos levantados neste trabalho permitem-nos verificar o enorme vulto que a Justiça Constitucional vem assumindo em nossas sociedades hipercomplexas, pois o texto constitucional deve estar apto a englobar, democraticamente, toda a diferença constitutiva de nossas coletividades, potencializando o fato de que a Constituição deve pertencer a todos que a ela estão submetidos.

 

. Percebe-se que Constituição, Democracia e Justiça Constitucional são conceitos interdependentes, pois todos, em princípio, possibilitam o aparecer de novas respostas para temas cada vez mais complexos, constituindo-se em meios de assegurar e consolidar o Estado Democrático de Direito a partir de bases mais legítimas.

 

. Partindo de posicionamentos como os aqui abordados, podemos descrever o processo dentro de novos parâmetros, quais sejam, os constitucionais democráticos, fazendo com que princípios e institutos processuais fossem além, em sua materialização ou densificação, dos desgastados dogmas do formalismo, pois os mesmos, agora, guiam-se pela procura de uma plena garantia e aplicabilidade dos direitos fundamentais.

 

. “Os estudos dos institutos do processo não podem ignorar seu íntimo relacionamento com a Constituição, principalmente tendo em vista os instrumentos indispensáveis à garantia e modalidades de defesa dos direitos fundamentais do homem.” (BARACHO, 1980, 81,82: 59)   

 

. Dentro desse contexto, os princípios processuais constitucionais, como os anteriormente trabalhados, assumem um papel crucial na garantia da supremacia e efetividade da Constituição e, consequentemente, dos direitos fundamentais de toda a sociedade civil organizada.

 

. Saliente-se que não pode haver uma verdadeira Justiça Constitucional sem a preservação dos direitos e liberdades fundamentais, ou seja, não há como pensarmos em Justiça Constitucional, no sentido por nós adotado, em Estados e estruturas autoritárias.

 

. Ainda nessa linha de raciocínio vislumbramos que, na atualidade, o campo de ação da Jurisdição Constitucional é vasto, não se prendendo tão-somente a uma dimensão, haja vista a necessidade de novas soluções para os novos temas que são, a todo tempo, produzidos no interior de nossa sociedade, isto é, com o fulcro de defender e garantir os direitos fundamentais, a Jurisdição e o Processo Constitucional precisam, constantemente, incorporar complexidade, dando uma “nova face”, via jurisprudência constitucional, à própria idéia de Direito.

 

. De tudo o exposto, podemos concluir que, desde um ponto de vista constitucional e democrático, em si mesmo libertário, a Teoria Geral da Jurisdição e do Processo Constitucional adquire, a cada dia, maior relevo, já que tem como objeto, em última análise, a defesa dos direitos e liberdades essenciais a todos os seres humanos, procurando criar condições para que os referidos direitos não somente se tornem letra sem expressão, mas também possibilitando uma abertura permanente do conteúdo dos mesmos, em uma salutar e democrática incorporação de diversidade, concretizando-os através da força e criatividade de seus julgados e jurisprudências, ou seja, configurando o que muitos constitucionalistas e estudiosos denominam de Jurisdição Constitucional da Liberdade.”

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas:

 

ANDOLINA, Ítalo, VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile italiano – Corso di Lezioni. Torino: Giappichelli, 1990. 231 p.

 

 

 

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição Constitucional da Liberdade. In: LEITE SAMPAIO, José Adércio (Org.). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 537 p.

 

 

 

_____________________________. As Especificidades e os Desafios Democráticos do Processo Constitucional. In: LEITE SAMPAIO, José Adércio, SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de (Coord.). Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 326 p.

 

 

 

_____________________________. Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 408 p.

 

 

 

______________________________. Processo e Constituição: O Devido Processo Legal. In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG (Nova Fase), Belo Horizonte, ns°. 23,24,25, p. 59 – 103, 1980,81,82.

 

 

 

______________________________. Teoria Geral da Cidadania: a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, 1995. 68 p.

 

 

 

______________________________. Teoria Geral do Processo Constitucional. In: Revista de Direito Comparado da UFMG, Belo Horizonte, v.4, p. 49 – 131, 2000a.

 

 

 

_____________________________. O Ambiente Sistêmico da Função Judicial e o Espaço Político da Magistratura. In: Revista de Processo, São Paulo, ano 25, n°98, p. 43 – 60, abril/junho, 2000b.

 

 

 

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 208 p.

 

 

 

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, DINAMARCO, Cândido R., GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 14ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1998. 358 p.

 

 

 

Constituição da República Federativa do Brasil. Texto Constitucional de 05 de outubro de 1988 com as alterações adotadas até a Emenda Constitucional nº 38. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 350 p.

 

 

 

FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 7ª ed. Padova: CEDAM, 1994. 756 p.

 

 

 

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. 220 p.

 

 

 

PASQUINO, Pasquale. Tipologia della giustizia costituzionale in Europa. Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, Roma, n. 02, p. 359 – 369, 2002.

 

 

 

PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. 6ª. ed., Madrid: Tecnos, 1995.

 

 

 

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4ª. ed., São Paulo: Max Limonad, 2000. 458 p.

 

 

 

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Hermenêutica Constitucional e Democracia. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v.3, n. 5 e 6, p. 17 – 39, 1º. e 2º. sem., 2000.

 

 

 

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[1] “Para garantir o acesso ao juiz e facilitar o acesso à jurisdição, devem ser instalados serviços de informação nos tribunais, com ampliação do direito dos sindicatos e associações, para interpor recursos, evitando que o custo da justiça tenha efeito dissuasório na procura da mesma.” (BARACHO, 1995: 39)

 

 

 

[2] “Il diritto alla tutela giurisdizionale va ascritto tra i principi supremi del nostro ordinamento costituzionale, in cui è intimamente connesso con lo stesso principio di democrazia l’assicurare a tutti e sempre, per qualsiasi controversia, un giudice e un giudizio...in senso proprio.” (ANDOLINA, VIGNERA, 1990: 61)

 

 

 

[3] “O devido processo requer que a parte, provocada por atuações judiciais, tenha oportunidade de ser ouvida, antes que haja uma decisão final. Estas circunstâncias incluem o direito de apresentar argumentos, testemunhas ou provas que possam ser pertinentes ao caso. A audiência deve ser celebrada ante um tribunal justo e imparcial.” (BARACHO, 1980,81,82: 90)

 

 

 

 

 

[4] “Assim, num processo ‘cooperativo’ de ouvir as partes envolvidas no caso, dando vez ao princípio do devido processo legal e seus corolários lógicos – ampla defesa e contraditório, todos os argumentos importantes à solução do caso surgirão à apreciação do magistrado.” (SOUZA CRUZ, 2000: 34)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[5] “Art.1º. – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

 

                ..................................................................................................................

 

III – a dignidade da pessoa humana.”

 

 

 

http://www.teiajuridica.com/jrproc.htm