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A suspensão obrigatória do processo

(Reflexão sobre a interpretação e aplicação do art. 366 do CPP)

Afrânio Silva Jardim *

Em que pese entendimento doutrinário e jurisprudencial em sentido contrário, entendemos que o art. 366 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 9.271, de 17 de abril de 1996, tem aplicação no caso em espécie, determinando a suspensão deste processo.

Na verdade, o entendimento predominante sobre esta questão parte de uma premissa equivocada, qual seja, que a aplicação da regra que determina a suspensão dos processos já instaurados por crimes anteriores à acima referida lei, importaria em cindir a norma jurídica e, desta forma, não poderia a parte penal da norma deixar de ser aplicada, porque prejudicial ao réu.

Não se deve confundir, data venia, artigo de lei com norma jurídica. Um artigo de determinado Código pode veicular inúmeras normas jurídicas, como acontece nos chamados tipos mistos alternativos (art. 12 e 16 da Lei 6368/76, por exemplo). Nestes, cada núcleo verbal é uma regra proibitiva, preceito ou norma jurídica.

Da leitura do art. 366 do CPP, se depreendem duas normas jurídicas, dois preceitos, ou seja, duas regras de conduta regulada pelo legislador: uma, de natureza processual penal, dirigida ao juiz, determinando a suspensão do processo, vez que a citação por edital é uma citação fícta e outra, norma de direito penal, regulando a suspensão do prazo prescricional, matéria pertinente ao chamado ius puniendi do Estado.

É fácil perceber que a norma processual tem referencial como referencial o ato processual, não o crime. Por isto, não há que se falar em lhe dar aplicação retroativa, porque o crime foi anterior à sua vigência. Seria aplicação retroativa se a norma processual viesse a violar atos processuais já praticados, o que poderia violar direitos subjetivos processuais já adquiridos pelas partes. Por isto se diz que a norma processual tem aplicação imediata e não retroativa, porque passa ela a regular os atos processuais futuros daquele processo em curso. Já a norma penal, incriminadora ou não, regula a conduta delituosa e seus efeitos penais, motivo pelo que só pode ser aplicada a fatos pretéritos se mais benéfica para o réu.

Assim, se o art. 366 do CPP tem aplicação integral diante de crimes praticados após a vigência da lei que lhe deu nova redação, com relação aos ocorridos antes, a norma penal que regula o decurso da prescrição, não pode ser aplicada a fatos passados, porque mais gravosa para o réu. Entretanto, a norma processual deste artigo, que nada tem a ver com o crime, deve ser imediatamente aplicada, para que se vede a prática de atos processuais quando não se sabe se o réu tem efetivo conhecimento da acusação contra ele formulada.

Em resumo, entendemos que o art. 366 do CPP não pode ter sua vigência negada, sendo de imediato aplicada a norma processual que ele contém. Repetindo, tal dispositivo legal traz em seu bojo duas regras de comportamento, de natureza diversas, que têm aplicação e incidências diferentes. Não se cuida, na espécie, de cindir a norma, mas, sim, dar eficácia a uma das normas do artigo comentado.

Ademais, hoje já se entende ser incompatível com o sistema constitucional vigente, que assegura expressamente o contraditório e a ampla defesa, bem como incompatível com os princípios que fundamentam o Estado de Direito Americano, alguém ser processado sem que tenha sido efetivamente cientificado da acusação e da existência do processo instaurado contra si. Tratados internacionais firmados com o Brasil, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vedam a adoção pelos seus signatários de sistema processual penal que admita processo sem que o réu tenha dele tomado conhecimento expresso. Destarte, a incidência da norma jurídica internacional, na espécie, é de rigor, vez que encontra, inclusive, suporte constitucional.

Nem se diga que tal entendimento favorece a impunidade. Primeiro, porque o Código de Processo Penal, quando trata do rito do Tribunal do Júri, de há muito, prevê a suspensão do processo do réu pronunciado que não é intimado pessoalmente da pronúncia, não determinando a suspensão do prazo da prescrição. A impunidade decorre, sim, da inoperância do estado em localizar e prender o réu. De nada vale processar e condenar alguém, violando-se o contraditório, e a ampla defesa, que, no caso, é meramente formal, e depois restar o mandado de prisão sem cumprimento, porque não se localiza o réu. Há milhares de mandados de prisão para serem cumpridos e, talvez, a impunidade decorra disto e não de garantir ao réu o devido processo legal.

É preciso compreender que o devido processo legal é uma auto-limitação ao poder punitivo do Estado. Não é valioso punir-se a qualquer preço. O processo é a "regra do jogo", à qual o Estado de Direito se submete para a tutela de valores outros que lhe são caros. Já se disse que tal opção leva à absolvição de culpados, mas é certo que a opção em sentido contrário seria pior porque levaria à condenação de inocentes. O processo penal é instrumento de aplicação do direito penal, mas também é instrumento para tonar efetivos outros valores, pois, como deixou dito a Profa. Ada Pellegrini Grinover, o processo, além de ser instrumento técnico, também é um instrumento ético. Neste sentido, criando e desenvolvendo a visão garantista do processo penal democrático, veja-se a moderna lição do jurista italiano Luigi Ferrajoli em Derecho y razón. Teoria del garantismo penal. Madrid, Ed. Trotta, 2ª ed. 1997, tradução de Andrés Ibáñez e outros.

Mesmo com relação aos crimes ocorridos após a vigência da nova redação do art. 366 do CPP, a aplicação das duas normas nele contidas poderia ser questionada em termos constitucionais. Há quem entenda que a suspensão do decurso do prazo prescricional ad eternum estaria em conflito com a Constituição, vez que, indiretamente, tornaria imprescritível aquela conduta narrrada na denúncia ou queixa. A Constituição só diz imprescritíveis alguns crimes que expressamente aponta no art. 5º, incisos XLII e XLIV, sendo que os demais, a contrario sensu, são prescritíveis.

A criação feita por parte da doutrina de prazos da suspensão da prescrição que não estão previstos na lei é artificial e arbitrária. Aí, sim, estar-se-ia legislando no lugar do legislador.

Por derradeiro, cabe afastar o argumento de que a correta interpretação e aplicação do atual art. 366 do CPP iria beneficiar o réu que se encontra foragido, estimulando tal prática, vale dizer, "o réu se beneficiaria de sua própria torpeza". Primeiro, porque expressamente o art. 366 exige do juiz o exame da presença dos requisitos para a prisão preventiva que, na prática, se torna quase que inarredável, tendo em vista o periculum in mora (conveniência da instrução criminal que não pode ser realizada com o processo suspenso e garantia da aplicação da lei penal) , presente também o fumus boni iuris decorrente de indícios da autoria e prova da existência material da infração. Apenas nos crimes apenados com detenção, teríamos as restrições do art. 313 do CPP. Segundo, parte-se de uma petição de princípio, ou seja, dá-se como provado justamente aquilo que dever-se-ia provar. Em outras palavras, não se pode afirmar que o réu está ocultando-se, porque não se tem prova nos autos de que ele foi citado, de que ele sabe da acusação pendente em Juízo. Aliás, se suspende o processo justamente por isto, não se sabe se o réu tem conhecimento de que está sendo acusado.

Para finalizar, entendemos ilegal e inconstitucional prosseguir o processo para coleta da prova oral, sob o pretexto de que ela é sempre urgente. Tal entendimento implicaria em negar vigência concreta ao art. 366 do CPP, porque importaria em suspender tão somente o prazo das alegações finais. O que a lei deseja, evidentemente, é que a fase mais importante do processo, ou seja, a instrutória, não se realize sem que o réu dela tenha conhecimento, sem que o réu tenha contato com o Defensor Público, fornecendo-lhe o nome de testemunhas e informações sobre as testemunhas arroladas na denúncia ou na queixa, permitindo-lhe, à época própria, requisitar diligências. Tudo isto fica prejudicado se o processo não for suspenso após a citação por edital, consoante determina a lei. Dizer-se que toda prova oral é urgente é sofismar com o sistema processual. Tanto assim não é que, quando q prova oral for realmente urgente, naquele caso específico, caberá à parte requerer a medida cautelar de antecipação de prova testemunhal, prevista no art. 255 do CPP.

Lamentavelmente, a orientação jurisprudencial que dá ao art. 366 do CPP aplicação de constitucionalidade duvidosa resulta da aceitação a crítica de trabalho doutrinário publicado por autor de renome, que costuma publicar seus textos sem mais maturação, por vezes, no período de vacatio legis da própria lei. Restou consolidado o chamado "argumento de autoridade". Como tem dito o Desembargador Amilton Bueno de Carvalho, é preciso que os operadores jurídicos deixem de copiar para que possam criar, sempre na perspectiva de busca da efetiva Justiça que, querendo, se pode alcançar através da adoção dos Princípios extraídos de uma Constituição Democrática.


* Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Membro e Livre Docente em Direito Processual, Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, da Universidade Gama Filho e da Universidade Cândido Mendes, Autor do Livro "Direito Processual Penal", 7ª edição, Editora Forense.

Artigo retirado de: http://www.oab-rj.com.br/mage/artjurid02.htm