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A inconstitucionalidade por omissão e o provedor de justiça

Professor Jorge Miranda

Agradeço muito o convite para intervir na presente sessão comemorativa do 20º aniversário do Provedor do Justiça. Representa uma grande honra para mim, a mais de um título.

A Provedoria de Justiça é uma das instituições mais marcantes do Estado de Direito democrático português. Proposta ainda antes de 1974 por juristas ilustres preocupados com a garantia dos direitos fundamentais, seria lançada em 1975, sob o impulso do grande Ministro da Justiça que foi Salgado Zenha. Só se tornaria, porém, definitiva com a sua consagração na Lei Fundamental de 1976 - a primeira ou uma das primeiras Constituições a formalizar o Ombudsman.

Por isso, este é, de certa sorte, um momento de celebração do próprio Estado de Direito democrático e da Constituição que o afirma e estrutura; de certo modo já, o primeiro acto - dos muitos que, espero, venham a realizar-se nos próximos meses - evocativos da aprovação da Constituição. E, por isso, também, mostra-se altamente significativo que ele ocorra no Palácio de São Bento, onde tanto perpassam as memórias da Assembleia

Constituinte. Mais e melhor, de resto, do que outras, a instituição do Provedor de Justiça foi bem acolhida e enraizou-se rapidamente na consciência jurídica dos Portugueses, para o que contribuiram, de forma decisiva, as ilustres personalidades que, sucedendo-se no exercício do cargo, lhe deram vida. É o que se verifica em todos os domínios da sua competência, e bem assim no domínio do controlo da inconstitucionalidade por omissão - o tema sobre o qual sou chamado hoje a proferir algumas, não longas e não exaustivas, palavras.

Numa primeira parte da minha exposição, lembrarei alguns conceitos e aspectos gerais do controlo da inconstitucionalidade por omissão. Numa segunda parte, procurarei situar aí o poder de iniciativa do Provedor de Justiça. Referir-me-ei depois à prática até agora experimentada. Por último - e, por sinal, à semelhança do que fiz há dez anos em sessão semelhante a esta - enunciarei as normas constitucionais pertinentes a direitos fundamentais (umas vindas de 1976, outras introduzidas por revisão constitucional) ainda não tornadas exequíveis por lei ordinária e, relativamente às quais, portanto, ocorre omissão.


I

Como se sabe, a existência de omissões juridicamente relevantes é um fenómeno que se encontra em diversos sectores do ordenamento e, em particular, no Direito constitucional. Ele verifica-se sempre que, mandando a norma reguladora de certa relação ou situação praticar certo acto ou certa actividade nas condições que estabelece, o destinatário não o faça nos termos exigidos, não o faça em tempo útil, e a esse comportamento se liguem determinadas consequências.

Relativamente a quaisquer funções do Estado objecto de disciplina pela Constituição, não custa surpreender manifestações possíveis - e não apenas teóricas - de comportamentos omissivos, sejam omissões de actos normativos, sejam de actos de conteúdo não normativo ou individual e concreto. Sucede isto com a função legislativa e com a função política ou de governo e, em alguns casos, com a revisão constitucional; sucede isto com a função administrativa e pode suceder até com a função jurisdicional. Tais comportamentos vêm, assim, a ser inconstitucionais ou ilegais, consoante os casos, e podem ainda tornar-se ilícitos.

Em especial, a inconstitucionalidade por omissão de actos legislativos (ou, se se preferir, de normas legislativas) exibe-se fenómeno jurídico ligado à estrutura de determinadas normas constitucionais, mas cuja relevância varia com os tipos de Constituições e com as premissas políticas e jurídicas dominantes. Se nas Constituições liberais quase não poderia manifestar-se, tende a avultar fortemente nas Constituições de índole social, com direitos positivos do séc.XX.

Por omissão entende-se a falta de medidas legislativas necessárias, falta esta que pode ser total ou parcial. A violação da Constituição, na verdade, provem umas vezes da completa inércia do legislador e outras vezes da sua deficiente actividade, competindo ao órgão de fiscalização pronunciar-se sobre a adequação da norma legal à norma constitucional. O juízo da inconstitucionalidade por omissão traduz-se num juízo sobre o tempo em que deveria ser produzida a lei: nenhuma omissão pode ser descrita em abstracto, mas somente em concreto, balizada entre certos factos. A ausência ou a insuficiência da norma legal não pode ser separada do seu tempo histórico, assinalado pela necessidade de produção legislativa e cuja duração, maior ou menor, ou será pré-fixada - muito raramente - pela própria Constituição ou dependente da natureza das coisas (ou seja, da natureza da norma constitucional não exequível por si mesma confrontada com as situações da vida, inclusive a situação que, à sua margem, esteja, por acção, o legislador ordinário a criar).

Assim, o órgão de fiscalização, sem se substituir ao órgão legislativo, tem de medir e interpretar o tempo decorrido, esse tempo que fora dado ao órgão legislativo (competente) para emitir a lei; e terá de concluir pela omissão, sempre que, tudo ponderado, reconhecer que o legislador não só podia como devia ter emitido a norma legal, tendo em conta as circunstâncias ou situações em que se colocou ou foi colocado. Pois o significado último da inconstitucionalidade por omissão consiste no afastamento, por omissão, por parte do legislador ordinário, dos critérios e valores da norma constitucional não exequível; e esse afastamento só pode ser reconhecido no tempo concreto em que um e outro se movam.

No limite, dir-se-ia que a inconstitucionalidade por omissão se reconduz a uma inconstitucionalidade por acção numa acepção latíssima - por reverter na persistência de regras legislativas e de comportamentos em contradição com o sentido objectivo da norma constitucional ou da Constituição.

Por outro lado, algumas omissões parciais implicam, desde logo, inconstitucionalidade por acção, por violação do princípio da igualdade, sempre que acarretem um tratamento mais favorável ou desfavorável prestado a certas pessoas ou a certas categorias de pessoas, e não a todas as que, estando em situação idêntica ou semelhante, deveriam também ser contempladas do mesmo modo pela lei. É então que, reagindo contra o arbítrio, mais se propicia a intervenção dos tribunais a declararem inconstitucionais as normas legais que contenham essas omissões ou, eventualmente, a estenderem ou a reduzirem o seu âmbito. E outrossim (conforme tenho sustentado e o nosso Tribunal Constitucional reconheceu em 1984 no acórdão sobre o serviço nacional de saúde), a revogação da lei que dê exequibilidade a certa norma constitucional, sem ser acompanhada de emissão de nova lei, determina inconstitucionalidade material do acto revogatório.

Apesar de a lógica jurídico-constitucional apontar para a necessidade, por coerência com os postulados da constitucionalidade, de existência de fiscalização das omissões, esta tem assumido um desenvolvimento muitíssimo menor do que o da fiscalização das acções inconstitucionais do poder político. Nem podia deixar de ser assim (independentemente de quaisquer pré-entendimentos) por se localizar nas fronteiras da liberdade apanágio dos órgãos legislativos e do dever de legislar a que, apenas em casos contados, ficam adstritos.

Na Alemanha, na Áustria, na Itália e até na Espanha, na ausência de norma constitucional expressa que institua a fiscalização, os respectivos Tribunais Constitucionais têm conseguido chegar a resultados muito semelhantes, através de técnicas muito apuradas de interpretação e integração (donde, as chamadas sentenças aditivas, criativas ou apelativas): a partir da apreciação da inconstitucionalidade por acção, fazem verdadeira apreciação da inconstitucionalidade não já por aquilo que prescreve, mas sim por aquilo que não prescreve.

Também nos Estados Unidos, os tribunais têm exercido, com frequência, o poder de solicitar aos órgãos legislativos que aprovem as leis que consideram necessárias; declarando direitos constitucionais ou fundamentais dos cidadãos, esperam que o Congresso ou as assembleias legislativas dos Estados adoptem, de seguida, as medidas legislativas destinadas a assegurar o seu exercício. Ou é o próprio Supremo Tribunal que "descobre" um novo direito, ao abrigo do IX Aditamento (numa interpretação criadora, aliás contestada por certa corrente).

Contudo, a primeira Constituição que terá contemplado ex professo a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão terá sido a jugoslava de 1974 (com o seu Art. 377º), a que se seguiram a Constituição portuguesa de 1976 (Art. 279º, depois 283º) - ao que se supõe sem conhecimento daquela; e a brasileira de 1988 (Arts. 103º, § 2º) - esta, sim, sob influência da portuguesa. E a nossa Lei Fundamental vai ao ponto de elevar a fiscalização a limite material de revisão constitucional [Art. 290º, alínea m), hoje 288º, alínea l), 2ª parte].

Conexos em 1976 com o Conselho da Revolução e a Comissão Constitucional, os mecanismos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão seriam modificados profundamente em 1982 com a supressão desses órgãos e a criação do Tribunal Constitucional. De fiscalização mais política que jurídica passaria a fiscalização essencialmente jurídica. Com efeito:

1) No texto de 1976, a fiscalização competia ao Conselho da Revolução oficiosamente, como garante do cumprimento da Constituição [Arts. 146º, alínea b), e 279º]; no texto de 1982, carece da iniciativa de certos órgãos - entre os quais o Provedor de Justiça (Art. 283º, nº 1).

2) No texto de 1976, o Conselho de Revolução decidia precedendo parecer da Comissão Constitucional [Art. 284º, alínea b)]; no texto de 1982, o Tribunal Constitucional aprecia só por si.

3) No texto de 1976, verificada a existência da inconstitucionalidade por omissão, era a ser dirigida uma recomendação aos órgãos legislativos competentes (art. 279º); no texto de 1982, o Tribunal Constitucional limita-se a dar disso conhecimento ao órgão legislativo competente (Art. 283º, nº 2).

4) No texto de 1976, o Conselho da Revolução não era obrigado a formular a recomendação (podia formulá-la); e como somente através dela era verificada a inconstitucionalidade por omissão, podia esta, assim, apesar do processo, não vir a ser declarada; no texto de 1982, verificada a existência da inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional tem de dar conhecimento da omissão ao órgão legislativo - além de que a sua decisão é publicada no Diário da República (Art. 122º, nº 1, alínea g).

A fiscalização não possui carácter preventivo, nem substitutivo. Não tem carácter preventivo, mas sim natureza de fiscalização a posteriori, porque o Tribunal Constitucional (como, anteriormente, o Conselho da Revolução) não interfere na formação de quaisquer actos e só pode agir em consequência duma omissão juridicamente relevante a cujo reconhecimento tem de proceder. Não tem carácter substitutivo, porque não pode o Tribunal adoptar as medidas que repute necessárias, ainda quando o órgão legislativo, ao qual tenha sido comunicada a verificação, não supra a omissão. Seria, no entanto, erróneo assimilar a verificação da existência da inconstitucionalidade por omissão à declaração de inconstitucionalidade (por acção). Uma coisa é declarar inválida ou ineficaz uma norma com os efeitos que isso produz; outra coisa declarar que falta uma norma que não deveria faltar.

A verificação da existência de inconstitucionalidade por omissão não altera a ordem jurídica, circunscreve-se a factor - a juntar, provavelmente, a outros - susceptível de levar os órgãos legislativos a transformar o seu comportamento de negativo em positivo. E é assim, por uma necessidade de equilíbro entre o princípio da garantia da Constituição, encarnado no Tribunal Constitucional e o princípio democrático encarnado nos órgãos legislativos; é assim, por decorrência do Estado de Direito democrático - aquele que opera a síntese desses tais princípios.


II

O Provedor de Justiça configura-se primordialmente como órgão de defesa e promoção dos direitos e de outras situações jurídicas subjectivas dos cidadãos. Não é por acaso que aparece, no texto constitucional, em sede de princípios gerais de direitos fundamentais e que é eleito pela Assembleia da República, o Parlamento dotado de reserva de competência legislativa sobre direitos, liberdades e garantias; e a sua presença no Conselho de Estado justifica-se em virtude dessa sua razão de ser, não em virtude de qualquer autónoma ou diferente função política.

A faculdade de iniciativa da fiscalização da inconstitucionalidade tanto por acção como por omissão que lhe conferem os Arts. 281º e 283º prende-se, sem dúvida, ao Art. 23º (primitivo Art. 24º), que fala em "acções ou omissões dos poderes públicos" - seja essa faculdade concretizada na sequência de queixa de um cidadão ou dirigida à garantia objectiva da ordem constitucional de direitos fundamentais. E ela torna-se ainda mais necessária, por não haver no Direito português algo de comparável ao recurso de amparo, à Verfassungsbeschwerde ou ao mandado de injunção brasileiro.

Contudo, aquando dos debates da revisão de 1982, surgiu, a esse propósito, uma divisão de opiniões: eu próprio (então Deputado), Luís Nunes de Almeida e Vital Moreira preconizámos a atribuição de iniciativa ao Provedor, ao passo que Costa Andrade declarava que esse tipo de funções não seria adequada ao seu estatuto. Felizmente, prevaleceria um consenso favorável. De resto, se não fosse o Provedor de Justiça, desde esse ano, a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão teria ficado paralisada ou feita letra morta, porque nunca os outros órgãos de iniciativa a puseram em prática até agora (o Presidente da República talvez por receio de interferir, no poder legislativo; e os presidentes das assembleias legislativas regionais, por menor atenção às virtualidades do instituto).

Seria pensável de jure condendo uma espécie de fiscalização concreta. Poderia ser o recurso de decisões dos tribunais que denegassem direitos não regulamentados ou não densificados legislativamente; ou, pelo menos, a subida obrigatória ao Tribunal Constitucional , para mero efeito de verificação da inconstitucionalidade por omissão, se questões relativas a direitos fundamentais que os tribunais não pudessem efectivar por falta de lei adequada ou suficiente. Até tal reforma (que exigiria lei constitucional), o único meio ao dispor dos cidadãos continua sendo a queixa ou a representação perante o Provedor de Justiça.

A ligação dos poderes do Provedor à defesa dos direitos dos cidadãos - à defesa de quaisquer direitos, e não somente de direitos fundamentais - acarreta um corolário: que o Provedor não deve exercer o seu poder de iniciativa quando não estejam em causa, directa ou indirectamente, tais direitos. O Provedor de Justiça não pode ser considerado um órgão com competência genérica de iniciativa como o Presidente da República, Nem se compreenderia, à face do seu perfil constitucional e sem embargo do silêncio dos Arts. 281º e 283º, que ele pudesse vir a requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão das normas legislativas atinentes às finanças das regiões autónomas [Art. 229º, nº 1, alínea i)], à criação em concreto das regiões administrativas (Arts. 255º e segs.) ou à descentralização e à desconcentração da Administração pública (Arts. 6º e 267º, nº 1).

Limite objectivo não menos claro ao poder de iniciativa resulta da delimitação restritiva da inconstitucionalidade por omissão relevante para efeito de controlo. Como a fiscalização apenas tem por objecto, de harmonia com o Art. 283º, medidas legislativas destinadas a tornar exequíveis normas constitucionais não exequíveis por si mesmas, do âmbito do preceito ficam afastadas:

a) A omissão de leis internas para dar execução a tratados internacionais ou para proceder à transposição para a ordem interna de directivas da Comunidade Europeia;

b) A omissão das leis das grandes opções do plano a médio prazo ou anual (Arts. 92º e segs.);

c) A omissão da lei do orçamento (Arts. 108º e 109º);

d) A omissão de aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo sobre questões objecto de referendo político vinculativo com resposta positiva (Art. 118º);

e) A omissão de decreto-lei de desenvolvimento de lei de bases [Art. 201º, nº 1, alínea c), e nº3];

f) A omissão de regulamento de execução de actos legislativos.

Não havendo lugar a fiscalização, tão pouco pode haver lugar à correspondente iniciativa.

O princípio da não tipicidade ou da cláusula aberta dos direitos fundamentais implica não só que a lei ordinária pode criar novos direitos como pode alargar a tutela dos direitos para além do regime constitucionalmente estabelecido.

Assim, segundo o Art. 20º, nº 1, alínea b) do actual estatuto do Provedor de Justiça (constante da Lei nº 9/91, de 9 de Abril), cabe ao Provedor assinalar deficiências da legislação e emitir recomendações para a sua interpretação, alteração ou revogação ou sugestões para a elaboração de nova legislação, as quais serão enviadas ao Presidente da Assembleia da República, ao Primeiro Ministro e aos Ministros directamente interessados e, igualmente, se for caso disso, aos presidentes das assembleias legislativas regionais ou aos presidentes dos governos regionais.

Ora, como distinguir estas formas de actuação do Provedor de Justiça da actuação mediante a iniciativa de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão? Não haverá nela uma duplicação? Não há tal duplicação. São coisas diversas, faculdades diferentes, se bem que complementares e tendo de ser articuladas com critérios de razoabilidade e de eficácia.

A fiscalização da inconstitucionalidade por omissão pressupõe a ausência de lei que confira exequibilidade a normas (programáticas ou preceptivas) não exequíveis por si mesmas - quer dizer, normas constitucionais que, para adquirirem plena efectividade e conformarem as situações e relações sociais, dependem da interposição complementadora do legislador. A formulação de recomendações ou de sugestões, ao invés, pressupõe a existência de lei - de lei que o Provedor reputa deficiente ou inconveniente.

O Provedor não pode fazer recomendações ou sugestões aos órgãos legislativos relativamente a normas constitucionais não exequíveis, porque isso teria de assentar numa competência de conhecimento da inconstitucionalidade por omissão que pertence, em exclusivo, ao Tribunal Constitucional. Se entender que falta a necessária lei, o Provedor não poderá prescindir da indagação a cargo do Tribunal (assim como, em contrapartida, fora desta hipótese, não faria sentido que se lhe dirigisse). Algumas dificuldades apenas poderão suscitar-se quando se trate de omissões parciais. O princípio da competência obriga; e, em última análise, a competência constitucional do Tribunal haveria sempre de primar sobre a competência legal do Provedor.


III

Têm sido poucas as vezes em que foram desencadeados os mecanismos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão desde 1976 - em contraste com as dezenas em que foram desencadeados os da fiscalização da inconstitucionalidade por acção, preventiva ou sucessiva, e com as centenas de recursos e decisões na fiscalização concreta. No primeiro período constitucional (até 1982), a Comissão Constitucional não foi chamada a emitir parecer senão seis vezes e só em dois casos (quanto a organizações de ideologia fascista e quanto a trabalhadores do serviço doméstico) concluiu pela ocorrência da inconstitucionalidade e o Conselho da Revolução proferiu a respectiva recomendação. No segundo período constitucional (de 1982 aos dias de hoje) ainda foram mais escassas as decisões do Tribunal Constitucional neste campo:

- Acórdão nº 182/89, de 1 de Fevereiro (sobre direitos dos cidadãos perante a utilização da informática);

- Acórdão nº 276/89, de 28 de Fevereiro (sobre crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos);

- Acórdão nº 36/90, de 14 de Fevereiro (sobre referendos ou consultas directas aos cidadãos a nível local);

- Acórdão nº 359/91, de 9 de Julho (sobre uniões de facto, e transmissão do direito ao arrendamento);

- Acórdão nº 638/95, de 15 de Novembro (sobre acção popular).

Somente no acórdão nº 182/89 o Tribunal Constitucional considerou que havia inconstitucionalidade. Vale a pena recordar, muito sumariamente, as cinco decisões do Tribunal - todas a requerimento do Provedor de Justiça - e as circunstâncias que as rodearam. No primeiro caso, após a emissão do acórdão, a Assembleia da República apressou-se a aprovar a lei destinada a suprir a omissão, atalhando, pois, à sua inércia anterior. Ou seja: a fiscalização funcionou com êxito. No segundo caso - em que não se discutia matéria específica de direitos fundamentais, mas correlativa (porque pode haver responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos por violação de direitos, liberdades e garantias) - quando o Tribunal Constitucional decidiu já tinha sido publicada a lei. O processo de fiscalização terá sido mais demorado que o procedimento parlamentar.

Quanto aos referendos locais - que envolvem direitos fundamentais por afectarem a participação dos cidadãos - de igual modo o Tribunal Constitucional afirmou inexistir a inconstitucionalidade, na medida em que fora já votado na generalidade um projecto de lei sobre a matéria. Seguiu uma posição por mim sustentada nesse tempo e que, depois, abandonei, por aprofundamento do conceito de omissão e por receio de atrasos e manipulações nos procedimentos legislativos.

No quarto caso - talvez o mais interessante - o problema tinha que ver com a transmissão do direito ao arrendamento quando houvesse filhos menores. O Supremo Tribunal de Justiça, por assento, interpretara o art. 1110º do Código Civil excluindo as uniões de facto, e o Provedor de Justiça veio impugná-lo com base no art. 36º, nº 4 da Constituição (o qual estatui a regra da não discriminação dos filhos, independentemente de os pais serem ou não casados). Mas, ao mesmo tempo, o Provedor requereu que fosse verificada a inconstitucionalidade por omissão, por aquele preceito do Código Civil não prever as uniões de facto. Foi a única vez até agora em que se cumularam os dois pedidos e, embora com dúvidas, admito que fosse possível fazê-lo por um princípio de economia processual. De todo o modo, o Tribunal Constitucional concluiu pela inexistência de inconstitucionalidade por omissão - precisamente por ter declarado inconstitucional o assento.

Segundo o Tribunal Constitucional, do Art. 36º, nº 4 da Constituição não se extrairia uma imposição concreta dirigida ao legislador em termos de este se encontrar obrigado a agir. Em contrapartida, a declaração de inconstitucionalidade do assento levaria a que os interesses dos filhos passassem a ser respeitados, tanto sendo filhos nascidos no casamento como em uniões de facto; e, por isso, não haveria necessidade de intervenção legislativa.

Finalmente, em 1993 o Provedor de Justiça requereu a verificação do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o art. 52º, nº 3. Dois anos depois, tendo, entretanto, saído a Lei nº 83/95, o Tribunal considerou que ela não procedia. Mas o acórdão não operou uma análise muito completa do novo diploma legal, porque, se a tivesse levado a cabo, teria notado que ele apenas contempla a acção para defesa de interesses difusos; não a acção popular proprio sensu. Neste momento, está pendente no Tribunal um pedido de apreciação relativo à assistência material no desemprego a trabalhadores da função pública.


IV

A terminar seja-me permitido apresentar uma lista das omissões legislativas parciais ou totais que, a meu ver, ainda subsistem no terreno dos direitos fundamentais e que, quase vinte anos depois da entrada em vigor da Constituição, urgiria ultrapassar.

São omissões parciais as que se reportam:

a) À responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas (Art. 22º), particularmente por actos de função legislativa, por privação ilegal da liberdade física (Art. 27º, nº 5) e por condenação penal injusta (Art. 29º, nº 6, 2ª parte) - dada a inadequação ou a insuficiência dos diplomas aplicáveis, mormente o Decreto-lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967.

b) À concentração de empresas jornalísticas (Art. 38º, nº 4).

c) Aos direitos positivos das confissões religiosas não católicas (Arts. 41º, nº 4, e 13º), como o de acesso à rádio e à televisão, ao ensino nas escolas públicas ou à assistência nos hospitais e nos estabelecimentos de menores e prisionais - direitos esses que reclamam uma nova lei de liberdade religiosa que vá mais além das medidas avulsas adoptadas desde o acórdão nº 423/83, de 27 de Outubro.

d) Aos direitos dos militantes de partidos políticos (Arts. 10º, nº 2 e 51º, nº 1), designadamente direitos eleitorais - pois não se compreende um Estado democrático baseado nos partidos que não garanta, no interior destes, os mesmos princípios gerais de Direito eleitoral que proclama no Art. 116º.

e) Ao direito de acção popular proprio sensu (Art. 52º, nº 3, 1ª parte) - visto que a Lei nº 83/95 nada dispõe sobre a protecção do domínio público e do património do Estado, sobre o cumprimento do estatuto dos titulares de cargos políticos ou, em geral, sobre a salvaguarda da legalidade administrativa e, como bem tinha aduzido o Provedor no seu requerimento, os preceitos do Código Administrativo isoladamente significam uma restrição intolerável do alcance da Constituição.

f) À participação das comissões de trabalhadores na gestão das obras sociais da empresa [Art. 55º, n º5, alínea e)].

g) À igualdade de tratamento social dos alunos das escolas públicas, privadas e cooperativas [Arts. 74º, nº 3, alíneas d) e i), 75º, nº 2, e 76º, nº 1].

h) À intervenção do Estado na gestão de empresas privadas (Art. 87º, nº 2).

i) Ao enquadramento das associações públicas, sem prejuízo da liberdade de associação [Arts. 46º, 168º, nº 1, alínea u), e 267º, nº 3].

E são omissões totais as que se referem:

a) Ao direito de autogestão (Arts. 61º, nº 4, e 86º, nº 3);

b) À extinção dos partidos políticos [Art. 225º, nº 2, alínea e), 2ª parte].

Eis, por conseguinte, um vasto campo aberto ainda à intervenção do Provedor de Justiça. Estou seguro de que, tal como no passado, a respeito destes como a respeito de outros problemas, ele continuará, firme e prudente, ao serviço do Estado de Direito democrático e da cultura cívica dos Portugueses.