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PROCESSO ADMINISTRATIVO



Kiyoshi Harada


mestre em Direito e professor de Direito administrativo, tributário e financeiro; diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo




kharada@osite.com.br;






PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEPÓSITO PARA GARANTIA DE INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA E PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. MP Nº .621-36/98. ASPECTO DA ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE. EFEITOS DA SIMULTANEIDADE DO PROCESSO ADMINISTRATIVO E JUDICIAL

A Medida Provisória n. 1621-36/98, com base no parecer da PGFN/CAT Nº 2078/97, introduziu alterações aos artigos 33 e 43 do Decreto nº 70.235/72, que regula o processo administrativo fiscal na esfera federal (art. 32), e estabeleceu o prazo de 180 dias para a propositura de ação judicial de desconstituição da exigência fiscal fixada em primeira instância (art. 33). Curiosamente essa matéria é repetida na MP nº 1699-38/98, que instituiu o CADIN, Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor público federal, de tal sorte que, quando uma estiver caducando a outra estará no início de sua vigência. Penso que foi essa a idéia que levou o legislador palaciano a promover dupla disciplinação. Convém deixar assentado que o Decreto nº 70.235/72 tem força de lei, porque baixado por delegação contida no Decreto-lei nº 822/69.

Para justificar essas inovações o ilustrado parecerista sustentou que o depósito total ou parcial do valor reclamado, como condição para o recebimento do recurso, visa, de um lado, "a agilização na realização dos valores em disputa, por inibir as irresignações meramente protelatórias", e de outro lado, "fixaria considerável segurança quanto aos ingressos destes recursos nos cofres públicos, nos casos de manutenção da exigência fiscal". Quanto ao estabelecimento de prazo decadencial para ingresso em juízo o mesmo ilustrado parecerista aduziu que o depósito não basta para inibir "uma prática relativamente corriqueira de repetir em juízo os argumentos e óbices postos perante a Administração". Essa prática corriqueira, segundo o douto procurador da Fazenda Nacional, prejudicaria tanto o Judiciário "com acúmulo de autos nos escaninhos, ...com o atraso na prestação jurisdicional", bem como, a Administração "com a postergação do ingresso dos recursos acaso devidos". Acrescentou, ainda, que prejudicaria "a sociedade e o contribuinte com a perpetração do estado de insegurança jurídica".

Difícil de acreditar, mas essas justificativas estão todas elas expressas no parecer da PGFN/CAT 2078/97, publicado no DOU do dia 12-12-97, p. 29562, que embasou a edição da Medida Provisória enfocada.

Logo levantaram-se vozes contra essas inovações inoportunas, acoimadas de inconstitucionais. Parte da doutrina entende que a exigência de depósito para recurso fere o princípio constitucional da ampla defesa, ao passo que, a fixação de prazo decadencial de 180 dias para o exercício da ação afronta o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, insertos no art. 5º, incisos LV e XXXV da CF, respectivamente. Outros estudiosos entendem, ainda, que essas restrições vulneram, também, os princípios do devido processo legal e do contraditório. É possível que esses estudiosos tenham levado em conta os injurídicos argumentos alinhados no parecer da PGFN, por sinal, até contraditórios, que não se afinam com o estado de Direito. Só faltou propor a abolição do procedimento administrativo para agilizar o ingresso de recursos aos cofres públicos.

Examinemos em primeiro lugar, a questão do depósito para a garantia de instância administrativa. E esse exame há de ser feito à luz da MP nº 1621-36/98 ou da MP nº 1699-38/98, com total abstração das equivocadas colocações feitas no douto parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

O art. 32 da MP nº 1621-36/98 alterou os artigos 33 e 43 do Decreto 70.235/72 nos seguintes termos:

"Art. 33...................................................................
§ 1º - No caso em que for dado provimento a recurso de ofício, o prazo para a interposição de recurso voluntário começará a fluir da ciência, pelo sujeito passivo, da decisão proferida no julgamento do recurso de ofício. § 2º - Em qualquer caso, o recurso voluntário somente terá seguimento se o recorrente o instruir com prova do depósito de valor correspondente a, no mínimo, trinta por cento da exigência fiscal definida na decisão".

"Art. 43...........................................................................
§ 3º - Após a decisão final no processo administrativo fiscal, o valor depositado para fins de seguimento do recurso voluntário será: a) devolvido ao depositante, se aquela lhe for favorável;b) convertido em renda, devidamente deduzido do valor da exigência, se a decisão for contrária ao sujeito passivo e este não houver interposto ação judicial contra a exigência no prazo previsto na legislação. § 4º - Na hipótese de ter sido efetuado o depósito, ocorrendo a posterior propositura de ação judicial contra a exigência, a autoridade administrativa transferirá para conta à ordem do juiz da causa, mediante requisição deste, os valores depositados, que poderão ser complementados para efeito de suspensão da exigibilidade do crédito tributário".

Parece-me que apenas o princípio da ampla defesa tem pertinência com o tema sob exame. O princípio do devido processo legal estará satisfeito sempre que a lei estabelecer previamente o procedimento administrativo a ser observado. Seu objetivo é evitar que o aplicador da lei improvise regras a seu talante no curso do processo. O princípio do contraditório, também, estará satisfeito com a ciência dos fatos e da imputação com a respectiva fundamentação legal, à vista do processo, e a oportunidade que se dá ao sujeito passivo da obrigação tributária de contestar, de impugnar a pretensão do fisco. Assim, resta examinar o princípio da ampla defesa.

A garantia de instância não pode ser confundida com o princípio do solvet et repete, já abolido de longa data. Sua finalidade é a de preservar a Fazenda contra futura insolvência do devedor. Exatamente porque presume-se o estado de solvência do poder público a Instrução Normativa nº 93, de 3-8-98, da Secretaria da Receita Federal veio explicitar a inexigibilidade da prova do depósito, quando se tratar de recurso apresentado pela Fazenda Pública em geral, suas autarquias e fundações públicas. Não importa o que o parecerista da PGFN tenha dito para justificar tal medida. O importante é a análise serena da questão, sem paixões e sem extravasar do campo estrito do direito positivado.

Os opositores do depósito para garantia de instância recursal costumam invocar o art. 151, inciso III do CTN, o qual prescreve que "as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo" suspendem a exigibilidade do crédito tributário. Assim, argumentam que se o CTN, lei materialmente complementar, recepcionado pelo art. 146 da CF, prescreve a suspensão da exigibilidade do crédito tributário pela simples interposição de recurso, não poderia a MP, com força de lei ordinária, impor o depósito de 30% do valor do crédito tributário sob discussão.

Data maxima venia, há duplo equívoco nessa linha de argumentação. Em primeiro lugar, o art. 151 do CTN não está regulando as condições para a interposição de recurso. Como lei sobre leis de tributação está simplesmente estatuindo, em nível de norma geral, as hipóteses de suspensão do crédito tributário pelo advento da moratória, do depósito de seu montante integral e das reclamações e recursos nos termos da legislação tributária de cada entidade política. Da mesma forma que a moratória não decorre do CTN, mas da lei da entidade política interessada em sua concessão, cabe à lei da Fazenda Pública competente a disciplinação do processo e do procedimento em matéria de consultas, reclamações, defesas, impugnações ou recursos, estes com ou sem depósito para a garantia de instância, de conformidade com os critérios de oportunidade e conveniência. Toda essa matéria é de direito administrativo fiscal, cuja disciplina não pode ser invadida pelo legislador complementar, sob pena de inconstitucionalidade, porque privativa de cada esfera impositiva. Exatamente essa privatividade, na esfera administrativa, tem impedido a chamada codificação do Direito Administrativo. O citado inciso III não é auto aplicável. Cabe ao poder público competente disciplinar o seu processo administrativo fiscal, dispondo sobre como, quando e onde proceder o depósito, se exigido for. Foi o que fez o legislador palaciano relativamente ao processo administrativo fiscal da União. O que a lei ordinária ou MP não pode é modificar as três hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, previstas no art. 151 do CTN em caráter de norma geral. Em segundo lugar, o depósito exigido pela MP em questão não é para suspender a exigibilidade do crédito tributário, pois o depósito com essa finalidade já está prevista no inciso II do mesmo art. 151. Esse depósito, como antes assinalamos, objetiva prevenir a Fazenda Pública contra eventual insolvência do devedor no decorrer do processo administrativo fiscal. Apresentado o recurso, com ou sem depósito, o crédito tributário ficará ipso fato suspenso, por expressa determinação contida no inciso III do art. 151 do CTN, neste particular imodificável pela legislação ordinária em geral.

O que a jurisprudência não admite, e nem deve admitir, é a exigência prévia do depósito para ingresso em juízo, por afrontar o princípio da inafastabilidade da jurisdição. Outra coisa, bem diversa é a sua exigência em grau de recurso, em procedimento administrativo, quando já exercitado o princípio do contraditório, assim mesmo, limitado o depósito a 30% do débito. Dir-se-á que o contraditório mantém profunda interação com o princípio da ampla defesa, que envolve o direito a recursos. Sustenta-se que sem recurso o contribuinte não estaria exercitando plenamente o seu sagrado direito de defesa, porque decisões administrativas de primeira instância, normalmente, são favoráveis ao fisco. Somente por via do recurso, a ser apreciado pelo órgão colegiado de que participa o representante do contribuinte, é que o defendente teria a oportunidade de provar o seu ponto de vista. Certo. Só que depósito de 30% do valor da exigência fiscal, fixado em decisão de primeira instância, não limita nem restringe as hipóteses de recursos.

Até a primeira metade da década de sessenta a legislação tributária, em geral, exigia o depósito integral do débito desde a defesa de primeira instância administrativa; nem por isso essa legislação foi acoimada de inconstitucional ao longo de sua vigência. Ao contrário, inúmeras decisões dos diversos tribunais do País determinando a restituição, com juros e correção monetária, dos depósitos feitos para garantia de instância administrativa são bem indicativas da regularidade e validade desses depósitos. Aliás, o Supremo Tribunal Federal, inúmeras vezes, e em recentes acórdãos quer em grau de recurso extraordinário, quer em sede de Adin proclamou a tese de que o depósito prévio para admissibilidade do recurso administrativo não ofende o art. 5º, LV da CF. Além do julgado mencionado no parecer da PGFN (RE 210246-GO) pode-se acrescentar os seguintes: RREE ns.210.229/DF e 210.242/PA, Rel. Min. Carlos Velloso; RE 210.235/MG, Rel. Min. Maurício Correa; Adimc 1049/DF, Rel. Min. Carlos Velloso; RREE ns., 210234, 210369, 210380, 218752, 210248, 210370 etc.

As multas impostas no âmbito do INSS e da SUNAB sempre se sujeitaram ao regime do depósito prévio para recorrer. Nenhuma oposição há a respeito. Contudo, o princípio é o mesmo. A própria decisão judicial, no âmbito trabalhista, apesar do expresso princípio constitucional da universalidade da jurisdição, só comporta recurso mediante depósito das verbas incontroversas.

Outrossim, questão da má apreciação da defesa de primeira instância não tem pertinência com o tema sob análise. Se for arguir a inconstitucionalidade sempre que determinada norma ou lei estiver sendo mal aplicada por quem de direito, todo ordenamento jurídico deveria ser questionado. A solução para isso está na preparação de uma burocracia estável, sadia, competente e dedicada. E a reforma administrativa levada a efeito não só deixou de se preocupar com esse aspecto, como também, criou um obstáculo insuperável a esse desiderato à medida em que plantou a semente da intranquilidade e da instabilidade no seio do funcionalismo, pilar da burocracia, com a supressão do instituto da estabilidade.

Enfim, a questão da ampla defesa não pode ser examinada apenas no âmbito da formalidade dos recursos, nem sob o enfoque da quantidade de recursos, como ocorre na esfera do processo judicial, onde a numerosidade de procedimentos recursais está prejudicando a distribuição da justiça. O importante é investir na qualidade das decisões de primeira e Segunda instâncias, com contínuo aperfeiçoamento dos órgãos julgadores.

Examinemos, agora, a questão dos efeitos da simultaneidade do processo administrativo e do processo judicial. Dispõe o artigo 33 da MP sob análise:

"Art. 33 - O direito de pleitear judicialmente a desconstituição de exigência fiscal fixada pela primeira instância no julgamento de litígio em processo administrativo fiscal regulado pelo Decreto nº 70.235, de 1972, extingue-se com o decurso do prazo de 180 dias, contados da intimação da referida decisão.
§ 1º - No caso em que for dado provimento a recurso de ofício, o prazo previsto no caput começará a fluir a partir da ciência da primeira decisão contrária ao sujeito passivo.
§ 2º - ................................................................
§ 3º - A decisão administrativa final que eventualmente fixe exigência superior a definida pela primeira instância de julgamento, enseja a abertura de novo prazo, como previsto no caput, para desconstituição da exigência fiscal".

A redação do texto é falha e defeituosa podendo ensejar interpretação no sentido da tramitação simultânea de processo administrativo e de processo judicial. Essa redação desprimorosa, contudo, pode ser superada por via de interpretação lógica e sistemática. Aquele prazo de 180 dias, para invalidação judicial da decisão de primeira instância administrativa, aplica-se, obviamente, para a hipótese de renúncia ao recurso administrativo. Tanto é que, na hipótese de recurso ex ofício, se reformada a decisão, a partir dessa decisão passará fluir o referido prazo, conforme está expresso no § 1º do art. 33 retro transcrito. Irrelevante o que o douto parecerista da PGFN tenha pensado ou escrito ao apresentar a propositura legislativa. Elaborado o instrumento normativo, este passa a ter vontade própria devendo sujeitar-se à interpretação segundo as regras da hermenêutica. Essa medida, na realidade, irá contribuir para prevenir o ajuizamento simultâneo de duas ações conflitantes: a execução fiscal, de um lado, e a ação de anulação do débito fiscal, de outro lado. Nesse particular, o proponente da medida atirou no que viu e acertou no que não viu, alcançando, involuntariamente, uma finalidade positiva.

O estabelecimento de prazo decadencial para o exercício do direito à ação, independentemente das esdrúxulas razões invocadas no parecer da PGFN, nem de longe, arranha o princípio constitucional de acesso ao Judiciário. Tanto é assim que as hipóteses de decadência do direito à ação acham-se espraiadas por todo o ordenamento jurídico pátrio (mandado de segurança, renovatória, anulação de casamento, ação civil de reparação por abuso na manifestação de pensamento etc).
Na verdade, esse prazo decadencial de 180 dias é medida que se articula e se completa com a primeira medida, ou seja, a exigência do depósito de 30%. Mantida esta exigência, torna-se conveniente a manutenção do prazo decadencial. Realmente, ocorrendo o insucesso do recurso o depósito será convertido em renda, se inexistente ação judicial (art. 33, § 3º, "b"); se proposta ação judicial o depósito será transferido à disposição do juiz da causa (§ 4º do art. 33). Essa sistemática, que é racional, não seria exequível se a Fazenda tivesse que aguardar indefinidamente a decisão do sujeito passivo de recorrer ou não à via judicial.

Enfim, se o sujeito passivo renunciou ao seu direito de recorrer deve ingressar, desde logo, com ação judicial a menos que se conforme com a decisão administrativa de primeira instância. Se recorrer administrativamente o prazo de 180 dias para invalidação da decisão administrativa passará a fluir da última decisão que lhe for desfavorável. É a única interpretação cabível, visto que, a propositura de ação judicial no curso do recurso administrativo importaria na desistência daquele recurso, conforme prescreve o parágrafo único do art. 38 da Lei nº 6.830/80. É de se lembrar, no entanto, por oportuno, que o STF já manifestou entendimento de que a propositura de ação declaratória não implica na desistência do recurso administrativo, porque essa ação não corresponderia a qualquer daquelas previstas no citado art. 38 (RE 107698-RJ, Rel. Min. Neri da Silveira, DJ de 01.11.91, p. 15570). Nesse caso haveria, em tese, possibilidade de efeitos simultâneos. Porém, a decisão administrativa favorável ao contribuinte importaria no prejuízo da via judicial, pois cabe à Administração o auto controle de seus atos nada impedindo que, no exercício desse auto controle, proclame a insubsistência do auto de infração tributária.

Finalizando, ressalvada a questão da inconstitucionalidade seria desejável que essa garantia de instância administrativa, inconveniente e inoportuna sob todos os aspectos, fosse abolida mediante rejeição pelo Congresso Nacional da MP nº 1621-36/98.


Artigo retirado de: www.argumentum.com.br