LUIZ FLÁVIO GOMES
A CPI e a quebra do Sigilo Telefônico
As Comissões Parlamentares de Inquérito podem decretar a quebra do sigilo dos "dados telefônicos"? Têm poderes para isso? Esses "dados pessoais" estão protegidos pela Constituição brasileira de modo absoluto ou relativo? E poderiam, tais CPIs, determinar a "escuta telefônica" prevista na Lei nº 9.296/96? Essa Lei alcança inclusive os dados telefônicos ou tão-somente as comunicações telefônicas presentes, atuais?
Essas questões
acham-se no centro de uma polêmica (mais jurídica, que política)
que ganhou extraordinário destaque, desde o momento em que o Ministro
Carlos Velloso concedeu liminar em habeas corpus impetrado contra
ato da CPI dos títulos públicos (precatórios) que
determinou a quebra do sigilo dos "dados telefônicos" de várias
pessoas.
Desde logo
é preciso distinguir: uma coisa é a "comunicação
telefônica" em si, outra bem diferente são os registros pertinentes
às comunicações telefônicas, registros esses
que são documentados e armazenados pela companhia telefônica,
tais como: data da chamada telefônica, horário, número
do telefone chamado, duração do uso, valor da chamada, etc.
Pode-se dizer que esses registros configuram os "dados" escritos correspondentes
às comunicações telefônicas. Não são
"dados" no sentido utilizado pela ciência da informática ("informação
em forma codificada"), senão referências, registros de uma
comunicação telefônica, que atestam sua existência,
duração, destino, etc. Vêm estampados nas denominadas
"contas telefônicas", que também integram o amplo espectro
da "privacidade" da pessoa. A interceptação de uma comunicação
telefônica versa sobre algo que está ocorrendo, atual; já
a quebra do sigilo de dados telefônicos relaciona-se com chamadas
telefônicas pretéritas, já realizadas.
A primeira
questão (quebra do sigilo dos dados telefônicos) é
extremamente pertinente por duas razões: em primeiro lugar porque
a Constituição Federal distinguiu no inciso XII, do art.
5º, os dados das comunicações telefônicas; em
segundo lugar porque, aparentemente, conferiu àqueles uma tutela
absoluta (como se sabe, prima facie, tem-se a impressão de
que a Carta Magna só permitiu a quebra do sigilo das comunicações
telefônicas).
O ponto de
partida para o verdadeiro entendimento do assunto reside em reconhecer
a "relatividade" dos direitos fundamentais (muitos chamados de "liberdades
públicas" no antigo direito francês). "É cediço",
enfatiza Ada P. Grinover1, "na doutrina constitucional moderna, que as
liberdades públicas não podem ser entendidas em sentido absoluto,
em face da natural restrição resultante do princípio
da convivência das liberdades, pelo que não se permite que
qualquer delas seja exercida de modo danoso à ordem pública
e às liberdades alheias". Deve-se reconhecer, enfatizam alguns comentaristas
da Constituição de 19882, que o princípio do sigilo
absoluto, algumas vezes, não se coaduna com a realidade e a necessidade
sociais. Os danos pessoais, em conclusão, seja no momento de uma
comunicação (telefônica ou por outra forma), sejam
os armazenados (estanques), não gozam de sigilo absoluto.
Não
se pode negar, tal como destacou Ivette Senise Ferreira3, que "a referência
que o preceito constitucional (inc. XII) faz à inviolabilidade dos
dados vem atender aos reclamos da proteção da intimidade
contra a sua violação também pelos processos técnicos
da informática, que pode propiciar a devassa da vida privada através
da manipulação indiscriminada de informações
pessoais...". Especialmente os dados armazenados em meios informáticos
representam grave ameaça para a intimidade4. Mas muitas vezes justificam-se
limitações a esse direito, tanto pela prevalência em
alguns casos concretos do interesse público quanto pela "convivência"
das liberdades entre os particulares.
Exatamente
nesse sentido é o entendimento majoritário da doutrina, particularmente
quando a quebra do sigilo dos dados destina-se a uma investigação
criminal ou instrução processual penal5. Na jurisprudência,
acórdão da 3ª Turma do TRF da 2ª Região,
Rel. Valmir Peçanha6, versando precisamente sobre a quebra do sigilo
das "contas telefônicas", mantém sintonia com o que foi afirmado,
acrescentando, no entanto, a necessidade de uma "justa causa" para se definir
quando o interesse coletivo sobrepujará um direito ou garantia fundamental
do indivíduo. Não basta a simples invocação
do interesse público, é preciso demonstrar uma "justa causa"
e tudo está subordinado, ademais, a um devido processo legal.
Além
da mencionada "justa causa" (que diz respeito à proporcionalidade,
isto é, não é em qualquer caso que se deve decretar
a quebra do sigilo dos dados telefônicos, senão naqueles verdadeiramente
relevantes) urge, como se enfatizou, a observância do devido processo
legal. E esse devido processo legal começa, obviamente, pelo princípio
da legalidade. Logo, somente quando uma "lei" autoriza a quebra do sigilo
de dados é que o juiz pode determiná-la. Não concordamos,
com a devida venia, com a afirmação contida no acórdão
acima referido7, de que a quebra do sigilo de dados telefônicos não
exige lei regulamentadora. Na verdade, sem lei, nada pode o juiz autorizar.
Nenhum direito fundamental pode sofrer restrição sem a intervenção
do legislador (isto é, sem a interpositio legislatoris).
De qualquer modo, não são poucas as leis no Brasil que autorizam
a ingerência nos dados alheios. Assim, Código Tributário
Nacional, art. 198, Código de Processo Civil, art. 399, Lei Federal
nº 3.470/58, art. 54, Lei Complementar nº 75/93 (Lei Orgânica
do Ministério Público da União), Lei nº 8.625/93
(Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), etc.
Havendo requerimento do Ministério Público, por exemplo,
por força das suas leis orgânicas, já está atendido
o princípio da legalidade. E o outro princípio que o juiz
deve observar no momento da decisão é o da proporcionalidade.
É aplicável
a Lei ora comentada para a quebra do sigilo dos dados telefônicos?
Consoante a doutrina de Vicente Greco Filho8, deve ser aplicada a Lei nº
9.296/96 também para a quebra dos registros telefônicos existentes
nas concessionárias de serviços públicos, tais como
a lista de chamadas interurbanas, os números chamados para telefones
celulares, etc.
Ousamos discordar
de tão autorizada opinião9. Onde a lei diz "comunicações
telefônicas" não se pode ler "também" registros telefônicos.
O § 1º, do art. 6º, "No caso de a diligência possibilitar
a gravação...", dentre outros dispositivos, leva à
conclusão de que somente a comunicação pode ser interceptada.
É uma lei que cuidou das "comunicações" (atuais, presentes).
Não alcança, portanto, os registros telefônicos que
são "dados" (relacionados com comunicações telefônicas
passadas, pretéritas). Mas negar a incidência da Lei nº
9.296/96 no que concerne à quebra dos dados telefônicos, não
significa que eles não possam ser devassados. De outro lado, não
se pode refutar a idéia de que a Lei nº 9.296/96, no que concerne
aos requisitos, abrangência, limites, venha a servir de parâmetro
para o juiz (por causa do princípio da proporcionalidade) na hora
de se determinar a quebra do sigilo desses dados. Mas não foi sua
intenção disciplinar esse assunto. E não cabe analogia
em matéria de direitos fundamentais, que estão atrelados
ao princípio da legalidade estrita.
Em suma: os
dados telefônicos (registros pertinentes a chamadas pretéritas)
não contam com sigilo absoluto. Por ordem judicial pode ser quebrado
esse sigilo, mas sempre que houver autorização legal, distinta
da Lei nº 9.296/96 (como vimos). E o juiz deve ser cauteloso no momento
da autorização da quebra: deve atentar, sobretudo, para o
princípio da proporcionalidade (não é qualquer caso
de investigação criminal ou instrução penal
que justifica tal medida, tão invasora da intimidade alheia).
Por força
do art. 58, § 3º, da Constituição Federal, as Comissões
Parlamentares de Inquérito possuem poderes de investigação
próprios das autoridades judiciais. De outro lado, a Lei nº
1.579/52, art. 4º, possibilita-lhe a requisição de informações
de órgãos públicos. Isso significa que dados pessoais
de qualquer pessoa podem ser requisitados pela Comissão. Sendo assim,
cabe concluir: a quebra do sigilo dos dados telefônicos determinada
pela CPI conta com o amparo legal.
O que não
podem as CPIs é determinar a escuta ou interceptação
telefônica, que só pode ocorrer "para fins criminais", dentro
de uma investigação criminal ou dentro de uma instrução
processual penal. A CPI existe para apuração de fatos administrativos.
Não é uma investigação criminal. Não
se destina a apurar crimes nem a puni-los, pois essas atividades são
da competência dos poderes Executivo e Judiciário. Se no curso
de uma investigação administrativa vier a deparar com fatos
criminosos, dele dará ciência ao Ministério Público
(H.C. 71.039-RJ, STF, Rel. Paulo Brossard).
A Comissão
Parlamentar de Inquérito, em síntese, deve contar com meios
suficientes para o bom desempenho das suas atribuições. Seus
poderes são amplos, embora não ilimitados. A quebra do sigilo
de dados telefônicos não constitui excesso de poder. Apenas
alguns atos é que são da competência exclusiva do Poder
Judiciário: escuta telefônica e decretação de
prisão, por exemplo.
Luiz
Flávio Gomes é Juiz de Direito em São Paulo; Mestre
em Direito Penal pela USP e autor do livro Interceptação
Telefônica, RT, 1997, escrito em conjunto com Raúl Cervini.
1 Novas
tendências, no Direito Processual, Forense Universitário,
Rio de Janeiro, 1990, pág. 60.
2 V. A Constituição
do Brasil 1988, Price Waterhouse, SP, 1989, pág. 161.
3 A intimidade
e o Direito Penal, em RBCCrim. nº 5, pág. 102.
4 Sobre a preocupação
da tutela da intimidade diante da informática, v. Pilar Gómez
Pavón, La intimidad como objeto de proteccion penal, Akal,
Madrid, 1989, pág. 29 e ss.
5 Assim: José
F. Vidal de Souza, Temas atuais de Processo Penal, Copola Editora,
Campinas, 1994, pág. 131. V. ainda: Antonio Vital Ramos de Vasconcelos,
Proteção Constitucional ao Sigilo, em Revista da Faculdade
de Direito das FMU, nº 6, pág. 3 e ss.
6 V. RT 727,
pág. 608 e ss.
7 V. RT 727,
pág. 612.
8 Interceptação
telefônica, Saraiva, SP, 1996, pág. 6.
9 Coincidente
é o pensamento de Ivan de Lira Carvalho, em Enfoque Jurídico,
TRF da 1ª Região, nº 1, agosto/96, pág. 7.
CPI do apito: pizza com marmelada
Explode, no
País, mais um escândalo. Trata-se, desta vez, do envolvimento
de clubes de futebol – símbolo, alma e razão de ser do povo
brasileiro. O Tribunal Especial da CBF – Confederação Brasileira
de Futebol – em face das denúncias suscitadas pelo Jornal Nacional,
da Rede Globo, na edição do dia 7 de maio do corrente, envolvendo
o Presidente do CONAF (Comissão Nacional de Arbitragem de Futebol),
Ivens Mendes, acaba de instaurar inquérito para investigar os fatos.
O Presidente
da entidade, Ricardo Teixeira, encaminhou cópias da nota oficial
com o pedido de inquérito à FIFA e à Confederação
Sul-Americana de Futebol, visando "ir até às últimas
conseqüências". Paralelo a essas medidas administrativas, o
Deputado Federal e vice-Presidente do C.R. Vasco da Gama, Eurico Miranda,
encabeçando um grupo de outros parlamentares, propôs a instauração
de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, com vistas a apurar
as denúncias.
Em artigo veiculado
no Correio Braziliense (edição de 9 de maio de 1997),
sob o título "De quem é a culpa?", Edson Resende Oliveira,
Presidente da Comissão Estadual de Arbitragem de Futebol – SEAF-DF,
alerta para a necessidade de instituição legislativa com
vistas à profissionalização e moralização
da arbitragem, no futebol brasileiro: "Para se evitar que situações
como estas aconteçam, os caminhos iniciais são o reconhecimento
da profissão de árbitro, sua profissionalização,
fortalecimento e respeito às suas entidades representativas de classe
(sindicatos, associações, confederações, etc.).
Desde o início desta década, existe o projeto de lei do Deputado
Federal Tomaz Nonô, para reconhecimento e regulamentação
da profissão de árbitro, que está engavetado até
hoje. Até reuniões com o Ministro Pelé já foram
feitas, através do Sindicato de Árbitros de Brasília,
pedindo seu apoio para o projeto ser desengavetado, mas nada foi feito."
Com a palavra o Ministro dos Esportes...
De qualquer
modo, é questionável a intenção dos parlamentares,
uma vez que a CBF é uma entidade privada – o que, de todo em todo,
não exclui a possibilidade de punição dos culpados,
caso a Justiça venha a julgar como criminosos, tais episódios.
Finalmente, é de se esperar que mais uma vez isto não acabe
em pizza (com sobremesa de marmelada), para que não vejamos arranhada,
uma vez mais, a imagem do Brasil, no exterior, tendo em vista que o futebol
continua sendo o nosso principal produto de exportação.
RETIRADO DE www.angelfire.com