A CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO NA PROTEÇÃO A TESTEMUNHAS
Rivane Arantes
Advogada do
Gajop/Provita
A discussão
em torno da construção de uma sociedade democrática
não sairá do estado em que sempre esteve se, por ela, não
passar a questão da efetivação dos Direitos Humanos,
como caminho concreto para a conquista da cidadania.
Hoje,
já é pacífica a consciência de que há
um terreno fértil e próprio para que as mulheres e homens
exerçam, livres e conscientemente, a sua cidadania, corroborando
com práticas inovadoras e democráticos, tendo por base a
cultura pelo respeito aos Direitos Humanos.
Assumir
essa causa é assumir a luta pela plena dignidade da vida, que vai
além do não matar ou do não torturar. Exige que mulheres
e homens sejam incluídos no processo social e nele possam intervir,
tomando parte não apenas na produção, mas na gestão
e no usufruto dos bens da sociedade. E mais que isso, que seja respeitado
o direito de ser diferente e de assumir as suas vidas a partir dessa diferença.
Condiciona-se a consciência pela sociedade e pelo Estado de que as
pessoas vivem, trabalham e se reproduzem em condições materiais
desiguais e que, portanto, possuem desejos, valores e interesses diferentes.
A luta
pelos Direitos Humanos passa por questões concretas como a raça,
a classe social, o gênero, a religião, a cultura e nos desafia
a passar do espaço individual para o coletivo, afirmando e fortalecendo
a perspectiva social e planetária desses direitos.
O compromisso
com essa causa deixa de ser opcional e passa a ser uma conseqüência
obrigatória para todos aqueles que se envolvem na construção
de uma sociedade democrática, mais justa e participativa .
Dessa
forma, uma ação cidadã implica na capacidade de se
indignar e de se escandalizar diante de toda forma de violência,
superando a insensibilidade, a passividade e a impotência; no compromisso
com a vida como valor supremo , além de outros valores como a justiça,
a esperança, a liberdade e a criticidade (que dão a consciência
ética àquele compromisso); na participação
social, cotidiana, individual e coletiva, seja ela na forma de avaliação,
proposição, denúncia ou parceria e na capacidade de
solidarizar-se.
E é
aqui que se insere, de forma particular, o Provita - Programa de Apoio
e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares
de Vítimas de Violência, como uma alternativa segura para
aqueles que desejam exercer a sua cidadania seja denunciando crimes de
que tenham sido testemunhas ou vítimas, ou, no viés da solidariedade,
contribuindo materialmente, através da prestação de
serviços profissionais ou na proteção propriamente
dita, com aquelas pessoas que, apesar do nosso atual sistema de segurança
e justiça (onde se constata que um dos maiores violadores dos Direitos
Humanos é o próprio Estado), têm a coragem de colaborar
com a Justiça, por meio de seu testemunho. Tal esforço tem
evidentemente como objetivo a elucidação do fato criminoso
e a punição dos culpados e, é claro, a preservação
da vida, numa clara contribuição para a quebra do ciclo da
impunidade.
Para
quem tem a tarefa da defesa dos Direitos Humanos, principalmente para aqueles
que tratam da questão da segurança e da justiça, é
de suma importância romper com o ciclo vicioso da impunidade. É
essa quebra que também será capaz de reavivar nas pessoas
a consciência de cidadãos/cidadãs e, portanto, a sua
parcela de responsabilidade na desconstrução das más
ou falsas experiências sociais.
A ação
consciente da testemunha permite também outros ganhos como a responsabilização
do Estado através de suas instituições, na punição
dos culpados (o que leva a um maior ou menor grau de credibilidade da população
nessas instituições); o fortalecimento da cultura de respeito
aos direitos humanos e, portanto, pela denúncia de violações,
independente de que agente a tenha praticado, até porque a nossa
experiência limita a triagem dos casos aos crimes cujos autores,
na sua grande maioria, são agentes do Sistema de Segurança
e Justiça do Estado, no exercício ou não de suas funções,
no concurso com seus pares ou com cidadãos comuns para a prática
de tais delitos.
Um programa
de proteção nos moldes do Provita vem a ser a solução
mais imediata e mais viável economicamente, no atual momento histórico
no Brasil, para enfrentar o fenômeno dos processos arquivados
por falta de provas e a indústria do medo, baseada na certeza de
que a justiça, lenta, desaparelhada e despreparada, muito dificilmente
chegará à autoria de um delito e a punição
do responsável, se a testemunha tiver a sua vida e a dos seus, ameaçada
pelo violador.
Nesse sentido
faz-se importante lembrar a relevância da prova testemunhal no bojo
do processo penal, o que nos leva a algumas considerações:
primeiro, no âmbito do Direito Processual Penal discute-se violação
de direitos indisponíveis como a vida, e segundo, há a necessidade
de considerar a situação de precariedade em que se encontram
os Institutos Criminais na produção da prova pericial. Por
outro lado, um grande número de fatos não pode ser provado
através de documento.
Aos
que fazemos o Gajop, cumpre-nos buscar no Estado, a efetivação
de suas atribuições frente ao corpo social a que todos individualmete
representamos e fazemos parte, numa atitude de parceria, seja na conscientização
por diversos canais de interlocução acerca dos direitos e
deveres inerentes a cada cidadão, frente a sociedade e ao Estado,
bem como dos instrumentos de efetivação dos mesmos. Ou, numa
atitude propositiva e responsabilizadora como o Provita, que demonstra
ser possível construir uma política pública na área
de segurança e justiça e, mais ainda, comprometer a sociedade
civil, organizada ou não, na consecução dessa política;
além, é claro, de estar sempre vigilante e crítico
quanto às ações e omissões advindas do Estado
na violação dos direitos dos cidadãos.
O papel do operador jurídico
Para
entender o papel do operador jurídico num programa de proteção
à testemunha como o Provita, faz-se necessário nos voltar
para o objeto específico de sua ação, ou seja, o testemunho.
Já
nas Academias, aprendemos desde cedo que, no processo, a prova testemunhal
se reveste de um caráter, digamos, dúbio. Primeiro em virtude
de seu conteúdo subjetivo, o que pode ser perfeitamente compreensível,
pois cada testemunha percebe o fato de acordo com a sua individualidade,
com a sua vivência e concepção à respeito do
mundo . O que não implica dizer que relatos díspares não
venham a confirmar uma mesma circunstância ou situação.
Em segundo lugar, não se pode desconsiderar a existência do
testemunho forjado.
Apesar dessas
possibilidades e, como tratamos de matéria de Direito Penal e
Processual Penal, temos de reconhecer que a prova testemunhal ocupa um
lugar de destaque entre os possíveis meios de prova utilizados no
processo penal por razões como: a natureza jurídica do direito
a ser tutelado, que se caracteriza pela indisponibilidade do bem violado,
que no nosso caso é a vida, diferentemente do Direito Processual
Civil, onde é comum a prova documental; o desaparelhamento dos Institutos
Criminais, reservando as provas periciais apenas aos crimes de grande comoção
social. Estes pontos explicam a supremacia da prova testemunhal e nos abre
um outro leque de problemas quando nos voltamos para a realidade social:
1. a
maioria dos processos são arquivados por falta de prova;
2. a
ausência da prova decorre do medo das pessoas em colaborarem com
a Justiça, quando ameaçados pelos autores das violações;
3. a
impotência do Estado diante desse quadro.
Nessa realidade
marcada pela impunidade, o Provita, como experiência multidisciplinar,
tem sido um instrumento eficaz na consecução da justiça,
uma vez que a sua equipe de psicólogos, assistentes sociais e advogados
visam a obtenção da saúde mental das vítimas
ou testemunhas, a promoção da ação pessoal
e consciente dos mesmos além de sua interação social
e a vigilância pela legalidade e agilização dos procedimentos
processuais, num esforço conjunto para a punição dos
culpados a partir do depoimento consciente e seguro da testemunha.
No programa
de proteção, o operador jurídico deve ter bem claro
essas situações e deve construir a sua prática levando
em consideração a ação dos outros
profissionais que compõem a equipe, sem deixar de lado a sua técnica
jurídica. Em outras palavras, significa que assim concebido, o Provita
exige repensar a prática jurídica, porque nessa experiência,
o profissional do Direito descobre que ele por si só, não
é mais capaz de dar conta da complexidade da realidade social. E
aqui, está o segredo de um trabalho com enfoque multidisciplinar,
onde os diversos profissionais despojam-se de um discurso de poder, e principalmente
o advogado, compreende que o saber jurídico não pode dar
resposta aos vários interrogantes que vão aparecendo no cotidiano.
Muito embora não signifique a renuncia ao pleno exercício
do saber técnico jurídico. Pelo contrário, é
indispensável a consistência técnica, a análise
e a pesquisa .
Isso
tudo nos propõe o surgimento de um novo operador jurídico,
que conserva a sua perícia na ciência jurídica, mas
que se despoja de sua relação clientelista e assume um novo
papel: o de impulsionador da participação ativa de novos
atores sociais , capacitando o sujeito a obter o reconhecimento de seus
direitos de cidadãos, socializando o saber jurídico e ao
mesmo tempo, preenchendo as suas lacunas com outros conhecimentos.
Rompe-se
portanto, aquela velha figura do advogado mediador entre o indivíduo
e o tribunal num conflito interpessoal e surge a figura do defensor jurídico,
que além da tradicional relação processual, desenvolve
outras formas de influir no sistema jurídico, levando-se em consideração,
em nosso particular, o caráter específico do Provita e o
trabalho multidisciplinar. A equipe jurídica desse programa passa
a ter portanto, uma intervenção (jurídica) diferenciada
de seus pares, haja vista não ter o operador jurídico,
a função da defesa no sentido estrito da palavra, nem a qualidade
de assistente de acusação. Assim isento na relação
processual que se desenvolve com o auxílio da vítima ou testemunha
de violência, o advogado do programa passa a ter maior espaço
para fiscalizar e cobrar dos órgãos públicos a agilidade
dos procedimentos de que tenham responsabilidade, bem como a possibilidade
de somar esforços com os mesmos e com outros órgãos,
a fim de mais agilmente conduzir os procedimentos.
Outra
face do operador jurídico, encontra-se no esforço para a
implementação de uma parceria com o Ministério Público,
pois este, enquanto titular da ação penal e na qualidade
de essencial à função jurisdicional do Estado, ou
seja, à função distributiva da justiça e, sendo
ainda constitucionalmente responsável pela defesa da ordem jurídica,
do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis
é, em temos formais, o maior interessado na produção
legal das provas. Nesse sentido, a testemunha se qualifica como peça
chave na consecução do processo (muito embora seja de grande
importância a elaboração de perícias técnicas),
o que impõe uma sintonia do Programa com o Ministério Público,
uma vez que a este incumbe a função de mensurar a relevância
jurídica do testemunho, e ao advogado do Programa, por sua vez,
a tarefa de acompanhar a testemunha a todas as ocasiões em que for
necessária a sua presença, seja na fase inquisitorial ou
processual e a zelar juridicamente pelos seus interesses.
Num
outro patamar, incumbe ainda ao advogado, a elaboração de
uma relação capaz de sensibilizar o Poder Judiciário
a perceber e a estimular práticas que priorizem os processos em
que se apurem violações aos Direitos Humanos, como nas relações
processuais em que as testemunhas do Programa intervêm. Nessa
construção, entendemos também que o Ministério
Público pode ser outra via de acesso ao Judiciário.
Como
atividade multidisciplinar, cumpre ao operador jurídico, participar
da triagem dos casos enviados pelo Ministério Público em
conjunto com a equipe, ocasião em que será exposto pela vítima
ou testemunha, os fatos relativos ao delito, bem como as pessoas que os
estão ameaçando.
Nesse
momento, é importante o máximo de atenção e
de sintonia com o restante da equipe, principalmente com os psicólogos,
pois é a oportunidade de se ler a coerência entre o que se
diz verbalmente e o que se expressa com o corpo. O que indica a relevância
da interação entre o Direito e a Psicologia, evitando-se
análises puramente jurídicas do caso. É nessa oportunidade
também que se vai constatar a adequação jurídica
do caso ao programa, desde o tipo de crime, até a existência
de indícios de ter a testemunha praticado algum fato delituoso.
Outra função
muito importante do advogado do programa, é manter o beneficiário,
seja ele vítima, testemunha ou familiar destes, sempre informado
da situação processual, bem como da situação
jurídica daqueles a quem o mesmo denunciou, mudando a praxis jurídica
de conservar principalmente a testemunha, alheia ao andamento do processo.
Por fim, como
a idéia do novo, a multidisciplinariedade não é sequer,
algo alternativo. É condição sine qua non para a efetivação
dos Direitos Humanos. A própria observação da sociedade,
na luta cotidiana pela garantia de seus interesses e direitos, nos indica
que a experiência multidisciplinar passa a ser salutar para a realização
daqueles “desejos”, na medida em que os interesses e direitos devam ser
exercitáveis na concretude da vida. Significando que às pessoas
não é suficiente a eficácia jurídica de seus
direitos (nós advogados que entendemos um pouco da lógica
jurídica, sabemos muito bem que mesmo as normas constitucionais
auto-aplicáveis, por exemplo, enquanto normas de conduta social,
não são capazes, pelo menos entre nós, de nortear
a conduta social, sendo quase sempre necessário a utilização
de outro instrumento jurídico, como o processo, para fazer valer
um determinado direito, e ainda assim, corre-se o risco do atendimento
não ser a contendo ou com a presteza que cada caso requer), mas
a eficácia social, nisso se impondo a interação de
profissionais de outras áreas.
Em razão
disso, a multidisciplinariedade tem sido um dos desafios metodológicos
mais difíceis àqueles profissionais que trabalham o tema
dos Direitos Humanos, em especial para os operadores jurídicos que
vêem ainda com bastante reserva. A própria experiência
desenvolvida pelo Provita, principalmente na ótica do Direito é
algo novo, desejado muito mais pelos operadores de outras ciências
que pelos próprios advogados. É algo ainda em construção
e portanto, passível de muitos controvérsias.
Tudo isso
nos indica que a multidisciplinariedade é uma tarefa inacabada.
Ainda no nosso discurso técnico-jurídico permanece como tema
bastante periférico. Portanto, resta a nós, operadores do
Direito, o desafio de enfrentar e aprofundar a questão da multidisciplinariedade
enquanto processo de construção do saber.
1. Editorial
Revista TEMPO E PRESENÇA, CEDI, SP. No 237, Dez/88
2. CANALAU,
Vera Maria; SACOVINO, Silvana Beatriz; MARANDINO, Martha; MACIEL, Andréa
Gasparini: Tecendo a Cidadania. Oficinas Pedagógicas de Direitos
Humanos. Petrópolis - Vozes, 1996
3. GOMES,
Suzana Camargo: O juiz e a Psicologia do Testemunho.Revista CONSULEX no
07, ano 1, julho/97
4. HESPANHA,
Benedito: Psicologia do Testemunho. Serie Ciência, 1a edição,
Passo Fundo - MG. EDIUPF, 1996
5. MONTEIRO,
Valdênia Brito: Uma década dedicada a construção
e conquistas de direitos. Texto Gajop, 1991
6. Art.127
da Constitução Federal
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