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A REPRESENTAÇÃO E A LEI 9.099/95

(Publicada na RJ nº 227, pág.148)

Julio Fabbrini Mirabete - A REPRESENTAÇÃO E A LEI 9.099/95

Procurador de Justiça aposentado

Sumário: 1. Introdução; 2. Retroatividade da lei; 3. Aplicação às ações em andamento; 4. O prazo do art. 91 da Lei 9.099; 5. Revogação da Súmula 608 do STF; 6. Extensão do art. 88; 7. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO

A Lei 9.099, de 26.09.1995, dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, e, em seu art. 88, prescreve que dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões corporais culposas, várias questões devem ser estudadas e resolvidas quanto à aplicação dessa norma aos fatos ocorridos anteriormente à vigência da lei, bem como sua repercussão frente a outros dispositivos penais e processuais. Com o sentido de provocar o debate sobre essas questões, que nos parece essencial e urgente por já estar em vigor o referido diploma, que altera o panorama penal e processual penal nas hipóteses tão freqüentes desses delitos, pretendemos discorrer sucintamente a respeito do assunto.

2. RETROATIVIDADE DA LEI

Há um consenso no sentido de que a representação, embora basicamente matéria de direito processual, é também um instituto de direito material. Decorre essa conclusão do fato de que o não-oferecimento da representação no prazo previsto em lei acarreta a decadência do direito de queixa e de representação, causa extintiva da punibilidade. Como a extinção da punibilidade é matéria penal, por excluir a possibilidade do exercício do jus puniendi do Estado, deve a sua aplicação no tempo ser regida pelas normas constitucionais e penais relativas ao assunto. Assim, uma nova lei que exija a representação como condição de procedibilidade para a aplicação da lei penal e infrações penais, quando na lei anterior eram objeto de ação penal pública incondicionada, por ser mais benéfica é aplicável aos fatos ocorridos antes de sua vigência. É o que deflui do art. 5º, XL, da CF, e art. 2º, parágrafo único, do CP, ao preverem, por exceção ao princípio geral da irretroatividade da lei penal, a retroatividade da norma mais benigna.

É correta, portanto, a conclusão de que o art. 88 da Lei 9.099, por ser norma mais benéfica que a anterior, é dotado de retroatividade, devendo ser aplicado aos fatos criminosos ocorridos antes de sua vigência.

3. APLICAÇÃO ÀS AÇÕES EM ANDAMENTO

Com fundamento nessa conclusão, se tem defendido a tese de que o art. 88 da citada lei é aplicável inclusive aos processos em andamento, se no dia de sua vigência não tiver transitado em julgado a sentença. Tratar-se-ia de norma mais benigna, portanto retroativa em qualquer hipótese (cf. LUIZ FLÁVIO GOMES, Suspensão condicional do processo penal, pág. 207; PEDRO e MALULY DEMERCIAN, JORGE ASSAF, Juizados Especiais Criminais, pág. 121; CARLA RODRIGUES DE ARAÚJO, Juizados Especiais Criminais, pág. 39; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO, Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, pág. 80; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, Juizados Especiais Criminais e alternativas à pena de prisão, pág. 129). Por isso, a partir do início da vigência da lei, em todos os processos em curso, ou seja, em que não houve trânsito em julgado da sentença, teria se tornado obrigatória a representação, sob pena de se julgar extinta a punibilidade.

Parece-nos, entretanto, que há obstáculos jurídicos à aceitação dessa tese. Em primeiro lugar, se acatada a orientação, não se pode justificar que a representação seja exigida apenas aos processos em que não ocorreu o trânsito em julgado. A regra constitucional e o dispositivo penal que dão fundamento a essa conclusão não limitam a aplicação da norma mais benigna aos fatos anteriores, impondo-se a retroatividade inclusive aos fatos definitivamente julgados e atingindo todos os efeitos penais de uma sentença condenatória, como prevê o art. 2º, parágrafo único, do CP. É de se ressaltar que, conforme a doutrina, a relação processual instaurada com o recebimento da denúncia persiste após a sentença condenatória transitada em julgado, durante a execução da pena, sendo esta nada mais nada menos que a última etapa da ação penal condenatória. Não se esgota o processo com trânsito em julgado, mas somente com o cumprimento da pena ou sua extinção e depois de produzidos os efeitos penais da condenação. De acordo com o art. 2º, parágrafo único, do CP, em consonância com a CF, que não prevê nenhuma limitação à retroatividade da lei mais benigna, a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. Não havendo na CF e, portanto, na lei, nenhuma limitação à aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, que estende seus benefícios inclusive a todos efeitos penais da sentença condenatória, não é possível distinguir entre os casos em que há trânsito em julgado e aqueles em que ainda não há decisão definitiva. Sendo assim, a adoção da tese implicaria a necessidade de representação inclusive nos processos na fase executória, seja quando o condenado esteja cumprindo a pena, está submetido ao sursis ou ao livramento condicional, e, porque não, às hipóteses em que a condenação esteja provocando efeitos penais (reincidência, inscrição no rol dos culpados, etc.). Ora, é intuitivo que tal conclusão levaria ao absurdo, não podendo ser aceita.

Deve-se, portanto, conciliar a afirmativa inicial de que a norma do art. 8º da Lei 9.099 exige aplicação retroativa com a conclusão de que não se pode julgar extinta a punibilidade pela decadência nas hipóteses mencionadas acima.

A solução decorre do alcance da premissa inicial de que a necessidade de representação, sendo de natureza também penal, é exigência da aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais benigna. Como já se afirmou, essa carga penal da representação deve-se ao fato de que, quando não oferecida no prazo legal, acarreta a decadência. Devemos lembrar, porém, que, segundo a doutrina penal e processual penal pacífica, conforme a nossa legislação, a decadência é a perda do direito de ação ou de representação. Também segundo a lei e a doutrina, como conseqüência, a decadência do direito de representação somente pode ocorrer antes de iniciada a ação pública a ela condicionada. Significa isto que a carga penal dessa condição de procedibilidade deixou de existir quando já foi instaurada a ação penal. Iniciado o processo antes de entrar em vigor a lei que passou a exigir essa condição de processabilidade, não há que se falar em decadência do direito de representação e, portanto, na sua falta como causa extintiva da punibilidade. Não se pode falar na perda do direito de representação quando este foi exercido regularmente.

Por essa razão, é possível concluir que a regra prevista no art. 88 da Lei 9.099 é retroativa, aplicando-se aos fatos ocorridos antes do início da vigência da lei, mas não pode alcançar os processos em andamento por ter se extinguido o aspecto penal da representação com a instauração da ação penal na época em que ela não era exigida. Exercido o direito da ação penal pública pelo MP quando ainda não era exigida a representação, não há que se falar em decadência intercorrente, ou seja, durante o processo penal condenatório. Não é possível sujeitar agora o prosseguimento da ação penal a essa condição de procedibilidade que, por sua natureza, deve anteceder à instauração da ação penal.

4. O PRAZO DO ART. 91 DA LEI 9.099

Prevê o art. 91 da lei que, nos casos em que esta lei passa a exigir a representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência. Essa disposição tem servido aos defensores da tese da aplicação do art. 88 aos processos em andamento para afirmar que a regra se destina a essas hipóteses. Entretanto, ousamos discordar, data venia dos doutos doutrinadores que assim se têm manifestado. Refere-se aquele dispositivo evidentemente aos crimes ocorridos antes da vigência da lei. Mas a sua finalidade é propiciar às vítimas desses delitos oferecer a representação que não era exigida por ocasião do ilícito e da instauração do inquérito. Exige, portanto, a lei que seja o ofendido intimado para ser alertado de que, por não ter sido iniciada a ação penal, somente com a formulação da representação pode isto ser feito. Precaução da lei para que não seja a vítima prejudicada pela decadência sem que tivesse conhecimento da necessidade de prover a condição de procedibilidade, exigida pela lei após a instauração do IP. Assim, em todos os IPs em andamento e nos autos em poder do MP para oferecimento da denúncia, deve proceder-se à mencionada intimação, para evitar-se, como registra expressamente o artigo, a decadência. E esta só pode ocorrer antes de iniciada a ação penal, não depois de instaurada.

Não concordamos, data venia, aliás, com a opinião de que a lei, no art. 91, está se referindo a uma condição de prosseguibilidade e não à decadência. A interpretação não pode ser contra legem, para se entender que o termo "decadência" deva ser entendido ora como "condição de procedibilidade" (art. 88), ora como "condição de prosseguibilidade" (art. 91). A decadência é sempre a perda do direito de ação ou de representação e a ela se refere o art. 91. Já exercido o direito de ação por parte do MP quando a ação penal não exigia a representação não há que se falar em decadência. Caso a vontade da lei fosse obrigar a iniciativa da vítima para o prosseguimento do processo penal já instaurado, referir-se-ia expressamente a um pedido de prosseguimento da ação penal. Na inexistência de disposição expressa em contrário, decadência continua a ser a perda do direito de ação ou de representação, já que, nos termos do art. 92 da Lei 9.099, aplicam-se subsidiariamente as disposições do CP e CPP, no que não forem incompatíveis com o referido diploma legal.

Supondo-se, porém, que não se faça ou não se consiga fazer a referida intimação antes de iniciada a ação penal. Nessa hipótese, o prazo de decadência será de seis meses, como determinam os arts. 103 do CP e 38 do CPP. Como esse prazo não corria antes da lei, por inexistente a regra, o termo inicial é o do início da sua vigência. A partir de 26.11.1995, portanto, iniciou-se o prazo de decadência de 6 meses para todos os casos dos crimes mencionados ocorridos anteriormente. Excetua-se, entretanto, a hipótese de intimação da vítima, em que o prazo é de 30 dias a contar da intimação.

5. REVOGAÇÃO DA SÚMULA 608 DO STF

Com fundamento no art. 101 do CP, que prevê ação pública incondicionada nos ilícitos que tenham como elemento ou circunstância do tipo legal fatos que por si mesmos constituem crimes em que caiba essa espécie de ação, o STF editou a Súmula 608: "No crime de estupro, praticado mediante violência real, ação penal é pública incondicionada". Assim, havendo vias de fato ou lesão corporal na hipótese desse crime (ou atentado violento ao pudor), dispensada era a queixa ou a representação da vítima. Com a nova lei, porém, está revogado o referido enunciado. Passando, na hipótese da lesão corporal, a exigir-se a representação, é inaplicável no caso o artigo do Código citado. Assim, os processos penais em caso de estupro ou atentado violento ao pudor, seja caso de violência ou ameaça, exigem a queixa, ou a representação nos casos em que esta é permitida em substituição àquela.

É de se anotar que, em decorrência do que foi exposto e no item anterior, a conclusão a respeito da revogação da Súm. 608 do STF só tem relevância para os casos em que ainda não foi instaurada a ação penal. Exercido o direito de ação pelo MP antes da vigência da lei, não há mais que se falar em decadência.

6. EXTENSÃO DO ARTIGO 88

Outra questão a ser resolvida é a que concerne à extensão do disposto no art. 88 da Lei à contravenção de vias de fato (art. 21 da LCP). Sob o argumento de que essa infração, consubstanciada também em violência, é um minus com relação ao crime de lesões corporais, por não causar ofensa à integridade corporal ou à saúde da vítima, já se defende a tese de que a representação deve ser também exigida para a apuração desse ilícito menor. Embora formulada com um fundo lógico e por medida de eqüidade, essa orientação é, no mínimo, perigosa, pois, além de contrariar o sistema legal brasileiro, que só exige a representação em casos expressos, vedando a analogia, levaria a uma total insegurança na aplicação do dispositivo. Pelo raciocínio adotado para estender a obrigatoriedade da representação à contravenção das vias de fato, o mesmo deveria ocorrer, p. ex., para o crime de rixa simples (art. 137, caput, do CP), ilícito de menor gravidade do que as lesões e que nada mais é do que a prática de violência dos agentes em que não se pode identificar os sujeitos ativos e passivos de crimes de lesão corporal ou da contravenção de vias de fato. Também não estaria fora da hipótese a necessidade de se estender a interpretação ao crime menos grave de maus-tratos simples (art. 136, caput, do CP), que no mais das vezes se configura pela violência abusiva praticada pelo agente contra o ofendido, com fim de correção e disciplina. E por que não estender a interpretação ao crime de perigo para a vida e à saúde de outrem (art. 132 do CP), da mesma gravidade que a lesão corporal, sem que resultado lesivo ocorra? E se é necessária também a representação para o crime de lesões corporais culposas, porque não ampliar o alcance da norma em discussão para abranger a contravenção de direção perigosa de veículo na via pública, de menor gravidade que uma lesão culposa do delito de trânsito que poderia ter sido provocado pelo motorista? Parece-nos evidente, assim, que a conclusão inicial, quanto à contravenção de vias de fato não deve prevalecer, sob pena de gerar incertezas e perplexidades aos aplicadores do direito, e, em maior escala, aos envolvidos nos ilícitos mencionados na amostragem, tudo pela aplicação extensiva da norma a casos não previstos expressamente em lei, contrariando o sistema normativo.

7. CONCLUSÃO

São essas algumas das questões que devem ser examinadas pela nossa jurisprudência, cabendo aos magistrados brasileiros as soluções exigidas pelo ordenamento jurídico nacional na aplicação dos novos dispositivos legais de modo a que se preserve o quanto possível o direito positivo e se evitem o tumulto processual e a diversidade nos julgamentos que só podem conduzir a insegurança aos destinatários da lei.