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A questão da competência nos crimes contra os direitos humanos

Luiz Flávio Gomes*

Sob o pretexto de combater a impunidade, o Presidente da República lançou no último dia 13 de maio seu Programa Nacional de Direitos Humanos. É o terceiro país no mundo que divulga sua "Carta de Intenções" nessa área. Dentre as propostas (que são mais de cento e sessenta), uma, sob a forma de emenda constitucional, atribui competência à juízes federais para julgar os crimes (sic) praticados contra os Direitos Humanos. Causa estranheza, desde logo, o titulo da emenda, que deixa transparecer o fim da Justiça Estadual, visto que todos os crimes afetam os Direitos Humanos.

O problema subjacente à emenda resume-se no seguinte: em razão da impunidade, a crescente violência no Brasil está ganhando dimensões surrealistas. Com certa freqüência, o que é pior, alguns crimes chegam a ganhar especial repercussão internacional (casos Carandiru, Eldorado do Carajás, Candelária, Vigário Geral etc.). Os órgãos internacionais de Direitos Humanos, principalmente a Comissão Interamericana, cobra do Governo brasileiro medidas repressivas. Como tais crimes, em regra, são da competência da Justiça Estadual (comum ou

militar), a policia federal fica normalmente afastada das investigações. Surge, em consequência, o paradoxo: o governo federal, que tem responsabilidade internacional no caso, não é responsável pela sua investigação no âmbito interno. Ele tem que prestar contas por algo que está fora da sua alçada. Dai seu interesse em transferir para a Justiça Federal a competência para o julgamento dos crimes contra os Direitos Humanos.

Poder-se-ia até vislumbrar certa legitimidade no seu propósito, desde que tivesse se valido de orientação já constante da CF (art. 144, §1, inc. I) - centrando-se, assim, exclusivamente nas infrações com repercussão internacional - e não fosse tão infeliz na redação da emenda constitucional, que acrescenta dois incisos ao art. 109, in verbis: "São da competência dos juizes federais...inc. XII:

os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos; inc. XIII: as causas civis ou criminais nas quais órgão federal de proteção dos direitos humanos ou o Procurador-Geral da República manifeste interesse".

No que concerne aos "crimes praticados em detrimento de bens sob a tutela de órgão federal" a proposta é inútil porque tais bens, naturalmente, são da União e a hipótese já está contemplada no inc. IV do mesmo art. 109. Quanto aos "crimes praticados em detrimento de interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos" a sugestão legislativa é estarrecedora e inconseqüente pelo seguinte:

o órgão federal referido é o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, que tem por interesse primordial investigar as violações de direitos humanos em todo o território nacional. Conclusão: os crimes praticados em detrimento desse interesse (leia-se: todas as infrações contra os direitos humanos) passariam para a competência da Justiça Federal. Isso significaria o esvaziamento total das Justiças Estaduais, o que é uma aberração.

Poderia até ser objeto de alguma razoabilidade e discussão a competência da Justiça Federal para julgar de modo excepcional alguns crimes violentos que comprovadamente venham a contar com repercussão internacional.

Afinal, por eles, responde internacionalmente o governo brasileiro. Já existe, de outro lado, certa intercomunicação entre a Justiça Federal e Estadual. Tráfico internacional de drogas, por exemplo, embora da competência daquela, não raras vezes é julgada por juizes estaduais. Mas passar para a Justiça Federal todos os crimes em detrimento de interesses do Conselho de Defesa dos Direitos Humanos é um despropósito. Cuida-se de Justiça sabidamente sobrecarregada. Não está, como muitas outras, devidamente aparelhada para a prestação jurisdicional pronta e eficaz. Isso não só implicaria impunidade, senão também, conforme o ângulo de visão, clara violação de um outro direito humano, que é o julgamento rápido (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art.8, n.1)

No que se relaciona ao inc. XIII o equivoco não é menor. Bastaria a manifestação de interesse do Conselho citado ou do Procurador-Geral da República na causa criminal (em curso) e sua competência passaria para os juizes federais. Isso significa a administrativização ou desjudicialização da garantia do juiz natural, o que é absolutamente inconstitucional. Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, diz o art. 50 inc. LIII, da CF. Nisso reside o principio do juiz natural, que é o juiz "estabelecido anteriormente em lei", de acordo com o art. 80, n.1, da Convenção citada.

Juiz estabelecido anteriormente em lei consiste, como bem assinalou o Tribunal Constitucional italiano, na famosa decisão n 88, de 12.07.1962, na "previa determinação, com relação ao fato abstrato realizável no futuro e não a posteriori, ou seja, uma competência fixada, sem alternativas, imediatamente e exclusivamente pela lei, excluindo-se a possibilidade de uma alternativa entre um juiz e outro, prevista pela lei, porém passível de resolução a posteriori... o principio do juiz natural é violado no caso de uma intervenção discricionária de sujeitos diversos do legislador na disciplina da competência..." (v. Juan Burgos Ladrón de Guevara, El juez ordinario predeterminado por la ley, Civitas, Madri, 1990, p.25/26). De duplo vicio padece, portanto, a proposta sub examinen: a competência seria determinada não só por manifestação superveniente de interesse numa causa em andamento (a posteriori), senão também por sujeitos distintos do legislador (Conselho ou Procurador-Geral da República).

Juiz natural, de outro lado, em sua outra não menos relevante expressão, significa a proibição de juízo ou tribunal de exceção (inc. XXXVII, do art.5, da CF), que na doutrina da Corte Constitucional espanhola implica a inexistência de juizes ad hoc, expost factum, ad casum, ad personam e suspectus (cf. Ladrón de Guevara, cit., p.’73). A competência dos juizes federais, consoante o sugerido, seria fixada após os fatos (ex post factum) e conforme a causa (ad casum). Considerando que a garantia do juiz natural integra os direitos individuais, por força de cláusula pétrea não pode ser objeto de deliberação a proposta de emenda ora enfocada tendente a aboli-la, consoante o disposto no art.60, § 4, inc. IV, da CF.

A democratização do processo penal, como termômetro que é de cada estágio do Estado Constitucional de Direito, é irreversivelmente inconciliável com a eleição a posteriori ou ad casum do juiz competente para o julgamento de cada infração, mesmo porque disso nasce a grave suspeita de parcialidade do mesmo. A proposta de emenda constitucional ora analisada, em suma, seja porque inútil, seja porque inconseqüente e, por fim, conforme o prisma de consideração, inconstitucional, em nosso modo de ver, deve ser rejeitada de plano.

*0 autor é Juiz de Direito em São Paulo

Artigo retirado do endereço: http://www.apamages.com/publicacoes/cad_dout/caderno_dout2fase/questao_comp.htm