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A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DO CONSUMIDOR

JUSSIER BARBALHO CAMPOS
Acadêmico - UFRN.
 

1-INTRODUÇÃO. 2-SISTEMA ADOTADO PELO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 3-SISTEMA ADOTADO PELO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 4-REQUISITOS PARA A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. 5-MOMENTO PARA A APLICAÇÃO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. 6-EFEITOS DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. 7-CONCLUSÃO. 8-BIBLIOGRAFIA.

 

1. INTRODUÇÃO

 

As relações de consumo estão presentes, no mundo atual, em todos os momentos da vida das pessoas. Dessa forma, não é de se admirar que existam conflitos que resultem dessas relações, como por exemplo, a compra de um carro novo que após alguns dias de uso apresenta um superaquecimento injustificado do motor.

Numa ocasião como a mencionada, fica fácil notar que surgiu um conflito pois o consumidor comprou o produto novo pensando estar em bom estado de funcionamento, e, na realidade, adquiriu um bem problemático.

Mas, este é apenas um simples exemplo corriqueiro e isolado. O problema maior ocorre quando essa fábrica de automóveis fabrica, vamos imaginar, 10.000(dez mil) modelos com o mesmo defeito. Pois bem, é isso que ocorre quando se está diante do mundo da produção em massa e do consumo exagerado característico do capitalismo do fim desse século.

No intuito de frear a atitude de fornecedores inescrúpulosos que lesavam(ainda lesa) o patrimônio dos consumidores, a sociedade começou a clamar por uma proteção às relações de consumo. Surgiram assim leis protetoras dos consumidores em diversas partes do mundo, e como não podia ser diferente, também no Brasil.

A Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor trouxe inovações tamanhas que alguns autores definem o diploma como criador de um microsistema legal, ou seja, determina um universo que possui características próprias. Essas inovações para atingirem seus objetivos deveriam ter garantias de que elas seriam aplicadas também no processo judicial quando fossem discutidos interesses relativos ao consumo.

Para isso, dentre a linha de novidades trazidas pelo diploma protetivo do consumidor, encontramos a inversão do ônus da prova e outros novos instrumentos como, v.g., as ações coletivas onde são legitimados o Ministério Público, a União, os Estados, os Municípios, as associações com mais de um ano de regular funcionamentos que tenham como objetivo proteger os consumidores, conforme o art. 82 do CDC.

No tocante a inversão do ônus da prova, é relevante colocar que esse instrumento veio facilitar a defesa dos interesses dos consumidores em juízo, seguindo a linha de raciocínio de que isonomia é tratar os desiguais desigualmente. Nesse diapasão, o consumidor, que é o lado mais fraco da relação de consumo, fica isento de provar algumas situações, transferindo-se a obrigação de fazer prova perante o Juízo para o fornecedor. O objeto de nosso estudo será, portanto, as situações em que cabem a inversão do ônus da prova e seus detalhes como momento de aplicação e efeitos dela decorrentes.

 

2- SISTEMA ADOTADO PELO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O sistema de princípios pertinentes ao direito probatório adotado pelo CPC pátrio baseia-se na idéia de que a parte que alega ter o direito deverá fazer prova disto.

Segundo Ovídio A. Batista da Silva, "pode, portanto, estabelecer, como regra geral dominante de nosso sistema probatório, o princípio segundo o qual à parte que alega a existência de determinado fato para dele derivar a existência de algum direito, incumbe o ônus de demonstrar a sua existência. Em resumo, cabe-lhe o ônus de produzir a prova dos fatos por si mesmos alegados como existentes" (SILVA, p. 289).

Essa regra encontra-se positivada no artigo 333 do Código de Processo Civil, o qual transcrevemos:

"Art. 333 - O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Parágrafo único - É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:

I - recair sobre direito indisponível da parte;

II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito."

 
Assim, o autor da ação deve fazer prova dos fatos que traz a juízo para confirmar a existência de seu direito, enquanto que o réu terá o ônus da prova apenas quando fizer afirmações, tendo em vista desconstituir o direto do autor. Quando o réu apenas negar a existência do direito do autor, a este caberá o onus probandi.

 

3 - SISTEMA ADOTADO PELO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

 

A inversão do ônus da prova no direito do consumidor nasceu da dificuldade de o consumidor provar suas afirmativas quando submetido ao regime do Código de Processo Civil (já analisado). As dificuldades geralmente tornavam impossíveis, ou muito difíceis, por exemplo, a prova de que um objeto saiu de fábrica ou mesmo da loja com um determinado defeito. Isso se devia, no mais das vezes, porque era requerida uma prova pericial para se constatar o defeito questionado.

O consumidor, vendo-se nessa situação desistia de reclamar por seu direito quando imaginava, v.g., como iria provar que aquele defeito foi decorrente de má fabricação e não de uso indevido do produto.

A inversão do ônus da prova se mostra também extremamente relevente para a área de consumo de cosméticos, medicamentos, alimentos, onde a utilização desses produtos pode acarretar reações prejudiciais à saúde do consumidor.

Assim, objetivando diminuir toda essa desigualdade em juízo, entre o fornecedor e o consumido, ficou estabelecido no art. 6º, inc. VIII, do CDC, a inversão do ônus da prova como direito básico do consumidor, verbis:

 

"Art. 6º - São direitos básicos do consumidor:

(...)

VIII - a facilitação da defesa de sus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;"

 
Segundo MARIO AGUIAR MOURA, a inversão do ônus da prova poderá ocorrer qualquer que seja a posição assumida pelo consumidor na relação jurídica processual, seja na posição de autor, réu reconvinte, reconvindo, excipiente ou exceto.(MOURA, p. 393)

De acordo com esse entendimento, a inversão do ônus da prova tem o condão de transferir para o fornecedor o ônus de produzir prova que normalmente seria de incumbência do consumidor. A verdade é que, na maioria das vezes, essa discussão vai ser irrelevante, posto que o normal é que o consumidor figure na posição de autor da ação, quando muito na posição de reconvindo.

 

4 - REQUISITOS PARA A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

 

A inversão do ônus da prova deve ser aplicada pelo juiz quando "for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente". O dispositivo supra transcrito faz menção expressa a esses dois requisitos. Inicialmente devemos levantar a discussão que permeia a doutrina acerca da conjunção "ou" presente na redação do dispositivo. Se for entendido como conjunção alternativa, os requisitos podem ocorrer separadamente. Já, se o "ou" for lido como "e", conjunção aditiva, haverá a necessidade da presença dos dois requisitos simultaneamente.

Entendemos que a finalidade da norma é a proteção ao consumidor, e por isso mesmo deve ser entendido que a presença de apenas um dos requisitos é suficiente para a aplicação da inversão do ônus da prova.

Com relação ao conceito de verossimilhança da alegação do consumidor, é interessante a colocação de CARLOS REOBERTO BARBOSA MOREIRA que se utiliza dos estudos da verossimilhança como requisito para a concessão da antecipação da tutela (art. 273, CPC). Segundo o mencionado processualista, "os comentadores da nova lei processual sustentam que a verossimilhança se assenta num juízo de probabilidade, que resulta, por seu turno, da análise dos motivos que lhe são favoráveis (convergentes) e dos que lhe são desfavoráveis (divergentes). Se os motivos convergentes são superiores aos convergentes, a probabilidade diminui"(J.E. Carreira Alvim, Código de Processo Civil Reformado, 1ª. ed., Del Rey, 1995. p. 104 apud Carlos Roberto Barbosa Moreira. Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. in Estudos de Direito Processual em memória de Luiz Machado Guimarães (no 25º aniversário de seu falecimento) / coordenador, José Carlos Barbosa Moreira; Ada Pellegrini Grinover...[et al] - Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 131).

Já no que se refere ao conceito de "hipossuficiência", deve-se entender o seu significado de forma mais ampla do que realmente é, pois "embora os dicionários definam o hipossuficiente sob o aspecto puramente econômico, tenho para mim que a lei consumerista quis abranger a pessoa de discernimento pouco desenvolvido para uma atuação vigilante na relação sócio-econômica. Não se trata do incapaz, eis que este tem a proteção específica que conduz à nulidade ou anulabilidade de sus atos. Tratar-se-á, a meu ver, dos analfabetos, do rurícola de escasso contato com a vida social urbana, exemplificativamente e outras situações assemelhadas."(MOURA, p. 393)

Pensamos que o entendimento do conceito de "hipossuficiente" pode ser dilatado mais ainda a depender do caso concreto, visto que o dispositivo põe a aplicação da inversão "a critério do juiz".

Superada a questão dos requisitos, há uma discussão que deve ser mencionada. Refere-se à possibilidade de aplicação da inversão ex officio, ou se só deve ser aplicada quando requerida pela parte. Carlos Roberto Barbosa Moreira ensina que pode ser aplicada nas duas hipóteses. E justifica: "tratando-se de um dos direitos básicos do consumidor, e sendo o diploma composto de normas de ordem pública (art. 1º), deve-se entender que a medida independe da iniciativa do interessado em requerê-la."(MOREIRA, 1997. p. 128)

 

5 - MOMENTO DA APLICAÇÃO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

Há autores, como Tania Liz Tizzoni Nogueira, que defendem a inversão do onus probandi deve ocorrer no despacho da petição inicial. Segundo Carlos R. B. Moreira, é incorreta essa tendência pois, ao despachar a inicial, o juiz não conhece os argumentos da contestação e, dessa maneira, não conhece ainda quais são os pontos controvertidos do processo. (MOREIRA, 1997. p. 135)

Segundo ainda o citado processualista, há outra corrente que defende a aplicação do ônus no momento da sentença. Trata-se, ao nosso ver, de solução onde pode ser comprometida o normal curso do processo e o fim para o qual serve: solucionar os conflitos. Isso ocorre por ser de difícil compreensão a definição de quem irá provar determinado fato, somente após a fase instrutória, uma vez que todas as provas já estão produzidas no momento da sentença.

A orientação mais acertada é ao nosso ver a também adotada por Carlos R. B. Moreira, a qual pugna pela aplicação da inversão do ônus da prova no início da fase instrutória. A idéia se coaduna com a reforma do Código de Processo Civil e a nova redação do art. 331, § 2º que determina que não sendo possível a conciliação o juiz deverá fixar os pontos controvertidos e determinar as provas a serem produzidas. (MOREIRA, 1997. p. 138)

Nosso ponto de vista é por entender a concessão da inversão do ônus da prova como decisão interlocutória impugnável via agravo, retido ou de instrumento, a depender do tipo de procedimento: ordinário ou sumário. E isso só será possível se acatada a tese de que o momento para a aplicação é no início da instrução.

 

6 - EFEITOS DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

 

Diante do sistema adotado pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8078/90), observamos duas situações principais que ensejam a responsabilização do fornecedores: fato do produto e do serviço e vício do produto e do serviço. Dessa maneira, é importante diferençar o tratamento para cada uma das situações quanto à fixação do ônus da prova.

Tem-se fato do produto ou do serviço quando a utilização desses acarreta ao consumidor danos, provocados por defeitos de "projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre a sua utilização e risco" (art. 18, caput). Nesse caso o mesmo dispositivo mencionado determina, para hipóteses como essas, a responsabilidade objetiva do fornecedor. Assim, basta o consumidor provar o dano e o nexo causal para constituir a obrigação de indenizar. Entendemos que diante de casos de fato do produto ou do serviço o juiz pode determinar a inversão do ônus para que fique provado o nexo causal, vez que estabelecer este liame, muitas vezes, depende de perícia técnica, o que torna difícil a posição do consumidor em juízo, lembrando que sempre deverá ser atendido os requisitos da verossimilhança da alegação ou hipossuficiência do consumidor.

Ocorre vícios dos produtos, nos termos do art. 18, caput, quando há defeito de "qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas". Já no que pertine aos vícios dos serviços, o art. 20 dispõe:

Art. 20 - O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: (...)"(grifo acrescido)   Diante da noção legal do que seja vício do produto ou do serviço, pensamos ser plenamente aplicável a inversão do ônus da prova para esses casos, obedecendo, evidentemente, os requisitos da hipossuficiência do consumidor ou da verossimilhança da alegação. Nosso entendimento segue o ensinamento do professor PAULO LUIZ NETTO LÔBO, que assim se pronuncia: Este princípio (art. 6º, VIII, do Código do Consumidor) preside todas as relações de consumo. Cabe, pois, ao fornecedor comprovar que a coisa ou o serviço foram entregues sem vícios ocultos ou aparentes, e que tais defeitos são supervenientes e imputáveis exclusivamente ao consumidor, à culpa exclusiva deste." (LÔBO, p. 39) Além desses casos mencionados, tem-se a hipótese de responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais, insculpida no art. 14, §4º, do CDC. Nesses casos, "a inversão poderá beneficiar o consumidor seja em relação à prova do nexo causal, seja quanto à prova de ter o fornecedor agido de forma imprudente, negligente ou atécnica"(MOREIRA, 1997. p.139).

 

7 - CONCLUSÕES

 

Por fim, faz-se necessário colocar que o Código de Defesa do Consumidor é um instrumento feito para defesa do consumidor, como seu próprio nome dispõe. Cumpre, portanto o seu constante estudo por parte de quem vai com ele trabalhar como os advogados, juízes, membros do Ministério Público, objetivando sua efetiva aplicação. Se possível deve ser conhecido pela população como forma de proteção contra os abusos por parte dos fornecedores.

A inversão do ônus da prova vem facilitar o acesso do consumidor à justiça e tentar equilibrar uma balança que quase sempre pende para o lado do fornecedor. Mauro Cappelletti, vislumbrando a atual situação das relações de consumo e o acesso do consumidor à justiça ensina que "se não chega a ser a época de uma ‘guerra civil dos consumidores’, a nossa é a época da revolução dos consumidores, uma revolução cujo escopo último consiste em tornar o direito e a justiça acessíveis aos cidadãos, ou seja, aos usuário - aos ‘consumidores’ - do direito e da justiça, em reaproximar o direito, pois, da sociedade civil, da qual com demasiada freqüência ele se alienou."(CAPPELLETTI, p. 63)

 

8 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1993.

BARROS, Durval Ferro. Inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. in Repertório IOB de jurisprudência. 2ª quinzena de maio de 1991. pp. 209 e 210.

CAPPELLETTI, Mauro. O acesso dos consumidores à justiça. in Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense. Ano. 1990. v. 310. pp. 53 a 63.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Responsabilidade por vício do produto ou do serviço. Brasília - DF: Brasília Jurídica, 1996.

MOREIRA, Carlos Roberto da Silva. Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. in Estudos de Direito Processual em memória de Luiz Machado Guimarães (no 25º aniversário de seu falecimento) / coordenadores, José Carlos barbosa Moreira; Ada Pellegrini Grinover...[et al] - Rio de Janeiro: Forense, 1997. pp. 123 a 140.

MOURA, Mario Aguiar. Ônus da prova no código do consumidor. in Repertório IOB de jurisprudência. 2ª quinzena de setembro de 1991. pp. 392 a 394.

NASCIMENTO, Tupinambá Miguel de Castro do. Comentário ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Aide, 1991.

SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil (processo de conhecimento). 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1996. pp. 289 e 290.
 
 

Retirado de http://www.jurisnet-rn.com.br/CDCPROVA.html