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   A Internet e o Código de Processo Civil

 

                        José Lázaro Alfredo Guimarães, Juiz do Tribunal Regional Federal/5a

 

 

Nestes dias tumultuados pela meia verdade que mais gerou dinheiro em todos os tempos – o chamado inseto do milênio (não se trata de uma praga, dentre tantas, como a aids e outras viroses ou doenças infecto-contagiosas que a expansão da  miséria na aldeia global fez recrudescer em ritmo alucinante e ameaçador, e sim do conhecido bug do milênio, ou a constatação de que os computadores não estavam preparados para reconhecer o ano 2000, daí se originando uma tremenda especulação nos mercados informáticos e financeiros) – sou incumbido de discorrer sobre a Internet e o Código de Processo Civil.

 Essas entidades tão voláteis, a primeira mudando a cada segundo por incorporações tecnológicas que já a aproximam tanto da televisão quanto da palma de nossas mãos,  e o segundo quase todos os dias por uma sucessão de leis e de medidas provisórias,  só têm em comum a base da tríplice identidade: 1 – nasceram sob regime militar, 2 – foram concebidos por uma elite, para atender aos interesses da elite, 3 – têm caráter instrumental, mas comumente são vistos como uma essencialidade, como algo com princípio e fim em si mesmo.

            Hoje, nem mesmo a coisa julgada, o instituto em que Eduardo Couture foi buscar o traço distintivo da jurisdição e do processo judicial em relação às demais formas de atividade pública, resiste aos avanços da tecnologia, nem do tecnicismo a serviço das entidades mantenedoras da ordem mundial. Tanto é assim que a certeza da prova resultante do exame de DNA vem ensejando discurso cada vez mais veemente pela revisibilidade das decisões judiciais mesmo após esgotados os recursos, sempre que sobrevenha a verdade técnico-científica. Assim, a justiça seria realizada não mais nos pretórios, e sim nos laboratórios. E os políticos e altos burocratas pregam a mutabilidade das decisões da mais alta corte de justiça toda vez que contrariarem os planos e metas políticas transnacionais.

            A Internet e o CPC brasileiro em vigor são criações trintenárias . A rede de computadores  conectados à linha telefônica foi testada pela primeira vez em outubro de 1969, unindo bases militares situadas em Utah  e na  Universidade da Califórnia, como resultado de pesquisas do Exército norte-americano, destinadas a proporcionar um meio de comunicação alternativo e praticamente impossível de sofrer descontinuidade. Nesse mesmo ano, o governo militar brasileiro nomeava  comissão constituida pelos juristas José Frederico Marques , Luiz Machado Guimarães e Luiz Antonio de Andrade para rever o ante-projeto elaborado pelo Ministro da Justiça, professor Alfredo Buzaid. O documento foi ao Congresso Nacional em 1972 e recebeu aprovação em 11 de janeiro de 1973, para entrar em vigor em 1 de janeiro de 1974. Esse é um exemplo de que, se os donos do poder apoiam um projeto de código, a tramitação legislativa  é rápida. Seria esta, em sentido contrário, a explicação de os projetos do Código de Processo Penal  e do Código Civil restarem dormidos no Congresso há décadas.

            Nos seus primeiros anos, a então denominada Arpanet servia apenas aos militares, que, com   apoio técnico das universidades dos Estados Unidos, desenvolveram poderosos meios de transmissão de dados entre computadores, como o protocolo de transferência FTP, o correio eletrônico (em 1972) e o protocolo de transmissão TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol), em 1982. Somente em 1979 a Internet ganhou uso civil, com a Usenet, empregada nos círculos universitários para formação de listas de discussão sobre temas científicos das diversas áreas do conhecimento. Vê-se que a rede, criada pela elite militar, servia a fins militares, no começo, depois a fins técnico-científicos da elite universitária, ganhando, aos poucos, dimensão mundial, mas restrita ao ambiente universitário, até que o jovem professor inglês Tim Berners Lee inventou o recurso de hipertexto, um sistema de ligações entre páginas lançadas na rede de computadores. Com um simples toque de mouse numa área de texto se abre outra área ou outra página. Daí  surgiram os sítios WWW – world wide web, vasta teia mundial – e as aplicações de texto, gráficos, sons e imagens que atraíram as atenções de pessoas dos mais diversos ramos de atividade para a rede que hoje une dezenas de milhões de computadores em todo o planeta.

No início, a Internet era frequentada apenas por iniciados, experientes técnicos da informática. Hoje, qualquer criança pode ali navegar. Lá se realizam, se realizam operações bancárias, compra de mercadorias e todo tipo de comércio, além da oferta infinita de informações e diversão. Já não é possível estigmatizar o internauta como um maníaco lúdico. Coisa muito séria se passa na rede das redes e afeta as nossas vidas, para o bem e para o mal.

            Isso porque a  Internet se abriu, se democratizou, não tem donos, se expandiu até os lugares onde a expressão é vigiada, por todos os continentes. Será que poderíamos fazer julgamento semelhante da evolução do nosso CPC? Não.

 Criado, também, pela elite para servir aos interesses da elite política e econômica, o diploma instrumental civil não se beneficiou dos efeitos da abertura democrática, e é ainda usado para entravar as conquistas populares inseridas na Constituição de 1988, como as ações coletivas e o mandado de injunção. As reformas que sofreu, embora tecnicamente bem intencionadas, não o tornam um meio de efetivação de justiça rápida e segura,  de acesso a qualquer do povo. Os únicos meios procedimentais criados nos últimos anos que pretendem alcançar os ideais da rapidez e da amplitude do acesso popular, os juizados especiais e de pequenas causas,  são estabelecidos ao lado do código e com limitações que demonstram o viés ideológico da discriminação dos mais pobres. A Internet não para de crescer e se popularizar porque se despiu do caráter elitista e se dirigiu aos anseios gerais. A nossa lei processual teria que seguir o mesmo curso, prestando-se ao recebimento de postulações, à coleta da prova e à decisão em tempo razoável que permita a combinação da segurança jurídica com a rápida pacificação social.

            Esta é uma mera introdução. A idéia que buscamos desenvolver neste trabalho é de que os operadores do direito no Brasil devem utilizar os recursos postos à disposição de todos, no mundo inteiro, pela Internet, mas não apenas para atender a objetivos individuais e corporativos, mas para atingir à finalidade da democratização e da modernização do processo.

            Dentre esses recursos operacionais, deixemos de lado o FTP e a Usenet e nos concentremos no correio eletrônico e na WWW, porque neles estão as mais amplas aplicações adotadas a partir de 1995 pelos tribunais e juízos brasileiros.

 

POSTULAÇÃO E COMUNICAÇÃO

 

            Em primeiro lugar, é preciso lutar pelo reconhecimento do correio eletrônico como meio de transmissão de peças processuais. A Lei 9.800/99 permitiu a transmissão de petições por fac-símile ou por outro meio eletrônico, mas a resolução do Supremo Tribunal Federal que a regulamentou, com eficácia no âmbito da mais alta corte, frise-se,  só se refere a transmissão por fax, com evidente caráter restritivo. O fax hoje é muito menos empregado que o correio eletrônico. Brevemente, estará para o e-mail como a máquina de escrever para o computador pessoal. É que já é possível passar mensagem de correio eletrônico até mesmo para telefones celulares e se criar endereços sem possuir computador pessoal. ou abrir correspondência de qualquer lugar em que se estiver. O fax, pois, tem limitação física que é estranha ao correio eletrônico.

            Ainda quanto à aplicação da Lei 9.800, é necessário que os tribunais a regulamentem, o quanto antes,  para indicar os endereços de correio eletrônico e os números de fax para os quais devem se destinar as petições; para estabelecer que as mensagens devem ser, de imediato,  impressas e encaminhadas ao juízo destinatário ou à distribuição, e, cumulativamente, também de imediato, enviadas ao juízo destinatário; que os juízes devem despachar tais petições preferencialmente (não faz sentido , porque descaracteriza a finalidade da lei, determinar , como o faz a resolução do STF, que o juiz despachará a petição após a juntada do original).

            A propósito da juntada do original da petição encaminhada por fax ou pelo correio eletrônico, é preciso esclarecer que neste último há a mesma margem de segurança  que no fax ou na correspondência comum. Se nesta última há uma assinatura, que pode ser falsificada, e no fax é identificado o número do transmissor, no e-mail também está indicado o endereço do emitente, embora suscetível de fraude, mais dificilmente que nos demais meios de comunicação. 

 

PRODUÇÃO DE ATOS PROCESSUAIS POR VÍDEO CONFERÊNCIA

 

            Outro ato processual que pode perfeitamente ser realizado pela Internet  é a tomada de depoimento pessoal ou a ouvida de testemunha, e até a direção da audiência, em situações excepcionais. A parte se encontra em viagem ou tem compromisso inadiável no dia da audiência. Poderá o seu advogado requerer ao juiz que o seu depoimento seja colhido por vídeo-conferência, baseando-se no disposto no art.410, II do CPC.

               Os juízes criminais de São Paulo já realizaram, com êxito, interrogatórios de réus presos pelo sistema de vídeo conferência. Recentemente, em Londres, a juíza Valerie Pearlman, de 62 anos, integrante da Southwark Crown Court, internada num hospital de Worthing, em consequência de um acidente em que fraturou as pernas, presidiu o júri a que se submeteram quatro réus, três dos quais foram considerados culpados e condenados. Ligada à sala de audiências por computadores munidos de câmeras, a juíza Peralman dirigiu os trabalhos do leito do hospital. A lei francesa contempla o emprego da visio-conference  para ouvida de menores em casos de infração de que sejam vítimas ou autores. Do mesmo modo, a lei processual austríaca. 
               Uma aplicação importante do recurso da vídeo-conferência seria a condução dos trabalhos nos processos ligados ao crime organizado. No processo civil, casos de anulação de atos negociais, de medida cautelar fiscal, de improbidade administrativa e outros tantos destinados à interdição da lavagem de dinheiro, à punição civil ou à apuração da validade da sanção administrativa teriam o uso da direção ou da tomada de depoimentos à distância como uma forma de proteção dos juízes ou de testemunhas . Os juízes, em sistema de revezamento, nessas hipóteses, não seriam vistos pelas partes, mas as estariam vendo, aos advogados e às testemunhas, conectados à sala de audiência por computadores. 
 
               PROVA POR MEIOS ELETRÔNICOS
               

            Passemos, então, à questão da prova dos atos processuais praticados via Internet. O comércio eletrônico se intensifica a ritmo vertiginoso. Livros, discos, equipamentos, programas, até mesmo automóveis são anunciados e os negócios se completam nos sítios WEB  das empresas, mediante preenchimento de formulários, com a escolha da mercadoria, a indicação do modo de entrega (geralmente pelo correio) e o meio de pagamento (geralmente pelo cartão de crédito ou por depósito bancário). Tanto em sentido amplo (“não apenas os escritos, mas toda e qualquer coisa que transmita diretamente um registro físico a respeito de algum fato, como o desenho, as fotografias, as gravações sonoras, filmes cinematográficos etc” - Humberto Teodoro Júnior, Curso, 18a. Ed. pag. 442), como em sentido estrito (“...documentos escritos, que são aqueles em que o fato vem registrado através da palavra escrita, em papel ou outro material adequado” – idem)  é possível a utilização de documentos oriundos de relações estabelecidas na Internet. O conteúdo dos negócios realizados pela Internet tem registro físico. O formulários, após preenchidos e enviados, podem ser impressos, gravados no disco rígido e em disco flexível. As empresas vendedoras ou intermediárias da compra e venda costumam emitir, ao fechar a operação, um documento com o número de ordem, permitindo a impressão e fácil prova de que o negócio foi fechado. Quanto à remessa e à entrega da mercadoria, como se realizam pelo correio (público ou privado), também aí há diversos documentos certificadores dos atos respectivos, como o conhecimento de transporte, a fatura, etc.

            Algo distinto é o instrumento, aquele documento produzido com a finalidade específica de produzir prova futura do acontecimento. Ainda não existe no nosso ordenamento órgão incumbido de coletar e certificar a produção de instrumentos públicos pela Internet. Na França, em excelente artigo sob o título “Les technologies de l’information au service de la modernisation du service pubic de la justice en France” , o juiz François Staechele, atual presidente da Corte de Epinal, refere-se ao projeto de lei em elaboração para introduzir o direito de prova eletrônica no direito francês, provendo a autenticação, a assinatura eletrônica, a força probante dos documentos digitalizados, novos provedores de armazenamento, dentre outra medidas indispensáveis à estabilização jurídica desses meios de comunicação.

            Já existem empresas privadas que oferecem a certificação e a guarda de documentos produzidos na Internet com a finalidade de prova dos atos. O sítio http://www.protecrea.org/ , por exemplo, certifica invenções de todo gênero (artíticas, programas de computador, etc.). Assim, o inventor pode, no futuro, provar a precedência.

A União Européia e os Estados Unidos já aprovaram o uso da assinatura eletrônica (código embutido em mensagens ou transações eletrônicas que permite ao destinatário identificar e autenticar o remetente e certificar-se de que os dados não foram alterados na transmissão).

            A Polícia Federal brasileira conseguiu detectar a autoria do crime de  divulgação de boatos com a finalidade de prejudicar instituição financeira, praticado pelo empresário Ricardo Mansur, com a propagação de mensagens múltiplas de correio eletrônico anunciando que o banco Bradesco estaria atravessando séria crise e iria falir. As mensagens eram emitidas de uma conta de Londres do HotMail. O caso tem repercussões na área civil, de imediato, pois a Barnet Indústria e Comércio S.A., sucessora da United Indústria e Comércio S.A., holding que controlava o Mappin, ambas dirigidas  por Mansur, estão acionando o Bradesco, na 29.ª Vara Cível de São Paulo, alegando que o banco contribuiu para a quebra da rede de lojas de departamento Mappin pelo fato de não ter feito o repasse de créditos que havia se comprometido a fazer.

 

            O CPC, arts. 383, 384 e 386, contém normas aplicáveis às reproduções “obtidas por outros processos de repetição”  de documentos particulares, que assim se resumem:

1 -  tais reproduções evidentemente incluem as que se materializam em papéis impressos, discos flexíveis ou discos rígidos, discos compactos (CDs);

2 – se a parte contra a qual for produzida admitir a conformidade o documento provfará os fatos ou as coisas representadas (art. 383);

3 – quando impugnada a autenticidade, o juiz ordenará a realização de exame pericial (parágrafo único do art. 383);

4 – tais reproduções podem originar certidões (art. 384), desde que apresentado o original ao escrivão, que portará por fé a sua conformidade com o original (digamos que alguém tenha sofrido lesão provocada pela invasão do seu sítio Internet e queira instrumentalizar tal prova; poderá levar o escrivão a um computador ligado à rede, abrir o sítio, gravar em disco flexível as páginas alteradas e pedir a certidão).;

5 – mesmo sem a certidão, e desde que feita a gravação, preferencialmente diante de testemunhas, ter-se-á um documento hábil à prova do estado das páginas naquele momento, dado o princípio do livre convencimento (art. 386, c.c. 332 e 335).

 

ACESSO À JUSTIÇA

 

            A Internet, como dito acima, evoluiu bastante nestes 30 anos, e o fez para alcançar sempre mais e mais pessoas no mundo inteiro, especialmente no Brasil dos últimos cinco anos, incorporando-se ao dia a dia  de parcela considerável da população . Não poderia ser negligenciada pela Justiça . O juiz Staechele, no artigo mencionado, acentua dos aspectos dessa integração: a rede mundial de computadores, na medida em que passou a contar com a participação efetiva de juízos e tribunais, provocou uma sensível ampliação do acesso ao juiz, aos sítios públicos e privados que fornecem decisões judiciais, permitem o acompanhamento de processos, apresentam notícias das cortes, e também o acesso ao direito, com esses mesmos informes e, mais, a publicação de artigos jurídicos.

            Num futuro próximo, as intimações processuais deverão utilizar o meio expedito da publicação em página WEB e da comunicação pelo correio eletrônico. O advogado, além de fornecer o endereço físico do seu escritório, deveria indicar o endereço virtual. As procuradorias públicas, ao invés dos repugnantes privilégios que se sucedem por meio de medidas provisórias, causando o atraso no andamento dos feitos, teriam que ser intimadas pelo correio eletrônico.

            O uso intensivo dos recursos da Internet constitui, enfim, um meio relevante para a democratização da Justiça e seu ajustamento ao ritmo da vida econômica e social dos novos tempos.

 

 Retirado de: www.elogica.com.br