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A   ANAMNESE  DA  PRISÃO EM FLAGRANTE

Mário Antônio Silva Camargos

        O flagrante delito, como motivo determinador da prisão dos delinqüentes, data de longo tempo entre nós.

        A sua história mostra que ele tem sofrido modificações, reclamadas pelo direito, que progride e se aperfeiçoa para atender melhor às necessidades sociais.

        Já as Ordenações Filipinas (Philippinas - livro I, Título 65, parágrafo 37), atribuía à Justiça o poder de prender em casos de ferimentos, dizendo:

 
" E mandamos que, quando as justiças acodirem aos arroidos, onde acharem alguma pessoa ferida, e lhes fôr dicto e mostrado aquelle ou aquelles, que se disserem ser culpados, os prendam logo, como que delles tivessem culpas obrigatorias para prisão.
E posto que lhes não seja requerido por parte alguma, nem dicto qual é o culpado, si ao Juíz no arroido parecer, que alguns são culpados, poder prender até seis pessôas. "


    Levantando dúvidas sobre o dispositivo da citada Ordenação, foi decretada a Lei de 25 de setembro de 1603, declarando como se deveria entender as prisões em flagrante delito, e ao mesmo tempo estendendo-a a outros casos, seguintes:

" Faço saber aos que esta Lei virem, que eu fui informado, que algumas pessôas se aggravam por instrumento e petições, de serem presos, sem primeiro constar de culpa porque o devem ser, allegando que não foram presos em flagrante, e são providos por despacho das Relações, por se duvidar pelos Desembargadores dellas,si foram presos em flagrante, na fórma da Ordenação do liv. 1, tit. 65, § 37, do que se segue notavel prejuizo á Justiça e damno ás partes offendidas.   Pelo que, querendo eu nisso prover como convém ao serviço de Deus, e meu, para se atalhar aos delictos, e os delinquentes serem presos e castigados, como por suas culpas merecerem, com o parecer do meu Conselho, além do que a dicta Ordenação dispõe:

Hei por bem, e mando, que quando os julgadores, ou quaesquer outros
officiaes de Justiça, que poder tiverem para prender, acudirem a brigas e arruidos, e quaesquer outros delictos, pelos quaes os delinquentes, conforme as minhas Ordenações, devem ser presos, posto que não achem na briga, nem lhe sejam mostrados para logo os poderem prender, ou chegarem a tempo, que haja pouco espaço, que a briga foi acabada, e o delicto commetido, tendo informação certa por onde os delinquentes fugiram, sem perguntarem mais testemunhas, os seguiram, e procuraram de com effeito os prender, posto que fóra do logar, onde cometteram o delicto, continuando o seguimento delles e não se divertindo a outras cousa alguma, porque pareça que deixaram de os seguir; e os que nesta fórma forem presos, apraz (por ser conforme o Direito) que hajam, e regulem por presos em flagrante..."


        A Ordenação considerava, pois, flagrante delito, os casos em que a Justiça, acudindo aos arruídos (clamor, desordem, tumulto, briga), encontrava alguém ferido.

        A prisão recaía, necessariamente, sobre aqueles que fossem apontados como os delinqüentes.  E, se não apontado ninguém, poderia o Juiz mandar prender até 06 (seis) pessoas que lhe parecessem culpadas.

        A lei de 1603 foi mais além:  determinou que fossem presos como em flagrante aqueles delinqüentes que houvessem fugido depois de cometido o crime, uma vez que a luta tivesse acabado pouco tempo antes do aparecimento da autoridade, e esta, recebendo informação exata da direção seguida pelos delinqüentes, fosse à sua procura sem interrupção.

        Violento e arbitrário, o certo é que o nosso antigo Direito atribuía ao Juiz o poder para prender em flagrante até  6 (seis) pessoas que lhe parecessem culpadas, quando ele Juiz, indo a qualquer lugar onde tivesse acontecido algum tumulto ou briga,  encontrasse alguém ferido, e não lhe fosse indicado qual o culpado.  Também em flagrante, a prisão que os Oficiais de Justiça deveriam efetuar, quando eles Oficiais, acudindo a qualquer crime, não encontrassem de pronto o delinqüente, mas tivessem informações certas do local para onde fugira.

        A Constituição Política de 25 de março de 1824, declarando no seu art. 179, garantir por diversas maneiras a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros que tivessem por base a liberdade e a segurança individual, determinou que ninguém pudesse ser preso sem culpa formada, exceto nos casos especificados na lei, e que a prisão somente fosse executada por ordem escrita da autoridade legítima, salvo em flagrante delito.

        Desde então a prisão em flagrante passou a ser efetuada em virtude do preceito constitucional.
 

        Decretado o Código Criminal, em 16 de dezembro de 1830, os casos de flagrante delito deixaram  de obedecer as legislações anteriores, jogando por terra as prescrições do direito penal codificado nas Ordenações Filipinas.

        Com esse Código Criminal, foi que surgiu, então, o princípio basilar até hoje vigente, preceituando que:  " não haverá crime, ou delicto, sem uma lei anterior que o qualifique. "

        Com a Carta Política de 1825 e o Código Criminal de 1832, veio ainda nesse mesmo ano (1832) o Código de Processo Criminal, dispondo em seu art. 131, in verbis:

" Qualquer pessoa do povo póde, e os officiaes de justiça são obrigados, a prender, e levar á presença do Juíz de Paz do Districto, a qualquer que fôr encontrado commettendo um delicto, ou emquanto foge,   perseguido pelo clamor publico.
Os que assim forem presos, entender-se-ão presos em flagrante delicto."


        A partir de então, os primeiros conceitos de flagrante delito:

PIMENTA BUENO (Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro):  " Flagrante delicto é aquelle que na actualidade se está commettendo, ou que acabou de commetter-se sendo o réu ainda acompanhado pelo clamor publico, pessoas que o perseguem, ou estando ainda com armas e instrumentos, ou effeitos do crime, em acto consecutivo. "

PEREIRA e SOUZA ( Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal):
" Flagrante delicto se chama aquelle mesmo acto successivo, em que se vae em seu seguimento. "

 
        Àquela época, o Direito Comparado:

        O Código Francês de Instrução Criminal, em seu art. 41:  " O delicto, quese commete actualmente, ou se acaba de commetter, é um flagrante delicto, caso em que o réo é perseguido pelo clamor publico, e o que é preso com os effeitos, armas, instrumentos, ou papeis, fazendo presumir que elle é autor ou cumplice, contando que isso seja em tempo proximo do delicto. "

O Código Português, no seu art. 1020:  " Flagrante delicto é aquelle que se está commettendo, ou se acaba de cometter, sem intervallo algum.  Reputa-se tambem flagrante delicto o caso em que o delinquente, acabando de perpetrar o crime,foge do lugar delle, e é logo, contínua e successivamente, seguido pela Justiça, ou por qualquer do Povo. "


        Institucionalizando desde essa época o princípio até hoje ainda não absorvido na sua inteireza e essencialidade  - dos direitos e garantias fundamentais  - a citada lei instrumental já não consentia que quem quer que seja fosse privado do oferecimento de uma prova direta e pública de que fora ele o autor de uma violação penal.

        Assim, passaram os jurisconsultos da época a dar interpretação ao texto legal, a inibir a prática de atos arbitrários ainda hoje corriqueiros entre nós.

        Tema  ainda hoje controvertido, já advertiam os estudiosos da ciência do Direito, coadjuvantes do nosso primeiro processo criminal, tratando da perseguição e do clamor público, o seguinte:

SPENCER VAMPRÉ, Professor da Faculdade de Direito de São Paulo:

Com efeito, o clamor público, essa manifestação popular em perseguição do delinqüente, deve ser consecutivo, imediato à ação criminosa, e não pode ter intermitências, ou solução de continuidade, porque o clamor público, que é a princípio levantado pelas pessoas que presenciaram a mesma ação, aumenta, cresce, e se avoluma, pelo concurso de outras pessoas, que também vão no encalço do delinqüente, com o fim de fazer efetiva a prisão.

    Em tais condições, já advertia o mestre,  " a prisão somente é reputada em flagrante delito se é realizada quando o delinqüente é apanhado cometendo o crime, ou quando ele, tendo praticado o ato delituoso, vai se retirando do lugar para frustrar o esforço das   pessoas que o perseguem, com o intento de capturá-lo, e conduzi-lo à presença da autoridade. "

        Assim, continua o saudoso professor,   " não pode haver prisão em flagrante, sem testemunhas presenciais do delito, pessoas, que, tendo visto o delinqüente cometendo o crime, lhe deram voz de prisão,   que realizaram imediatamente, ou foi efetuada em ato contínuo, se o delinqüente, fugindo do lugar do crime, foi sem interrupção perseguido pelo clamor público. "

        Ainda, em arrimo com o Código Francês de Instrução Criminal, que considerava também  haver flagrante delito quando o réu era preso com os  "efeitos " do delito, ou sejam, armas, instrumentos ou papéis, fazendo presumir-se ter sido ele o autor ou cúmplice, foi aqui ampliado o conceito do ato flagrancial, alargando  os próprios  traçados do Código de Processo Criminal, chegando OLEGÁRIO H. DE AQUINO E CASTRO, em seu manual  Prática das Correições, a estabelecer um terceiro caso de flagrante delito:  "   em que qualquer pessoa poderá ser legitimamente presa, isto é, estando ainda com as armas e instrumentos ou effeitos do crime em acto succesivo. "
 

        No entanto, já precaviam os doutrinadores:

" Em verdade, o encontro de alguém, após um crime, com os objetos, armas e
instrumentos do mesmo crime, desperta a suspeita, ou a presunção, de que
esse alguém é o autor do crime, que foi praticado, ou cúmplice.  Mas, por
isso mesmo que há na hipótese uma presunção, é que a prisão não deve ser
efetuada."


    Assim com quem é encontrado com as armas, instrumentos, ou efeitos de um crime, que se acabou de cometer, pode ser autor ou cúmplice, também pode ser completamente estranho ao mesmo crime.

        Divergindo, portanto, do posicionamento assumido por Olegário H. De Aquino e Castro, seguido também por Pimenta Bueno, ponderações houveram no sentido exemplificatório de que:  Se uma pessoa encontrar outra agonizante, em conseqüência de um ferimento que recebeu, e retirar da vítima a arma mortífera, na ocasião em que se aproximar uma terceira pessoa, esta poderá prender a que se achar com a arma em punho, posto que configurado estaria a situação de flagrante.

        Se, em um conflito, de que resultar a morte de um dos lutadores, intervir uma pessoa, e conseguir apossar-se da arma homicida, e, fugindo o criminoso, aparecerem, em ato contínuo, outras pessoas, estas poderiam prender o interventor que ainda detivesse a arma, porque em estado de flagrante.

        Se a um suicídio, alguém acudir em socorro da vítima e tomar-lhe a arma, sobrevindo em ato consecutivo outras pessoas, estas igualmente poderiam prender aquela que se achasse ainda com a arma, porque em estado de flagrante.

        No crime de furto, se alguma pessoa apanhar o objeto subtraído, que o criminoso abandonou, certo de que era perseguido, ou aprendê-lo, por conhecer que era furtado, a fim de entregá-lo à competente autoridade, a mesma pessoa poderia ser presa por aquelas que, em perseguição ao criminoso, se a encontrasse com o  objeto furtado, porque nessa situação configurado estaria o estado de flagrante.

        Nos citados casos figurados, e em muitos outros que semelhantemente pudessem ocorrer, a prisão seria injusta, arbitrária e violenta, porque indubitavelmente recaía sobre um inocente.

        Mais porque, o Código de Processo Criminal, em seus artigos 132 e 133, já determinava que o Juiz, interrogando o preso em flagrante sobre as argüições apresentadas pelos condutores e pelas testemunhas, somente poderia determinar a custódia,   " em lugar seguro ", se do interrogatório resultasse suspeita fundada, não havendo, então, injustiça, arbitrariedade ou violência, porquanto a prisão seria fulcrada na lei processual.

        Assentando os casos de prisão em flagrante apenas às duas ventiladas hipóteses ( quando alguém é encontrado cometendo crime, ou enquanto foge, perseguido pelo clamor público), aplicava-se, também, as disposições do Regulamento nº 120, de 31 de janeiro de 1842, que em seu art. 114, dispunha que os Chefes de Polícia, Delegados, subdelegados e Juizes de Paz, poderiam, estando presentes, fazer prender, por ordens verbais, os que fossem encontrados cometendo crimes, ou que, fugindo, fossem perseguidos pelo clamor público.

        Fora desses casos, a prisão somente poderia ocorrer por ordem escrita, na conformidade do art. 176, do Código de Processo Criminal.

        Portanto, a prisão somente poderia ser efetuada sem ordem escrita da autoridade nos dois precisos casos do art. 131, inexistindo, fora deles, qualquer outra espécie de flagrante delito.

        Além do mais, ressalte-se,  o art. 114, do referido Regulamento, exigia a presença da autoridade como condição para a efetivação da prisão sem ordem escrita, eqüivalendo dizer que não poderia haver prisão em flagrante sem testemunhas presenciais do delito.

        A própria autoridade não tinha o poder de fazer prender se não estivesse presente, e portanto, sem  que não tivesse visto praticar-se o crime, ou sem que tivesse  visto o delinqüente ir fugindo, perseguido pelo clamor público.

        De conseguinte, forante as duas sobreditas hipóteses para os casos de prisão em flagrante,  a prisão, antes da formação da culpa, somente poderia ter lugar, nos crimes afiançáveis, por mandado do juiz competente, ou à sua requisição.  Mesmo assim, nesses casos, precedendo-se ao mandado ou à requisição, declaração de duas testemunhas, jurando de ciência própria, ou prova documental, que resultassem veementes indícios contra o culpado, ou declaração desse confessando o crime ( art. 13, # 2, Lei nº 2033, de 20 de setembro de 1871).

        De tudo, a mostra de que, não fosse o crime presenciado por alguém,  e  quem fosse o seu autor, não teria lugar a prisão em flagrante.
 

DECISÕES PRETORIAS DA ÉPOCA:

 
" É illegal a prisão, quando não effectuada em flagrante delicto, ou
determinada por mandado de Juíz competente. " Acc. Do STF, em 18 de agosto
de 1924 - Rev. Do STF, vol. 68, pág. 410.

" Á excepção de flagrante delicto, a prisão não poderá executar-se sinão
depois da pronuncia do accusado, salvo nos casos determinados em lei, e
mediante ordem escripta da autoridade competente, sendo ilegaes as prisões
para averiguações policiaes. " Acc. Do STF, em 9 de julho de 1924. Rev. do
STF, vol 65, pág. 200.

" A' excepção do flagrante delicto, ninguem póde ser preso, ou conservado
em prisão, sem mandado escripto do Juíz, competente para a formação da
culpa, ou á sua requisição. " Acc. Do Sup. Trib. do Amazonas, em 15 de
março de 1916, nos julgados do mesmo Tribunal, pág. 44.

    " Concede-se habeas-corpus quando o paciente se acha privado de sua
liberdade, sem flagrante delicto, ou mandado de Juiz competente para a
formação da culpa, determinando a sua prisão preventiva. "  Acc. do sup.
Trib. do Ceará, em 32 de abril de 1920, in Julgados e Decisões, pág. 230.

" Prisão em flagrante não se reconhece fóra das hypotheses estabelecidas no
art. 131 do cod. do Processo Crim., e, evidentemente, em nenhuma dellas se
enquadra a dos pacientes, effectuada horas depois da referida apprehensão,
estando elles já agasalhados em suas casas, como dos autos consta.  E para
assim entender-se, não é obstaculo o mencionado termo de fls., inteiramente
destituido de authenticidade, por lhe faltarem requisitos essenciaes. "
Acc. do Sup. Trib. de Alagoas, em 22 de julho de 1916, in Nos julgados, de
Silva Porto, vol 2, pág. 61.

" Fora do flagrante delicto, o Delegado de Polícia não tem competencia para
ordenar a prisão de réos que vão ser processados. " Acc. do Sup. Trib. de
Porto Alegre, em 11 de outubro de 1895, in Nas Decisões, pág. 34.

Obs : As declarações feitas são de inteira responsabilidade do autor.

Mário Antônio Silva Camargos é Advogado em Gurupi - TO.

Artigo retirado do endereço: http://www.trlex.com.br/resenha/camargos/flagra.htm