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A formação do neoconstitucionalismo e sua prevalência na contemporaneidade
Vitor Costa Oliveira*
Sumário:1 - INTRODUÇÃO; 2 - GIRO CIENTÍFICO – EPISTEMOLÓGICO; 2.1 Origens da
mecânica positivista; 2.2 Ascendência de uma nova concepção de ciência social –
o direito é também objeto da cultura; 2.2.1
Razão, (in)certeza e retórica; 2.2.2
Reflexividade; 2.2.3 Método: a
negação da "física-social"; 3 - GIRO POLÍTICO – SOCIAL; 4 -
GIRO JURÍDICO-HERMENÊUTICO; 4.1 Lógica formal e legitimação na hermenêutica
positivista; 4.2 A convergência político-filosófica para a hermenêutica
constitucional; 4.2.1 A dialógica como
método e a "ressureição" do direito. 4.2.2 A hermenêutica
principiológica 4.2.3 A questão da legitimidade; 5 - A CONSTITUIÇÃO COMO
INSTRUMENTO COMPETENTE PARA REGER O DIREITO PÓS-MODERNO(PÓS-POSITIVISTA); 6 -
NOTAS SOBRE OS EFEITOS DO NEOCONSTITUCIONALISMO SOB O DIREITO PRIVADO; 7 -
CONCLUSÃO-SÍNTESE.
1 – Introdução
Apesar de Kelsen,
apoiado na jurisprudência dos conceitos, ter sistematicamente hierarquizado o
ordenamento jurídico, localizando no ápice da pirâmide as normas
constitucionais, a força cogente – normativa e ideológica – das Cartas
políticas só veio de fato a se manifestar sob o ordenamento jurídico
(notadamente na seara jusprivatística) a partir de giros teóricos e filosóficos
de diversos matizes, que deram origem, no campo, jurídico ao fenômeno
contemporâneo chamado de neoconstitucionalismo. Tal expressão busca explicar
justamente que o constitucionalismo encontra-se sob uma nova fase histórica, de
sobreposição jurídica e relevância política jamais notada.
Com efeito,
destaca-se recorrentemente na hermenêutica hodierna a pujança das Constituições
nos ordenamentos jurídicos, seu papel diretivo e sua função filtragem diante
das normas inferiores. Destacam-se como características marcantes deste
neoconstitucionalismo, como apontado, por exemplo, em Luís Roberto Barroso
(2005) e Ana Paula Barcellos (2005): a) a superioridade da constituição; b) a
normatividade da constituição (destacando-se a normatividade dos seus
princípios); c) a característica de "filtragem constitucional" (as
normas infraconstitucionais, todas elas, são interpretadas a partir da
constituição e invalidadas no caso de desobediência, mesmo – e aí a grande
mudança – se analisadas em choque com o direito privado); d) a adoção de
posicionamento programático diretivo, calcado
na escolha de patamares ideológicos.
O estudo das novas
manifestações do constitucionalismo no direito contemporâneo – em vias de
pós-positivismo – está merecendo destaque na doutrina mais especializada, ainda
que suas manifestações ainda causem certo estranhamento à maioria, acostumada
com a simploriedade do positivismo. Este trabalho, ainda que se trate de
neoconstitucionalismo, não tem como objetivo principal, contudo, destrinchar as
características desse movimento – algumas delas acima noticiadas – mas põe seus
esforços a desvendar os motivos ou origens, ou, noutro dizer, a formação do
terreno em que puderam repousar novos elementos do direito constitucional. O
neoconstitucionalismo não é um auto-referencial, senão que provêm de uma série
de mudanças de concepção filosóficas e político-sociais, as quais, ao que
parece, elegem como mais eficaz meio de tratar suas demandas a Constituição
vista de uma nova forma. Além, pois, de considerar como objetivo buscar as
fontes do neoconstitucionalismo, o trabalho defende que ele se apresenta como
melhor referencial jusfilosófico da contemporaneidade. Tal está claro na
conclusão do texto.
Evidente, por
outro lado, que mesmo não sendo objetivo principal analisar as características
do neoconstitucionalismo, é inevitável tratar de algumas delas para posicionar
o movimento ante as novas e antigas tendências.
O texto traz
basicamente quatro partes, com suas subdivisões: a primeira trata do que
chamamos "giro científico-epistemológico", fundamental, a nosso ver,
para compreender a derrocada do paradigma juspositivista e a atual hermenêutica
constitucional; a segunda, do giro político-social, relevante para compreender
o novo papel assumido pelo Estado notadamente após a segunda guerra e, em
conseqüência, compreender o caráter dirigente das constituições atuais; a
terceira mergulhará já na Filosofia do Direito, trazendo alguma comparação
entre o paradigma positivista e o (chamado) pós-positivista, onde se
enquadraria o neoconstitucionalismo; por último, ressalta-se o perfeito encaixe
do neoconstitucionalismo diante da proposta filosófica e política da
contemporaneidade.
Tratemos
inicialmente da mudança apreciada no campo científico-epistemológico,
ressalvando já a complexidade da questão, que tem a ver com a mudança de ares e
a falta de parâmetros que nos trazem aquilo que calhou denominar-se
"pós-modernidade" [01]. No momento da abordagem
jurídico-hermenêutica será melhor compreendida relação entre os temas propostos
nos dois próximos tópicos.
2 - GIRO CIENTÍFICO - EPISTEMOLÓGICO.
2.1 Origens da mecânica positivista.
Os postulados da
ciência moderna, traçados no século XVII, carregavam consigo a marca da
influência de o cartesianismo de Renè Descartes e do mecanicismo universal de
Isaac Newton. [02] O primeiro traçou uma espécie de raciocínio
linear, fundado na matemática analítica, que dentre diversas características
destacam-se possibilidade de capturar a verdade, filosoficamente fundada na
razão, e a de nunca se poder encontrar mais de um juízo correto sobre o mesmo
tema [03], pois havendo uma explicação matemática, racional, apenas
uma solução poderia ser válida. [04] Já a mecânica newtoniana
conseguiu traçar um mundo com um ordenamento perfeito e de características
universais, todo ele explicável pelas fórmulas encontradas nos fenômenos
naturais, fundada numa relação de causalidade constante, competente mesmo para,
a partir de dados prévios, prever os movimentos ainda não ocorridos. Como disse
Santos (2003:31) acerca desta faceta, "tudo o que aconteceu teria tido uma
causa definida e dado origem a um efeito definido, e o futuro de qualquer parte
do sistema podia – em princípio – ser previsto com absoluta certeza".
No que pertine
mais aproximadamente a este trabalho, que trata de uma ciência cultural – o
direito – deve-se dizer que, posteriormente, no século XIX, esta relação de
causalidade, que pode ser também denominada de determinismo mecanicista, esta é
tomada como método na elaboração dos primeiros estudos de ciências sociais,
empreendidos, como sabido, por Augusto Comte. Nasce, pois, a escola
positivista, que tem como destacável característica a pretensão de poder-se
estudar a sociedade a partir dos mesmos métodos investigativos utilizados pelas
ciências naturais – daí a denominação de "física social", utilizada
pelo próprio Comte. (ANDERY et al, 1996).
É comum
hodiernamente considerar falha uma solução desta espécie face a reconhecida
subjetividade da ciência social – não parece ser possível tratar com o mesmo grau
de desapego política e botânica – e a característica reflexiva desta ciência
(explicada mais adiante). Contudo, o paradigma que formulou tal construção
teórica fundava suas idéias num ideal iluminista de razão pura o qual
justificava ser a grandeza do ser humano suficiente para superar quaisquer
contingências apaixonadas ou subjetivas, assentando que a neutralidade e a
objetividade da ciência eram postulados indebatíveis [05]. Este
paradigma, no seu aspecto epistemológico, sustentava-se fundamentalmente, pois,
em tais premissas: 1) a infalibilidade da razão humana; 2) a neutralidade do
observador e objetividade da ciência e o determinismo mecanicista; 3) estudo
das ciências naturais a partir dos mesmos métodos utilizados para o estudo da
natureza. Tais características serão a seguir abordadas, de forma crítica, e
sugerindo que uma nova realidade cientifico-epistemológica surge sobre os
escombros do positivismo.
2.2 Ascendência de uma nova concepção de ciência social – o direito é
também objeto da cultura.
Ainda no século
XIX, Dilthey [06] passou a distinguir as ciências entre
"físico-naturais" e "ciências do espírito", reservando para
esta última aqueles saberes em que não podia observar-se ou experimentar-se
empiricamente. Para elas, cunhou o termo "compreender", em
contraposição ao "explicar" constante no paradigma mecânico:
"explicamos a natureza, contudo compreendemos (Verstehen) a vida do
espírito" (apud Lopes,
2000). Por sinal, Dilthey cuida especialmente de localizar direito como ciência
do espírito, pois no direito "subsiste sem confusão o histórico-vital e o
organizativo social" (idem). Corroborando esta perspectiva de autonomia
cientifica e de critica ao paradigma positivista, outros fatores podem ser
relacionados como impulsionadores de uma nova concepção cientifica. Destacamos
três, em contraponto direto àquela tríade de características epistemológicas
acima apontadas em relação ao positivismo.
2.2.1 Razão, (in)certeza e retórica
Segundo Edgar
MORIN (2001) na modernidade – que, aqui, remete-se ao postivismo, em
contraponto ao pós-positivismo e pós-modernidade – [07]a razão
torna-se o grande mito unificador do saber, da sociedade e da política. Há-de
viver segundo a razão, isto é, repudiar os apelos da paixão. No caso da
ciência, mais incompatível tornam-se apelos emocionais. A verdade impõe-se
apenas ao espírito racional, desinteressado (SANTOS, 1989).
O racionalismo que
se desenvolveu mais claramente no Iluminismo sofreu profundos abalos [08]
que acabaram por desmistificar sua totalidade e pureza. Se antes havia
"uma base transcendental de valores" (GIDDENS,1991:50), também de
caráter universal e absorvida pelo espírito racional, hoje se defende, com
GADAMER, que toda compreensão é histórica, está imersa em prejuízos e a razão
não é absoluta nem sequer dona de si mesma, senão que está referida ao dado no
qual se exerce.
A razão deveria
implicar, dentro daquele contexto, a presunção absoluta de certeza. A certeza
cientifica, já que o mundo seria mecânico e previsível, lograr-se-ia alcançada.
Também esta faceta acaba degringolada. Mesmo Karl Popper – segundo Giddens, um
filósofo que ferrenhamente defende as reivindicações da ciência à certeza –
reconhece que "toda ciência repousa sobre areia movediça" [09]
(apud GIDDENS, 2001:46) Descendo então das nuvens em que chegou o ideário
racional, e observando uma ciência modificada pelo reencontro da razão com a
prática, interessante notar que a certeza cientifica – não expurgada de todo –
fora complementada pela noção da verdade construída: a certeza, ou a verdade, é
um dado encontrado dentro de um debate historicamente localizado, e não imposto
pela razão. Santos (1989:111) afirma que "a verdade é o resultado que se
obtém quando se assenta a poeira de uma discussão".
Diante deste
quadro em que a verdade não é mais captada, mas edificada dialogicamente, a
filosofia e as ciências sociais recuperam a retórica aristotélica, esquecida na
modernidade em função de sua assimetria com as ciências matemáticas. Sua função
reside em – já que a verdade é buscada argumentativamente – sistematizar as
questões e argumentos relevantes a um auditório (SANTOS, 1989).
Desta curta
digressão, pode-se concluir dois pontos relevantes para a compreensão do giro
científico-epistemológico:
1) O agir racional
é possível, contudo não é absoluto no tempo ou no espaço. Os valores são
traçados por prejuízos e tradições; as variações culturais moldam as instancias
éticas sem que a razão possa interferir claramente nesse resultado.
2) Não havendo uma
verdade inquestionável, e considerando "maníaca" a idéia de uma
ciência pura, decantada (MORIN, 2001) dilui-se a noção de aplicação matemática
da ciência, pois vazia de sentido. A retórica retoma o púpito e as ciências da
cultura são, mais claramente, sua platéia atuante.
2.2.2 Reflexividade
A noção de
reflexividade insurge-se em face de dois postulados epistemológicos legados da
racionalidade cientifica: a objetividade e a neutralidade. Estas, numa acepção
válida, remetem ao relacionamento sujeito-objeto, e da possibilidade das
interferências mútuas que acabariam por perturbam a produção da verdade
científica.
Convencida, como
acima demonstrado, das limitações do racionalismo, a epistemologia das ciências
sociais desabona também a possibilidade de conhecimento inteiramente objetivo e
desinteressado no âmbito dos chamados objetos da cultura. Assumindo, por outro
lado, este viés bastante franco, resolve por utilizá-lo exatamente como forma
para construir uma outra via de acesso ao conhecimento científico. A
reflexividade é uma postura cientifica de assumir as fraquezas dos sujeitos da
relação cientifica, e sua proposta é que, assumindo tal impossibilidade de
neutralidade pura nessa seara do conhecimento, a intersubjetividade seja a
objetividade possível [10]. Como afirma Sousa SANTOS (1989:75), em
resumo a este entendimento, diz-se que a "precariedade do conhecimento
científico está inscrita no próprio caráter social e construído do
conhecimento, e não é, por isso, superável. Pode, no entanto, ser atenuado, na
medida em que tal caráter se torna visível e manifesto e é assumido
intersubjetivamente".
2.2.3 Método: a negação da "física-social"
O determinismo
mecanicista do positivismo, que tratava como matemática as relações sociais –
entre elas o direito – passa a encontrar forte resistência de escolas avessas a
esta concepção que vêm agora a exigir para as ciências sociais estatuto
epistemológico próprio. Como diz SANTOS (1989:22) "o uso do determinismo
mecanicista nas ciências sociais encontra dificuldade os fenômenos sociais têm
um elevado índice de subjetividade e como tal não se deixam captar totalmente
pela observação objetiva e rigorosa". A exclusividade metodológica,
universal, vista como a pureza da ciência antes, agora o é como nada mais que
uma viseira de asnos, para utilizar o mesmo tom pouco sutil de Santos [11].
De tal arte, o
posicionamento metodológico do positivismo, de tratar a sociedade a partir de
uma física social, como se seus componentes seguissem a leis predeterminadas
não encontra afago na ciência atual, em que se bem diferencia as ditas ciências
do espírito das físico-naturais. As leis físicas imprimem o que é enquanto, por
exemplo, as disposições éticas expressam o que deve ser. O conhecimento
físico-natural é acumulativo – ainda que exposto à falseabilidade – enquanto o
histórico-social é formado em giro, em retornos, uma compreensão cíclica que se
aprimora é alimentada ou desgastada pelas demais formas de compreensão imersas
historicamente (COELHO, 1997).
O empenho em
retrucar o positivismo deu-se certamente em função da inviabilidade filosófica
do seu método, contudo, não apenas por isso. A física-social, como tida,
correspondia aos anseios da burguesia pós-revolucionária que necessitava de uma
ideologia científica pouco chegada à mudanças bruscas. A "ordem" conclamada
pelo positivismo juntava-se a seu discurso mecânico de que tudo na sociedade
estava em seu devido lugar, e cabia ao homem – dado que a historia era linear e
já montada – apenas... resignar-se!
[12] (ANDERY et
al., 1996). Vale estudar, assim, as condições sociais desta mudança de postura, não
apenas para entender tal faceta filosófica – o que é até secundário no texto –
mas principalmente, para vislumbrar como ambas influenciam na mudança de
postura jusfilosófica e na construção do neoconstitucionalismo.
3 - Giro político- social.
O cenário
temporal-espacial deste tema é mais recente que o anterior visto que, se aquele
fincou suas raízes iniciais com o Renascimento, a ordem político-social hoje
conhecida deita raízes na alvorada dos Estados constitucionalistas modernos,
forjados em sua maior parte dos modelos trazidos pelas revoluções francesa e
americana.
O "giro"
político a que nos remetemos diz respeito à mudança de concepção no que toca à
democracia e ao papel do Estado, experimentado inicialmente como uma democracia
liberal-individualista, geradora do Estado Liberal, cambiada principalmente
depois da 2ª guerra para uma democracia meterial geradora de um Estado Social
ou welfair state.(HOBSBAWN,
2003) O giro social pode ser causa ou conseqüência do político – não será aqui
discutido – mas consubstancia-se principalmente pela defesa da pluralidade
social e da participação do Estado na construção da sociedade.
Com efeito, o
início dos Estados democráticos trouxe aos ordenamentos jurídicos e às
ideologias jurídicas o reflexo do temor do Estado absoluto, de um lado, e a
tentativa de manutenção do status quo
burguês, doutro. A reverência ao que chamamos hoje de direitos de 1ª geração,
correspondente ao status libertatis
de Jelinnek, vinha dizer que o Estado não deveria invadir a esfera individual
do cidadão – notadamente sua propriedade – e que não deveria intervir nas
relações individuais, regulando-as ou limitando sua sistemática. (BARROSO,
2005). As relações privadas tornaram-se o cerne da cultura jurídica, e a crença
de que sociedades e mercados têm perfeito e harmônico funcionamento exigia que
o Estado se abstivesse de qualquer forma de regulação. As investidas contra
tais idéias tiveram início com Marx e Engels e as revoltas operárias que
exigiam proteção estatal, logrando a obter as primeiras manifestações do
direito trabalhista, claro óbice à liberdade de contratar.
GOMES CANOTILHO
(1998:1260) ensina que a teoria liberal da democracia tem sustento nos
seguintes postulados: "(1) a política é um meio para a persecução de fins,
estando estes fins radicados numa esfera de liberdade social preexistente à
própria política; (2) o processo democrático serve para colocar o Estado ao
serviço da sociedade, reduzindo-se este
Estado a um aparelho administrativo e estruturando-se a sociedade como
um sistema econômico baseado no comércio entre pessoas privadas; (3) a política
deve orientar-se no sentido de prosseguir estes interesses privados perante um aparelho administrativo que se
transformou em poder especializado na prospecção de fins coletivos."
(destaques nossos)
Pois bem. Após
desastre econômico do liberalismo com a grande depressão e o desastre da raça
humana com as grandes guerras uma nova concepção de democracia tomou fôlego e
passou a dirigir boa parte dos Estados constitucionalistas. A democracia
material exigia do Estado maior participação, direção e assistência nos
assuntos públicos e daí surge o Estado Social, símbolo da "era de
ouro" (HOBSBAWN, 2003). Esta mudança vai trazer para um direito uma nova
perspectiva de atuação já que, tendo agora o Estado tanto obrigações negativas
como positivas, o debate acerca do instrumental de atuação judicial quanto a
estas últimas vai sair das regras simples de proibição para as cláusulas
potenciais de ação – o que dá origem, no campo da hermenêutica jurídica, à
normatividade dos princípios.
Nota-se, de outro
lado, a defesa da participação plural da sociedade, apontada, dentre outras
idéias, na democracia discursiva de Habermas, "contra a compreensão da política
centrada no Estado, procurando-se dar vida a uma rede de comunicação e
participação estruturante de uma sociedade democrática (apud Canotilho, 1998:1263); na teoria pluralista de constituição
e sociedade de Häberle (1997); na sociologia pragmática de Giddens,(2002)
tratando do surgimento de novos grupos de demandas sociais; e Santos (1995), na
apresentação de sua visão eco-socialista.
Sendo o direito um
objeto da cultura, as tendências políticas e sociais de uma época certamente
determinam a maneira de construir e pensar o instrumental jurídico. Por isso,
considerou-se importante tais palavras, que serão postas em comparação com as
que vêm a seguir, acerca de hermenêutica jurídica e a da posição diretiva da
Constituição dentro do ordenamento jurídico.
4 - GIRO
JURÍDICO-HERMENÊUTICO.
As considerações
acima feitas serviram de apoio para o objetivo central do trabalho, que é
apresentar a rota seguida pelo direito até encontrar-se com o
neoconstitucionalismo, acentuando a prevalência dos seus postulados numa
sociedade democrática e num direito que pretende legitimar-se materialmente
perante esta sociedade. Entende-se que tal caminho foi trilhado a partir de um
giro hermenêutico e outro político, não podendo desconsiderar-se a
interpenetração de ambos.
4.1 Lógica formal e legitimação na hermenêutica positivista.
A lógica formal
referida no tópico 2 caiu como uma luva para a burguesia pós-revolucionária,
que vê seus interesses refletidos na escola da exegese. Uma aplicação mecânica
do direito faria com que a produção legislativa da burguesia não encontrasse
óbice na sua aplicação, no judiciário. Assim, na hermenêutica positivista, deve
o intérprete "proceder more
geometrico, deduzindo o sentido oculto da lei mediante procedimentos
filológicos e lógicos" (Coelho, 1981:326). A assertiva "não conheço o
direito civil, só ensino o Código de Napoleão" de autoria de Bugnet
(Perelman, 1996), sinalizava que "a tarefa do jurista, para a exegese, era
ater-se rigorosamente ao texto da lei" (Coelho, 1981:328) e que para o
positivismo, o momento era de "fechar as portas da interpretação"
(MIAILLE, 1994) atendo-se à literalidade da lei. Essa atitude epistemológica
impõe ao direito que dê com os ombros para as nuanças sociais e políticas que
envolvem a sua atuação prática, irresponsabilizando-se pelo seu agir, e assim
resguardando os interesses burgueses insertos na norma.
Para justificar
este comportamento indiferente, de "ater-se apenas ao texto da lei",
duas idéias elaboradas pelo positivismo jurídico foram fundamentais: 1) uma de
cunho epistemológico geral, acima já descrita, defendendo que a metodologia das
ciências sociais deveria pautar-se nos mesmos moldes mecânicos das ciências
naturais. Seu efeito seria que, num direito racional com aplicação matemática,
a lei seria tida como justa ou válida sem indagação do seu conteúdo ético ou
seus efeitos práticos (Coelho, 1981:314); 2) a separação da realidade jurídica
da realidade social, dividindo-as em duas ontologias distintas, dois universos
paralelos: o "ser" e o "dever-ser", como quis expressar
Kelsen para defender a teoria pura do direito (KELSEN, 1996). O direito agiria
apenas no campo do dever-ser, um universo particular, distante e mesmo
ignorante das desventuras humanas.
Este comportamento
hermenêutico introspectivo influi sobremaneira na relação entre democracia e
direito (o que interfere no aspecto sociopolítico, pois), já que indiferente ao
que ocorre fora do ser universo particular, não cabia ao direito explicitar
suas condutas de modo a legitimar-se,
já que legalidade e validade normativa era a legitimidade máxima que o direito
positivista moderno admitiria (WARAT, 1979). Ou, como diz outro autor, a teoria
pura do direito(...)reduz a legitimidade à efetividade das normas válidas"
(ULHÔA COELHO, 2005).
Na verdade, na
escola da exegese, os juizes deveriam justificar suas decisões perante o
legislador, apontando a lei in casu
e fundamentando-a como buscasse na interpretação o "espírito do
legislador" (WARAT, 1979). A aplicação do direito (tarefa judicial) procurava
legitimar-se ante a produção do direito (tarefa legislativa), como se o
destinatário da norma fosse o legislador e não o jurisdicionado [13].
Importante notar que, com Kelsen, já há uma evolução no sentido de que a lei
não comporta apenas um significado, mas vários dentro de uma moldura
interpretativa. Ocorre que Kelsen nem oferece parâmetros para limitar tal
moldura e, pior, coloca que qualquer
posição adotada dentro desta moldura é válida – caso formalmente (estatal)
correta – e sua explicação cabe à política jurídica [14] [15].
Assim fazendo, o jurista austríaco simplesmente desconsidera a necessidade de
legitimação do poder judiciário por meio da discussão das suas posições e a
responsabilidade de sua prática. A legitimidade do direito – e do Judiciário –
é, nesse sentido eminentemente formal; ocorre que, sendo legitimidade um
conceito que vai se buscar na sociologia, ele não existe no campo formal. Por
isso, não há espaço para a questão da legitimidade jurídica na hermenêutica
positivista. Por isso, como dito acima, a legalidade ocupa o lugar da
legitimidade.
4.2 A convergência político-filosófica para a hermenêutica
constitucional.
4.2.1 A dialógica como método e a "ressureição" do direito.
Como visto no
tópico 2, determinados fatores levaram a que se considerasse indevida a
metodologia de se aplicar os método mecânico para se estudar a sociedade. Como
elemento de produção cultural, deve também o direito possuir estatuto próprio
de análise. Ao invés da lógica formal inflexível, surgem, pois, as soluções
oferecidas pela lógica material ou dialética, melhor operada pela retórica.
Chaïm Perelman foi um dos filósofos que mais se ocuparam deste tema, defendendo
uma lógica específica para lógica jurídica. Segundo ele, "o que há de
especifico na lógica jurídica é que ela não é uma lógica da demonstração
formal, mas uma lógica da argumentação, que utiliza não provas analíticas, que
são coercivas, mas provas dialéticas (...) que visam a convencer ou, pelo
menos, persuadir o auditório"(1996:500). O autor belga (re)apresenta a
lógica dialética de Aristóteles, esquecida na modernidade em função de não se
adaptar ao pensamento cartesiano, mas que encaixa-se perfeitamente no modelo
pluralista das sociedades atuais, por preferir o diálogo à imposição. A lei passa,
agora, de solução pré-definida, para parâmetro argumentativo.(PERELMAN, 1996)
O que se quer
afirmar com essa nova postura filosófica é que o direito não deveria mais ser
tratado como uma equação matemática. A complexidade de certas situações
jurídicas perpassam qualquer tentativa de generalização que possa a norma
abstrata querer fazer: é necessário, ao interpretar a norma considerar-se que
nenhuma interpretação ocorre no vazio. Ao contrário, trata-se de uma atividade contextualizada, que se leva a cabo
em condições sociais e históricas determinadas (COELHO, 1997). No mesmo sentido
Miguel REALE (1978:81) entende que a "interpretação dos modelos jurídicos
não pode obedecer a puros critérios de Lógica formal, devendo desenvolver-se
segundo exigências da razão histórica
entendida como razão problemática" A abstração demasiada, a interpretação
desconectada com o agir e o viver histórico-social, passam a ser vista como um
óbice, o que exige que os juristas busquem um novo tipo de lógica para decidir
com justiça (Dworkin) e/ou razoabilidade (Siches) suas causas.
Se o direito
moderno explicava o apego à irrestrito à lei com a necessidade de separar os
universos do direito e da moral, do direito e da sociologia, do direito e da
política, criando a distinção entre ser e dever-ser, a pós-modernidade faz com
que direito receba novo calor e pulsação a partir da negação de seu caráter
puro e desligado do social e político. Nesse sentido, afirma-se que o que há em
comum entre as correntes pós-modernas do direito é "a idéia de que o
direito não é algo abstrato que deva ser procurado no setor do exclusivamente
racional, mas um objeto que está aí, existente e real" (COELHO, 1981:1).
Compreende-se, assim, que as condições de eficácia dos textos jurídicos – e em
especial a constituição – resultam da correlação entre ser (sein) e dever ser
(sollen), porque a sua pretensão de eficácia está condicionada pelas condições
históricas da sua realização. (COELHO, 1997).
Então, os
universos finalmente misturam-se para que o direito respire tenha a
possibilidade de respirar a complexidade política e social que tem o
compromisso de regular, a partir dos conflitos que lhes são apresentados.
4.2.2 A hermenêutica principiológica
Estas duas
características – o enfraquecimento da lógica formal e a
"ressurreição" do direito – fizeram com que, impreterivelmente, o
direito passasse a operar com cláusulas mais genéricas. Como dito, sendo os
textos legais muitas vezes insuficientes para regular satisfatoriamente os
conflitos jurídicos, a lei passa a operar como parâmetro argumentativo,
recorrendo o decididor a outras fontes reconhecidas pelo direito para atingir
uma decisão justa. É dizer: porque expande o seu horizonte hermenêutico, o
intérprete alarga também o seu campo visual, que se torna mais rico pela
incorporação de novos instrumentos de análise. Superando os condicionamentos
que lhe encurtavam a visão, aquele que descortina novos horizontes capacita-se a ver mais e melhor, tanto no plano
físico, quanto no plano espiritual. (COELHO, 1997). Paradigmática, nesse
sentido, foi a decisão do Tribunal Federal alemão, citada por HABERMAS (1997),
afirmando aquela corte que o direito não se identifica com a totalidade das
leis escritas, havendo um sentido que deve ser encontrado pelo intérprete.
[16]
Ocorre que para
estas fontes mais elásticas, que dão um maior espectro ao julgador, parece
recomendável que devam surgir parâmetros dentro do próprio sistema ou
ordenamento jurídico, a fim de que sua aplicação não se torne caótica. A
prática interpretativa, para não se tornar arbitrária e ilegítima, deve prestar
contas à racionalidade – ainda que, como no caso, seja uma racionalidade
intersubjetiva. Daí, por oportuno dizer, a brilhante intervenção de Ronald
Dworkin quando defende a interpretação e motivação jurídica por meio de princípios (DWORKIN, 2002). Estes
representam cláusulas gerais estabelecidas juridicamente, a partir da
convergência da comunidade hermenêutica acerca de determinado elemento básico,
essencial, da ciência jurídica e suas subdivisões (GUERRA FILHO, 2001). São,
portanto, os standards
juridicamente vinculantes (CANOTILHO, 1998) ou, pode-se ainda dizer, os parâmetros da elasticidade interpretativa
exigida nos dias atuais. [17]
Outra
característica marcante, talvez a mais notável da hermenêutica pós-positivista,
seja o reconhecimento, pela dogmática, da normatividade dos princípios
(BARROSO, 2001). O enfoque positivista conferia aos princípios um vazio de
conteúdo que os tornava algo parecido a uma carta de boas intenções. A sua
debilidade para servir de parâmetro resolutivo de conflitos coincidia com o
apego da ideologia liberal pelos códigos e pelo direito privado, em particular.
Hodiernamente, contudo, entende-se que os princípios são proposições
normativas, e não declarações descritivas. Isso por que, argumenta-se,
"não há como separar regras e princípios da categoria normas, porquanto
ambos se formulam com ajuda de expressões deônticas fundamentais, como
mandamento, permissão e proibição." (ALEXY apud Bonavides, 2002:249) [18] A nova realidade da
atuação dos princípios rendeu e ainda vai render controvérsias épicas, mormente
em função da lentidão do enfraquecimento do paradigma positivista e de alguns
dos seus postulados liberais, com destaque para a sua visão de separação de
poderes e a autonomia da vontade. Certamente, contudo, já está inserido na
realidade da aplicação jurídica, servindo de parâmetro normativo, e mesmo na
seara jusprivatista, como será mostrado adiante.
4.2.3 A questão da legitimidade
"Em uma
sociedade moderna, exige-se que as decisões não apenas sejam dotadas de
autoridade, mas também que apresentem suas razões". (AARNIO apud Coelho, 1997). Uma assertiva com
este conteúdo destoa e contradiz plenamente o pensamento positivista colocado
mais acima, especialmente no que toca à idéia de motivação professada por
Kelsen. No que aquele entendia como bastante para a legitimação do direito a
validade formal, confundindo equivocadamente validade com legalidade, outros
autores, confessadamente fundados numa perspectiva democrática – ligada ao giro
sociopolítico referido –, passam a afirmar a necessidade de legitimidade
pública do direito.
HABERMAS (1997)
ressalta o agir comunicativo como meio de o Estado e os cidadãos construírem a
legitimidade necessária, intersubjetivamente, colhendo do direito uma
perspectiva "republicana" (contrária ao paradigma liberal, de cunho
privatístico) com enfoque numa releitura da teoria liberal dos três poderes e
do papel da jurisdição constitucional. HÄBERLE (1997) invoca todos os "intérpretes
da constituição" para construírem, também intersubjetivamente, um modelo
de constituição plural, aberta e participativa.
Fincando os pés,
contudo, na questão da demonstração de legitimidade a partir do conteúdo das
sentenças judiciais, o tema contorna a teoria de Kelsen com mais
especificidade, demonstrando desapego àquele paradigma autocrático em
detrimento de outro, dialógico. Com efeito, diz-se, a responsabilidade do juiz
converteu-se, cada vez mais, na responsabilidade de justificar suas decisões
(AARNIO) [19]. No contexto de aprimoramento do Estado de Direito, já
não basta apresentar razões normativas - reputadas necessárias, mas não
suficientes - para justificar as decisões jurídicas ou quaisquer outras de
repercussão social. Torna-se necessário "justificar a própria
justificação", oferecer uma motivação última e profunda, que se baseie em
outras razões - tais como justiça, razoabilidade, oportunidade e correção.
(ORTEGA) [20]. E este processo, ou comportamento, que enaltece a
plena motivação judicial – que, de resto, representa o paradigma epistemológico
pós-moderno, de considerar que no campo das ciências sociais a
(inter)subjetividade é a objetividade possível – tem como objetivo último a
legitimação política do direito.
5. A Constituição como instrumento competente para reger o direito
pós-moderno(pós-positivista)
Finalmente, todas
estas características acabam convergindo para que o direito note que o melhor
instrumento para operar suas novas realidades filosóficas, políticas, sua
hermenêutica da cláusulas gerais, é a Constituição. É importante notar, pois –
caminhando finalmente para os resultados do neoconstitucionalismo –, o perfeito
encaixe do sistema interpretativo constitucional com as novas características
do direito acima apontadas, quais sejam:
(A) a atuação da
lógica material em detrimento da formal. A lógica material é dia-lógica; é
democrática quando exige motivação pelo diálogo e legitimação pela
participação(PERELMAN) Calcada numa hermenêutica que procura apre(e)nder com os
fatos sociais os melhores caminhos para a solução dos conflitos, a compreensão
desses fatores devem ser operados pelo consenso e pela argumentação (retórica)
através de um processo intersubjetivo. Por ser a Constituição um "conjunto
de possibilidades" (GRAU) campo aberto para debates, é aí que a tópica
[21] e retórica, representantes da lógica material, vão encontrar férteis
arenas de solução de problemas, os melhores parâmetros argumentativos que o
direito tanto procurava quando sentiu a fragilidade da lei.;
(B) exigência hermenêutica
das cláusulas gerais, operadas com parâmetros de racionalidade por meio dos
princípios. Por ser exatamente local do ordenamento jurídico onde deságuam as
diretrizes políticas, sociais e ideológicas da sociedade, a interpretação de um
caso, mormente quando necessária que se faça ampla, vai dirigir seus olhos
àquelas premissas maiores da sociedade que se encontram imersos nas exatamente
nas cartas constitucionais: seus princípios. Por outro lado, os princípios são
utilizados como forma de limitar o arbítrio judicial, quanto mais se, como é o
caso, tais princípios sejam densos em normatividade.
(C) a atuação do
direito considerando suas repercussões sociais e políticas: o reencontro do sein com o sollen. O reaparecimento do direito como elemento da cultura,
nele inserido e modificado faz relevante, além do efeito hermenêutico, a
questão sua legitimação política, pois instância de poder. O Estado de Direito
pode ser atingido sem esta legitimação, mas o Estado Democrático de Direito exige a legitimação política dos poderes
pelos seus delegatários (HABERMAS, 1997). Tal legitimação avalia-se, em boa
medida, no comportamento judicial, se autocrático ou dialógico: a exigência de motivação, que se
impõe ao intérprete-aplicador do Direito, é condição de legitimidade e de
eficácia do seu labor hermenêutico, cujo resultado só se tornará coletivamente
vinculante e legítimo se lograr o consenso social, que, no caso, funcionará, se
não como prova, pelo menos como sintoma de racionalidade.(VIGO) [22].
O tema da legitimidade do direito coloca-se numa esfera pública, distante do
paradigma de direito privado apregoado pelo liberalismo. A exigência da
"motivação das motivações", como acima colocado, transcende seu
aspecto filosófico, também existente, para recair numa teoria de democracia, de
direito público, e sociologicamente, na demanda pluralística das sociedades
modernas. Nesse sentido, e ressaltando a Constituição como ponto matriz dessa
realidade, coloca muito bem HÄBERLE: "o pluralismo se torna um grande
denominador comum, no qual o Estado da Constituição livre do Ocidente encontra
seu tipo: uma teoria democrática da Constituição" [23]
6. Notas sobre os efeitos do neoconstitucionalismo sob o direito privado.
Fazendo um
parêntese no texto, perece-nos relevante, para demonstrar efeitos práticos da
recente supremacia dos textos constitucionais anotada acima, apresentar algumas
passagens da doutrina de Lênio Streck e Luís Roberto Barroso, em que ressaltam
a decadência do paradigma jusprivatitico em detrimento da hermenêutica
constitucional. O tema, pela sua relevância, merece ser tratado com mais
profundidade, no que fica, para os leitores, a sugestão de pesquisa.
Tem-se, pois, que
com a idealização do Estado social, chega ao fim o reinado absoluto do Código
Civil e da ideologia liberal nele escancarada para dar lugar atuação positiva
do Estado na defesa dignidade da pessoa humana e da democracia material. A
Constituição, por ser o documento ideológico da nação toma o papel de dirigente
na busca por aqueles ideais tidos como os que devem ser perseguidos, e sendo
assim todo o ordenamento jurídico deve girar sob ao redor de sua órbita,
cabendo ao intérprete (todo intérprete, na nova hermenêutica, é necessariamente
intérprete constitucional) expulsar do mundo jurídico toda e qualquer
manifestação que se insurja contra seus preceitos constitucionais. Como bem
afirma Lênio Sterck "a plenipotenciariedade da lei – como fonte e
pressuposto do sistema – cede lugar aos textos constitucionais que darão
guarida às promessas da modernidade contidas no modelo do Estado Democrático (e
Social) de Direito [24] [25]".
A partir desta
premissa, o autor arrola alguns efeitos da impositividade dos mandamentos
constitucionais, dentre os quais destacamos: (A) representa uma autorização
constitucional para que o legislador e os demais órgãos adotem medidas que
visem a alcançar, sob a ótica da justiça constitucional, nas vestes de uma
justiça social; (B) perfila-se como elemento de interpretação, obrigando o
legislador, a administração e os tribunais, a considerá-lo como elemento
vinculado da interpretação das normas a partir do comando do princípio da
democracia econômica, social e cultural."
Não diverge o
professor da UFRJ, Luís Roberto Barroso (2005). Afirma o insigne
constitucionalista que
"qualquer
operação de realização do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Lei
Maior. Aplica-se a Constituição: a) Diretamente,
quando uma pretensão se fundar em uma norma do próprio texto constitucional.
Por exemplo: o pedido de reconhecimento de uma imunidade tributária (CF, art.
150, VI); b) Indiretamente,
quando uma pretensão se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas
razões: (i) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é
compatível com a Constituição, porque se não for, não deverá fazê-la incidir.;
(ii) ao aplicar a norma, o intérprete deverá orientar seu sentido e alcance à
realização dos fins constitucionais."
Nesse sentido, a
força cogente das regras e princípios constitucionais passa a ter papel de
criação no ordenamento jurídico, lapidando as normas infraconstitucionais
conforme seus mais caros postulados. Exemplo claro deste corte ideológico que o
neoconstitucionalismo operou no ordenamento jurídico é dado pelo mesmo
constitucionalista fluminense ao retratar a drástica mudança do direito
infraconstitucional alemão após tomada de posição do Tribunal Federal
Constitucional a favor da dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Segundo
ele:
"A partir
daí, baseando-se no catálogo de direitos fundamentais da Constituição alemã, o
Tribunal Constitucional promoveu uma verdadeira "revolução de idéias"
[37], especialmente no direito civil. De fato, ao longo dos anos
subseqüentes, a Corte invalidou dispositivos do BGB, impôs a interpretação de
suas normas de acordo com a Constituição e determinou a elaboração de novas
leis" (BARROSO, 2005)
O mesmo caminho
trilhou a jurisdição constitucional italiana, o que se pode notar por estes
dados, conferidos novamente por Luís Roberto Barroso:
"De 1956 a
2003, a Corte Constitucional proferiu 349 decisões em questões constitucionais
envolvendo o Código Civil, das quais 54 declararam a inconstitucionalidade de
dispositivos seus, em decisões da seguinte natureza: 8 de invalidação, 12
interpretativas e 34 aditivas. Foram proferidos julgados em temas que incluíram
adultério, uso do nome do marido e direitos sucessórios de filhos
ilegítimos em meio a outros".
Operou-se, pois,
com a aplicação da hermenêutica constitucional, uma notável mudança de enfoque,
retirando a proeminência de princípios de direito liberal privado, como, por
exemplo, a autonomia contratual e o caráter absoluto da propriedade,
obrigando-os a obedecer a diretrizes constitucionais e o Estado materialmente
democrático de direito.
7. Conclusão-síntese
Enfim, para
concluir e sistematizar tudo o que foi dito, pelo menos quanto ao aspecto
jurídico-hermenêutico, pode-se justificar a tese da importância primacial da
Constituição no paradigma hermenêutico pós-moderno (pós-positivista), da
seguinte forma.
-
Hermeneuticamente, como esta época opera-se melhor pelo consenso, é evidente
que as decisões sejam tomadas a partir de enunciados gerais somado a um
processo interpretativo conjunto (círculo hermenêutico) e não a partir de
cláusulas fechadas que admitem apenas uma hipótese, restringindo o debate as
sua razoabilidade. Nesse contexto, nada melhor que a Constituição, receita
política e social dirigente (interpretável por todos os agentes – Härbele) como
bússola para guiar o restante do ordenamento jurídico;
-
Metodologicamente, visto que o determinismo universalista mostrou-se inadequado
no seio das ciências sociais, e dado que o direito é um produto da cultura,
influenciado pela nuances políticas e sociais, é relevante que o direito seja
interpretado a partir destas condicionantes, premiando a razão prática e a
obtenção de resultados socialmente mais aceitáveis. À Constituição, como
documento de cunho político-programático e social-dirigente, cabe esta função,
devendo o intérprete utilizar-se de seus mandamentos – como p.ex., a dimensão
normativa do pluralismo (Canotilho, 1998:1257) – e irradiar a ideologia
democrática da Constituição ao restante do ordenamento, vinculando-o.
-
Epistemologicamente, pois a lógica-formal que ocupou a filosofia em geral e a
do direito em particular, retirando de raciocínios matemáticos suas conclusões
foi substituída pela tópica e retórica, que buscam de espectros mais amplos de
atuação, melhor funcionando em situações que lhes dêem mais fundamentos para
resolver os problemas práticos postos em debate. Os Códigos apresentam soluções
particularizadas e pontuais, ficando a dever na solução de casos difíceis e
pobres diante de sociedade dinâmicas. A utilização mais freqüente dos
princípios constitucionais e sua normatização pode ser vista como uma devida
ampliação dos catálogos de topoi
utilizáveis na seara jurídica.
- Politicamente,
pois a democracia material exigiu que o Estado participasse ativamente da
consecução dos ideais sociais de igualdade e justiça, empreendendo seus
esforços neste objetivo ainda que o princípio da autonomia da vontade fosse
repensado. Certamente é nesse aspecto que mais empiricamente evidencia-se a submissão
dos Códigos às Constituições visto que os institutos e princípios de direito
privado tiveram que se amoldar a uma nova ordem de prioridades: onde, no estado
liberal, o centro do ordenamento jurídico era a propriedade, ou o usufruto do
ser humano, no estado social, o ordenamento deve subserviência completa agora
ao principio da dignidade da pessoa humana – seu protoprincípio, no dizer do
Ministro Carlos Ayres de Britto.
- Socialmente, por
fim, em virtude da necessidade de operar-se o sistema jurídico com a maior
legitimidade possível, respeitando a pluralidade de idéias. Sendo a
Constituição um sistema aberto e repleto de possibilidades, há espaço para
aquilo que Habermas chama de democracia discursiva e para a tese de Härbele,
defendendo "o pluralismo como teoria e como práxis da Constituição" (apud Bonavides, 471). A Constituição
é onde melhor situa-se o debate valorativo, e é o instrumento retórico pelo
qual as grandes questões sociais são resolvidas. Tomada a solução destas
questões, o importante é que tenha sido oportunizada a participação de todas as
vertentes plurais no debate, o que confere a legitimação ao sistema e
racionaliza as decisões. O desenvolvimento do ordenamento jurídico ocorre,
nesse viés, a partir da atuação crítica dos mais variados atores [intérpretes]
sociais, também detentores do leme da Constituição.
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interpretação. São Paulo: Síntese, 1979.
Notas
01 Para uma boa
compreensão do tema, conferir: SANTOS, Boavantura de Sousa. Introdução a uma ciência Pós-moderna. São
Paulo, Graal, 1989; MORIN,
Edgard. Ciência com consciência.
Tradução: Maria D. Alexandre, Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001.
02 Para uma análise
resumida da construção destas teorias e suas influências no mundo
contemporâneo, conferir CAPRA, Fritjof. O
ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1986; SANTOS, Boaventura de Sousa,
Discurso sobre as ciências. São
Paulo: Cortez, 2003.
03 Dado que, segundo
Descartes, caso algum tivesse uma visão clara e nítida dela, poderia expô-la ao
adversário de tal modo que acabaria por forçar-lhe a convicção. (PERELMAN, 1996a).
04 Esta perspectiva
esbarra hodiernamente na idéia de que o objeto em si é apreensível, sendo o
sujeito o criador o refletor da sua imagem, mormente nas ciências da cultura,
como é o caso da jurídica.
05 Para uma análise
filosófica do "sonho iluminista" ver GRAY, John. Cachorros de Palha. Record, Rio de
Janeiro, 2006; Al-Qaeda e o que
significa ser moderno. Rio de Janeiro, Record., 2004. GIANETTI, Eduardo. Felicidade. Companhia das Letras.
São Paulo, 2003.
06 Dilthey, Wilhelm.
Introducción a las
Ciencias del Espítitu. Madrid: Revista de
Occidente, 1956.
07 Apud Lopes (2000)
08 O tema é
instigante, mas não se pretende discutir aqui profundamente como isto ocorreu.
Mas de qualquer forma, é válido – porém parcial – dizer que a noção de
racionalidade do homem começa a ruir a partir das lições psiquiátricas de
Freud, legando a noção de subconsciente; Darwin, na sua até hoje avassaladora
tese da seleção natural; das obras de Marx, introduzindo o conceito de ideologia,
como limitadora da autonomia da razão; Nietchze, com seu desconcertante
desmascaramento das bases pretensiosamente racionalistas da sociedade
européias. Luís Fernando Veríssimo trata do tema com a genialidade peculiar, em
artigo entitulado "a quarta virada", publicado na revista Caros
Amigos de out/07, e encontrado no site <http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=49&Itemid=52>
09 Também expondo
o pensamento de Popper, Morin destaca que, segundo aquele autor, o que torna
algo "científico" é o fato de poder ser contestado ou,
"falseado". O que faz que uma teoria seja científica, se não for a
sua "verdade"? Popper trouxe a idéia capital que permite distinguir a
teoria científica da doutrina (não científica): uma teoria é científica quando
aceita que sua falsidade pode ser demonstrada. Uma doutrina, um dogma encontram
neles mesmos a autoverificação incessante. O dogma é inatacável pela
experiência. A teoria científica é biodegradável. (2001:23)
10 Faz-se referência
ainda ao termo reflexividade quando se quer ressaltar a reentrada do
conhecimento produzido pelas ciências sociais após sua colocação na sociedade,
que ao mesmo tempo, influencia e é modificada pela ação social, voltando tal
objeto em outros caracteres, ao pesquisador. Sobre o tema conferir
GIDDENS(1991)
11 A ciência
moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um
ignorante especializado, faz do cidadão comum um ignorante generalizado. Ao
contrário, a ciência Pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em
si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois,
penetrar por outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas
(2003:88)
12 Nesse sentido,
a história que se resume ao desenvolvimento, ao progresso linear e segundo uma
ordem preestabelecida e que nada mais é que o desenvolvimento do espírito e do
pensamento segundo leis também.preestabelecidas é explicada (e compreendida)
pela mera apresentação de suas fases.
Nessa visão de
história cabe ao homem apenas resignação: é preciso aguardar o desenvolvimento
e aguardá-lo sua ordem natural, seu tempo, seus limites, num processo em que é, ele também, ordeiro (destaque
nosso)
13 A isto responde
um fator sociológico. Trata-se do caminho de produção e aplicação do direito,
trilhado pela classe dominante para obter o controle do aparelho ideológico do
direito. Disto tratamos no artigo "O controle do aparelho ideológico do
direito pela influência dos espaços formais de produção e aplicação
jurídica"
14"A questão de
saber qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito
a aplicar a "correta" não é [...] uma questão de conhecimento
dirigido ao Direito positivo, não é um problema da Teoria do Direito, mas de
Política do Direito" (Kelsen apud
Camargo 1999:111)
15 A esta construção
que premia o arbítrio injustificado, Perelman lhe atribui o epíteto de
"escandalosa". Eis: "As teses apresentadas por esse mestre
inconteste do pensamento jurídico, com a clareza e a força convincente que lhe
caracterizam todos os seus escritos questionavam tantas idéias comumente
aceitas, resultaram em tantas conseqüências paradoxais - sendo a mais
escandalosa delas a referente à concepção tradicional da interpretação
jurídica, bem como a do papel do juiz na aplicação do direito – que nenhum
teórico do direto as podia ignorar nem se abster de posicionar-se a seu
respeito" (Perelman, 1996:474)
16"O direito
não se identifica com a totalidade das leis escritas. Em certas circunstâncias,
pode haver um ‘mais’ de direito em relação aos estatutos positivos do poder do
Estado, que tem a sua fonte na ordem jurídica constitucional como uma
totalidade de sentido e que pode servir de corretivo para a lei escrita; é
tarefa da jurisdição encontrá-lo e realizá-lo em suas decisões". BVerGE
34, 269, apud Jürgen Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e
validade, v. 1, 1997, p. 303
17 Quanto a esta
função que exercem os princípios, de serem parâmetros interpretativos de uma
hermenêutica aberta, veja-se: "A forma jurídica mais definida mediante a
qual a fecundidade dos princípios se apresenta é, em primeiro lugar, a função
interpretativa e integrativa. O recurso aos princípios se impõe ao jurista para
orientar a interpretação das leis de teor obscuro ou para suprir-lhes o
silêncio. Antes ainda das cartas constitucionais, ou, melhor, antes que, sob o
influxo do jusnaturalismo iluminista, máximas jurídicas muito genéricas se
difundissem nas codificações, o recurso aos princípios era já uma necessidade
para interpretar e integrar as leis".
18 Não se deve
esquecer, que não obstante esta afirmação, a maioria dos autores considera que
se deve interpretar regras e princípios de forma diversa. Destacam-se nesse
sentido, as formulações de Alexy e Dworkin, sendo que para este último, as
regras são aplicáveis à maneira all or
nothing, enquanto os princípios aplicam-se pelo seu peso ou valor
(Dwokin apud Bonavides, 2002)
19 apud Coelho, Inocêncio Mártires.
Interpretação Constitucional, Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 1997
20 idem
21 Como destaca
BONAVIDES, Paulo in Curso de direito constitucional. 12ª
edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 453: "Sendo a Constituição aberta,
a tópica também o é. Valem para todas as considerações e pontos de vista que
concorram ao esclarecimento do caso concreto, não havendo graus de hierarquia
entre os distintos loci
ministrados pela tópica".
22 apud COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit.
23 Apud BONAVIDES, op. cit., p. 470.
24 STRECK, Lênio. A revolução copernicana do (neo)constitucionalismo e a (baixa)
compreensão do fenômeno no Brasil – uma abordagem à luz da hermenêutica
filosófica.Disponível.no.site..http://www.trf4.gov.br/trf4/upload/arquivos/emagis_atividades/lenioluizstreck.pdf.
Acesso em 16/09/2006.
25 Assevera ainda o
autor, no mesmo texto, remetendo à mudança de perspectiva política a que nos
remetemos anteriormente: "Permito-me insistir: a função do direito – no modelo instituído pelo Estado Democrático de
Direito – não é mais aquela do Estado Liberal-Abstencionista. O Estado
Democrático de Direito representa um plus normativo em relação ao Estado
Liberal e até mesmo ao Estado Social. A Constituição do Brasil, como as de Portugal, Espanha
e Alemanha, por exemplo, em que pese o seu caráter aberto, é uma Constituição densa de valores, compromissória e
voltada para a transformação
das estruturas econômicas e sociais."
* Advogado. Pós-graduando em Direito
Constitucional pela Unisul/IDP/Rede LFG. Bacharelando em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Sergipe
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10850&p=1
Acesso em: 08 out.
2008.