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Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy*
O direito
indiano transita entre a tradição e a modernidade, aproximando concepções
védicas, conceitos transcendentes de dharna, eventuais referenciais de
expressiva população de fé islâmica, influências do common law da
Inglaterra, encetando animado pluralismo de fontes (cf. MENSKI, 2005).
Concebeu-se constituição democrática que deve conviver e ser aplicada a
idiossincrasias vetustas, indicativas até de regime de castas, que admitiam párias,
intocáveis e excluídos. Trata-se de índole constituída ao longo dos séculos,
embora abalada e estimulada no movimento de oposição à Inglaterra (cf. METCALF
e METCALF, 2003, p. 260). O choque entre cultura tão antiga e engenharia
política tão recente é que dá os contornos do direito constitucional indiano.
A constituição
da Índia principia com preâmbulo que proclama que o povo indiano solenemente
resolveu constituir o país em uma República Democrática Soberana Socialista
Secular, de modo a se assegurar a todos os cidadãos a justiça, a liberdade, a
igualdade e a fraternidade. Essa declaração solene é de 1949, ano de
promulgação da constituição. Referiu-se à justiça, em suas dimensões social,
econômica e política. Lembrou-se a liberdade, em suas percepções de pensamento,
expressão, crença e religião. Concebeu-se a igualdade, em termos de posição
social e de oportunidades. A fraternidade foi premonida enquanto mecanismo para
se assegurar a dignidade dos indivíduos junto a unidade e a integridade da
nação, nas expressões consagradas no texto, para as observações vindouras, lido
em sua versão inglesa.
A Índia é
organizada como uma união de estados. A composição territorial do país pode ser
alterada mediante regulamentação do Parlamento. Estados podem ter aumento ou
diminuição da superfície, além de alterações nos limites e mesmo no nome das
unidades. A nacionalidade indiana é fixada em disposição constitucional. São
indianos os que nasceram no território da Índia, os filhos de nascidos no
território indiano, além dos que tenham residido na Índia nos cinco anos que
antecederam a confecção da constituição que se comenta. Há disposição
constitucional específica que alcança indianos que migraram para o Paquistão.
Indianos que residem no estrangeiro mantém a nacionalidade indiana, conquanto
que registrados em repartição diplomática ou consular competente. Excluem-se
aqueles que voluntariamente adquiriram nacionalidade de outro Estado, que
conseqüentemente perdem a nacionalidade indiana, por força de disposição na
constituição. Ao Parlamento reservou-se competência para regulamentar demais
questões de nacionalidade.
A constituição
da Índia consagrou formalmente a isonomia. Escreveu-se que o Estado não
poderá negar a nenhuma pessoa a igualdade perante a lei bem como a igual
proteção de todos dentro do território da Índia. Determinou-se que o
Estado não pode discriminar a ninguém com base na religião, raça, casta, gênero
ou local de nascimento. O acesso a lojas, restaurantes públicos, hotéis e
locais de diversão não pode ser negado com base em práticas de discriminação.
Idêntica regra vale para o uso de tanques, locais de banho, estradas ou
quaisquer outros pontos, mantidos parcial ou integralmente com recursos do
Estado, e destinados ao uso geral de todos.
Essa concepção
de igualdade é pela constituição da Índia também projetada nas relações de
emprego, mantidas pelo Estado. Aboliu-se a casta dos intocáveis,
determinando-se que a intocabilidade é abolida e sua prática sob qualquer
forma é proibida. A utilização desse costume imemorial é delito a ser
punido nos termos de lei. A constituição da Índia aboliu o uso de títulos
nobiliárquicos, proibindo-se também que os cidadãos da Índia recebam títulos de
outros Estados. Excetuam-se títulos militares e acadêmicos.
Consagra-se a
liberdade de expressão, o direito de reunião pacífica, de participação em
sindicatos e associações, de movimentação no território indiano, de escolha do
local de residência. A Índia aderiu à reserva legal, em matéria penal.
Explicitou-se também que ninguém será obrigado a testemunhar contra a si
próprio. Veda-se o tráfico de seres humanos e condena-se o trabalho
forçado. Permite-se, no entanto, que o Estado imponha a prestação Há previsão
expressa na constituição indiana que proíbe o emprego de crianças com idade
inferior a 14 anos nas fábricas ou minas do país, além de em qualquer outra
ocupação que seja nociva.
Em tema de
religião determinou-se que sujeitas à ordem pública, à moralidade e à saúde,
todas as denominações religiosas têm o direito de manter suas instituições em
relação a propósitos de religião ou de caridade, de conduzir os próprios
problemas em matéria de religião, de possuir e adquirir propriedade móvel e
imóvel, bem como de administrar suas propriedades de acordo com a lei.
Proíbe-se a cobrança de tributos em favor de denominações religiosas. Há artigo
que se presta para proteger o interesse de minorias, com especial atenção à
admissão em instituições educacionais mantidas pelo Estado. Consagra-se o
direito de manutenção de língua, escrita ou cultura distintas.
As políticas
públicas devem ser orientadas com o objetivo de se garantirem aos cidadãos,
homens e mulheres, com igualdade, o direito de se ganhar adequadamente os meios
de subsistência. Tem-se como meta que a propriedade e o controle dos
recursos materiais da comunidade sejam distribuídos de modo a melhor garantir o
bem comum. Pretende-se evitar que o sistema econômico suscite a
concentração de riquezas em prejuízo do bem comum. Objetiva-se que salários
sejam iguais, para homens e mulheres. Persegue-se a saúde e o fortalecimento de
trabalhadores, de ambos os sexos. Às crianças são dadas oportunidades e
facilidades para o desenvolvimento de modo salutar, com condições de liberdade
e de dignidade, protegendo-se a infância e a juventude contra a exploração e o
abandono moral e material.
Prescreve-se
igualdade na administração da justiça e aconselhamento judicial gratuito para
aqueles que não possam arcar com despesas de advogado e com custas judiciais. O
texto constitucional indiano apresenta prescrições breves sobre proteção ao
trabalho, à maternidade, a participação de trabalhadores nas decisões das
fábricas, a confecção de um código civil, a garantia de educação livre e
compulsória para crianças. Escreveu-se que é dever do Estado melhorar o
nível de nutrição e de condições de vida, bem com de melhorar a saúde pública.
É também
obrigação do Estado indiano, nos termos da constituição daquele país, organizar
a agricultura e a pecuária nacionais, proteger o meio ambiente, mediante o
cuidado com florestas e com a vida selvagem, proteger monumentos e locais de
importância nacional, separar efetivamente os poderes judiciário e executivo e
promover a paz e a segurança internacionais, entre outras determinações.
Há artigo que
prescreve as obrigações fundamentais dos cidadãos indianos. Todo indiano
deve obedecer a constituição e as leis, saudar e seguir os ideais nobres que
inspiram a luta pela liberdade nacional, apoiar e proteger a soberania, a
unidade e a integridade da Índia, defender o país e prestar serviços, quando
determinado, promover a harmonia e o espírito de irmandade comum entre todos os
povos da Índia, transcendendo barreiras de religião e de línguas, renunciar a
todas as formas de negação da dignidade das mulheres, valorizar e preservar os
valores de herança cultural, proteger o meio ambiente, incluindo-se florestas,
lagos, rios e vida animal, ter compaixão para com as criaturas vivas,
desenvolver o espírito científico, o humanismo, o espírito de pesquisa e de
reforma, lutar pela salvaguarda da propriedade pública, renunciar a violência,
além de lutar pela obtenção de excelência em todas as esferas da atividade
individual e coletiva, de modo que a Nação indiana constantemente alcance mais
altos índices de esforço e de conquistas.
O poder
executivo é chefiado pelo Presidente da República. É o presidente quem também
chefia as forças armadas. O presidente é eleito por um colégio eleitoral que é
formado por membros escolhidos pelas duas casas do legislativo e pelas
assembléias legislativas estaduais. O mandato presidencial tem duração de cinco
anos. Prevê-se impeachment quando o presidente viola a constituição, e o
texto constitucional indiano explicita todos os passos do procedimento para
afastamento. Permite-se a reeleição. Exige-se do candidato à presidência, entre
outros, cidadania indiana e idade mínima de 35 anos. O texto constitucional
indiano especifica os termos do juramento de posse do presidente, a saber: Eu,
[nome do presidente], juro pelo nome de Deus e solenemente afirmo que irei
fielmente ocupar o cargo de Presidente da Índia e farei o melhor de minha
habilidade para preservar, proteger e defender a Constituição e as leis e que
irei me devotar no serviço para o bem-estar do povo da Índia. A constituição
também prevê uma vice-presidência, cujo ocupante chefia um conselho de estados
indianos. Há eleição específica para o cargo de vice-presidente, cujo mandato,
a exemplo do presidente, também é de cinco anos.
Um conselho de
ministros assessora e aconselha o presidente. Esse conselho é chefiado por um
primeiro-ministro. O primeiro-ministro é indicado pelo presidente e os demais
ministros são apontados também pelo presidente, com aconselhamento do
primeiro-ministro. O mandato do primeiro-ministro é de duração discricionária
do presidente (the Minister shall hold Office during the pleasure of the
President). A constituição indiana prevê um Procurador-Geral, conquanto que
o indicado pelo presidente detenha condições para assumir a judicatura na
Suprema Corte. Tem como competência aconselhar o governo indiano em todas as
matérias legais.
O Parlamento é
bicameral; divide-se em um Conselho de Estados e em uma Casa do Povo. O
Conselho de Estados conta com 12 membros nomeados pelo presidente e com não
mais de 238 representantes dos estados e da União. A Casa do Povo é composta
por não mais de 530 membros escolhidos diretamente e por não mais de 20 membros
representantes dos territórios da União, escolhidos de modo previsto em lei.
Determinou-se que os debates parlamentares devem ser vertidos para o hindi e
para o inglês. Permite-se que o parlamentar use sua língua-mãe, que para
aqueles dois idiomas apontados será traduzida.
O poder
judiciário tem no ápice uma Suprema Corte, chefiada por juiz-presidente,
acompanhado por mais sete magistrados, a menos que o parlamento prescreva
número maior de juízes. É o presidente quem aponta o juiz da Suprema Corte. O
magistrado não pode exercer o cargo após completar 65 anos. Exige-se cidadania
indiana para o exercício do cargo de juiz na Suprema Corte da Índia. A Suprema
Corte tem competência para apreciar e julgar conflito entre o governo central e
demais estados indianos e entre dois estados. A Suprema Corte exerce controle
de constitucionalidade e aprecia processos em grau de recurso final.
Bibliografia
GLENN, H.
Patrick. Legal Traditions of the World. New
York: Oxford University Press, 2000. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito Constitucional
Comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006.
MENSKI, Werner F. Hindu Law- Beyond Tradition and
Modernity. New York: Oxford University Press, 2005.
METCALF, Bárbara D. e METCALF, Thomas R. A Concise
History of India. Cambridge: Cambrigde University Press, 2003.
UNGER, Roberto
Mangabeira. Law in modern society. New
York: The Free Press, 1977.
ZOLO, Danilo. Cosmopolis- Prospects for World
Government. Cambridge : Polity Press, 1997.
ZWEIGERT, Konrad e KOTZ, Hein. Introduction to
Comparative Law. Oxford: Clarendon Press, 1998.
* Professor universitário em Brasília
(DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela
PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10831
Acesso em: 08 out.
2008.