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A jurisdição constitucional concentrada e o princípio da separação funcional do poder.

A dificuldade contramajoritária

 

 

Francisco Valle Brum*

 

 

À época do Estado Liberal-burguês (Estado Legislativo – final do séc. XVIII e início do séc. XIX), predominavam os ideais de liberdade dos cidadãos, considerando a força estatal um empecilho ao livre desenvolvimento das forças existentes na sociedade [1]. Sustentava-se a concepção de que as leis eram perfeitas e acabadas, onde não havia preocupação com o conteúdo da norma e inexistiam lacunas no ordenamento jurídico (positivismo jurídico/acrítico) [2]. "Tal pensamento", diz Almiro do Couto e Silva [3], "era uma afirmação polêmica contra o autoritarismo ainda recente das monarquias absolutas, cuidava de travar o poder do Estado ou até mesmo destruí-lo". Essa acepção de Estado foi a responsável pela inconcebível simplificação da tarefa jurisdicional, tornando o trabalho dos juízes mero mecanismo das normas jurídicas. Limitava-se, com isso, a atuação do jurista à descrição da lei e à busca da vontade do legislador. A lei era dotada de plenitude e sempre teria respostas aos conflitos de interesses (prevalecia a idéia da supremacia da lei em detrimento das restrições que poderiam surgir aos direitos fundamentais).

Ocorre, outrossim, que com o advento do Estado Constitucional (Estado Social e Democrático de Direito, surgido após a 2ª Guerra Mundial) houve uma completa inversão dos valores pugnados no período do Estado Legislativo. A previsão dos direitos fundamentais, como um dos pilares do atual Estado (juntamente com os princípios democráticos e de justiça), tornou a atividade jurisdicional como uma das mais importantes para a manutenção dos direitos fundamentais em face da eventual violação surgida pela função legiferante. Expressão disso são os deveres de o juiz interpretar a lei de acordo com a Constituição, de controlar a constitucionalidade da lei, especialmente atribuindo-lhe novo sentido para evitar a sua inquinação, e de suprir eventuais omissões que impede a proteção de um direito fundamental. Agora, tendo em vista a ascensão política e científica do direito constitucional brasileiro – que conduziram-no ao centro do sistema jurídico e onde desempenha uma função de filtragem constitucional de todo o direito infraconstitucional [4] –, é a lei que deve ser compreendida à luz dos direitos fundamentais, tornando o juiz um verdadeiro árbitro na luta pela interpretação e aplicação desses direitos sobre as limitações impostas pelas maiorias parlamentares. Conforme Luiz Guilherme Marinoni, "dizer que a lei tem a sua substância moldada pela Constituição implica admitir que o juiz não é mais um funcionário público que objetiva solucionar os casos conflitos mediante a afirmação do texto da lei, mas sim um agente do poder que, por meio da adequada interpretação da lei e do controle da sua constitucionalidade, tem o dever de definir os litígios fazendo valer os princípios constitucionais de justiça e os direitos fundamentais". [5]

Contudo, é sabido que no âmbito do controle de constitucionalidade (jurisdição constitucional concentrada) se encontra o meio ideal para a contenda entre os "Poderes da República" (mais tecnicamente chamado de órgãos do Poder, haja vista a idéia de unidade deste, o qual é consubstanciado em três funções – função legislativa, executiva e judiciária). Neste ambiente, outrossim, não existe uma separação estanque entre os sistemas jurídico e político, uma vez que a nossa Carta Fundamental é o espaço de debate entre os diversos grupos político, econômico etc. que discutem no âmago do Estado [6].

Com efeito, a despeito da imensa aceitação que o controle jurisdicional concentrado de constitucionalidade (e seus efeitos vinculantes) possui dentro do sistema pátrio, bem como da pacífica idéia de que os direitos fundamentais – e as normas constitucionais – devem prevalecer sobre as leis, ainda há críticas (poucas, é verdade) sobre a conseqüência prática da declaração de (in)constitucionalidade pelo Judiciário de determinado ato normativo [7].

Nessa medida, a problemática maior surge na denominada dificuldade contramajoritária, a qual nasce do argumento de que aos órgãos que são compostos por agentes públicos não eletivos (Poder Judiciário), não poderiam (ou não deveriam) competir as declarações de nulidade dos atos normativos emanados dos órgãos que possuem o crivo da escolha popular (Poder Legislativo). Com efeito, ainda há quem defenda que, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, as pessoas afetadas pela decisão do Supremo Tribunal não participam diretamente do debate constitucional, além do que, tal modelo de controle de constitucionalidade não possibilita um verdadeiro diálogo entre o Poder Judiciário e os cidadãos [8]. Ocorre que, na atualidade, este pensamento não encontra aceitação entre a esmagadora maioria dos operadores do direito pátrio, por percucientes razões a seguir demonstradas. Antes, forçoso fazer uma breve abordagem sobre o Poder Constituinte Originário.

O Poder Constituinte Originário é aquele que instaura uma novel ordem jurídica, rompendo, completamente, a ordem pretérita [9]. Na Constituição Federal de 1988, esse poder soberano foi expressado pela Assembléia Nacional Constituinte (1987/88), a qual, por seu turno, nasceu da deliberação da representação popular. É nesse norte que se eleva a principal alegação da legitimidade do controle abstrato de constitucionalidade. Hodiernamente, não há mais como negar a afirmação democrática de que o titular do Poder Constituinte Originário é o povo, que teve seus desígnios exercidos e positivados por intermédio da representação popular (os parlamentares que integraram a Assembléia Nacional Constituinte). Em outras palavras, havendo necessidade de se ter uma Constituição, surge um poder com a finalidade de elaborá-la (Poder Constituinte Originário). Sua vontade é sempre legal, é a lei mesma [10]. É, ainda, um poder inicial, porquanto não se baseia em nenhum outro poder. É dele que derivam os demais poderes (chamados Poderes Constituídos: Executivo, Legislativo e Judiciário). Outrossim, pode-se dizer que é um poder autônomo e incondicionado, pois não se subordina a nenhum outro poder, bem como não há nenhuma forma a ser seguida.

Pois bem, partindo-se dessas premissas, necessário analisar tal questão à luz dos pensamentos de eminentes doutrinadores, bem como do entendimento da maioria doutrinária e jurisprudencial.

Por óbvio, sabendo-se que a Constituição Federal é obra do Poder Constituinte Originário (expressão mais clara da soberania popular), não poderia ser diferente que ela (a Constituição) está acima dos Poderes Constituídos, subordinando até mesmo o legislador, haja vista que num Estado Democrático de Direito o poder supremo é a força popular e não o autoritarismo estatal. Tendo a Carta Magna status de norma jurídica, cabe o mister de interpretá-la e aplicá-la aos órgãos jurisdicionais (em controle concentrado, ao STF). Consoante Luís Roberto Barroso [11], "em uma proposição: o Judiciário ao interpretar as normas constitucionais, revela a vontade do constituinte, isto é, do povo, e a faz prevalecer sobre a das maiorias parlamentares".

Destarte, quando o Poder Judiciário (STF) interpreta uma norma constitucional, não se está diante de um ato volitivo livre ou discricionário, mas sim, se está frente ao exercício da função precípua do Pretório Excelso, qual seja, de guardião da Constituição Federal (vale dizer, guardião da soberania popular). Dessa maneira, claro está que o órgão judicial não impõe a sua vontade, muito menos o seu juízo de valores, mas somente está submetendo os legisladores às escolhas prévias feitas pelo povo [12].

Nesta seara, parece insuficiente a defesa incondicionada do princípio da separação dos poderes (ou melhor, princípio da separação funcional do Poder), uma vez que a jurisdição constitucional é uma instância de força contramajoritária, na medida em que sua função é mesmo de anular determinados atos votados e aprovados majoritariamente (e ofensivamente!) por representantes eleitos. Não obstante, entende-se que os princípios e direitos fundamentais assegurados pela nossa Carta Magna são, na verdade, condições essenciais e estruturantes ao bom funcionamento do próprio regime democrático; desse modo, quando há anulação das leis contrárias a tais direitos, a intervenção do órgão judiciário se dá em benefício da democracia, e não contra [13].

Outrossim, conforme já assinalado anteriormente, malgrado a concepção de que a interpretação judicial (sobretudo da Constituição Federal) envolve um ato de vontade por parte do intérprete, tal vontade (que não deve ser compreendida como discricionária) está subordinada aos princípios que regem o sistema constitucional. Embora os órgãos jurisdicionais não sejam integrados por agentes eleitos, o poder de que são titulares, certa maneira, também é um poder representativo, ou seja, é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade [14]. Constatação que ganha peculiar realce quando se está a tratar de um Tribunal cuja missão é a guarda da Constituição (reitere-se: da vontade popular) e, também, pela razão de que a jurisdição constitucional, por mais técnica e apegada ao direito, jamais se libertará de uma dimensão política [15].

Ademais, parafraseando Lenio Luiz Streck [16], a soberania do parlamento cedeu o passo frente à supremacia da Lei Fundamental, de modo que o respeito pela separação dos poderes e pela submissão dos juízes à lei, foi suplantada pela prevalência dos direitos dos cidadãos face ao Estado. A idéia base, é a de que a vontade política, da maioria governante de cada momento, não pode prevalecer em detrimento da vontade da maioria soberana Constituinte que está jungida à "Lei Mãe". O Poder Constituído – por natureza derivado – deve respeitar o Poder Constituinte (por definição originário).

Por derradeiro, sempre importante colacionar os ensinamentos de invulgares doutrinadores, nesse caso, de Teori Albino Zavascki [17]. Para ele "a lei constitucional não é uma lei qualquer. Ela é a lei fundamental do sistema, na qual todas as demais assentam suas bases de validade e de legitimidade, seja formal, seja material. Na constituição está moldada a estrutura do Estado, seus organismos mais importantes, a distribuição e a limitação dos poderes dos seus agentes; nela estão estabelecidos os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Enfim, a Constituição é a lei suprema, a mais importante, a que está colocada no ápice do sistema normativo. Guardar a Constituição, observá-la fielmente, constitui, destarte, condição essencial de preservação do Estado de Direito no que ele tem de mais significativo, de mais vital, de mais fundamental. Em contrapartida, violar a Constituição, mais que violar uma lei, é atentar contra a base de todo o sistema".

Em outras palavras, a Constituição deve ser preferida à lei, assim como a intenção do povo a seus representantes.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em muitos países que proclamam por uma maior liberdade do indivíduo, como num Estado Democrático de Direito que é a República Federativa do Brasil, essa tendência pode ser insidiosamente restringida mediante uma série de leis, que podem transpor os limites impostos pelo ordenamento pátrio, vale dizer, que violem as premissas básicas do Diploma Maior brasileiro. Destarte, se faz mister a adoção de um mecanismo que compatibilize as referidas leis com a Carta Magna, ou seja, um meio pelo qual irá se proteger a efetividade das normas constitucionais. A jurisdição constitucional concentrada, que representou uma evolução significativa do sistema brasileiro de controle de leis e atos normativos, é o principal mecanismo de garantia da supremacia da Constituição em detrimento das normas infraconstitucionais, porquanto as decisões proferidas pelo único legitimado para defender a Carta Política pela via direta, o Supremo Tribunal Federal, vinculam os demais órgãos do Poder Público, mais especificamente os "Poderes" Executivo e Judiciário. Nesse diapasão, a concepção do processo de controle abstrato de normas, como processo objetivo que é, está amplamente aceita hoje, inclusive pela jurisprudência do próprio Pretório Excelso.

Ademais, o exame dos efeitos das decisões de constitucionalidade ou inconstitucionalidade e dos mecanismos de proteção das normas e princípios constitucionais consiste em tema da mais alta valia no estudo do controle concentrado de constitucionalidade, haja vista que a adoção de uma via oblíqua que não respeite as premissas da Carta Magna pode ocasionar diversos abalos na estrutura normativa do nosso sistema. Assim, os magistrados, após a recepção do modelo de controle concentrado/abstrato jurisdicional pelo ordenamento do país, possuem uma tarefa muito maior do que a mera e tradicional função de simples intérpretes e fiéis vassalos das leis, de modo que há, atualmente, uma preocupação muito mais solidificada em manter-se a soberania da Lei Fundamental, devendo todos os seus atos respeitar à Constituição, sob pena de os que forem praticados com base na lei declarada inconstitucional serem inquinados de nulidade.

Nota-se, outrossim, que no mundo contemporâneo de justiça (Estado Constitucional) deixou-se claro que a legislação deve ser compreendida à luz dos princípios constitucionais, surgindo uma preocupação em proteger os cidadãos através do controle das leis, ao contrário do que ocorria no direito arcaico (Estado Legislativo – época em que os direitos fundamentais dependiam da lei), onde a proteção e a liberdade do ser humano era realizada pela criação de uma lei independentemente dos seus efeitos e da correlação com os princípios de justiça. Gize-se que ainda existe uma preocupação, na atividade legiferante, de serem criadas normas capazes de tutelar os direitos fundamentais dos indivíduos, mas, com muito mais vigor, foi aceita a necessidade de se criar um tipo de controle para que estas leis não reinem soberanas, quer dizer, para que sejam submissas às normas constitucionais. A transformação desse pensamento conduz a uma necessária consciência de proteger os direitos fundamentais, inclusive, frente às próprias leis.

Sendo assim, esta não deixa de ser a lógica do Estado de Direito, onde as normas constitucionais situam-se no ápice da pirâmide normativa e de onde todas as demais espécies de leis obtêm validade.

Em suma, essa atual consciência da necessidade da defesa dos direitos e garantias dispostos na Constituição Federal frente às leis e por um único tribunal, representa uma verdadeira evolução no ordenamento jurídico, de maneira que possibilitou uma aceitação por todos nós do surgimento de um controle de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, o qual ficou incumbido de impor ao legislador e aos demais "Poderes" da República o respeito à Carta Federal. A ponderação entre todo o ordenamento jurídico e as premissas constitucionais consiste em um trabalho dos mais ardilosos e, ao mesmo tempo, essenciais para a manutenção e estabilidade de uma digna ordem constitucional. Esta, quiçá, seja a grande responsabilidade do Poder Judiciário, sobretudo do seu Tribunal Soberano, na função jurisdicional constitucional e na fixação dos efeitos da declaração da constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis.


NOTAS

1.  MARINONI, Luiz Guilherme. Estudos de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 17.

2.  Idem, ibidem.

3.  SILVA, Almiro do Couto e. Responsabilidade do Estado e Problemas Jurídicos Resultantes do Planejamento. In: Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul – Cadernos de Direito Público. Porto Alegre: RPGE, 2003, p. 117.

4.  BARROSO, Luís Roberto (org.). A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 47.

5.  MARINONI. Op. cit., 2005, p. 50.

6.  APPIO, Eduardo. Controle de Constitucionalidade no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005, p. 93.

7.  A questão que suscita as maiores controvérsias, é a que diz respeito à indagação de que se uma norma declarada (in)constitucional pelo STF (Poder Judiciário) não interfere na autonomia do Poder Legislativo quando da criação da lei.

8.  OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2003, p. 54.

9.  LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 66.

10.                  MACHADO. Op. cit., 2005, p. 21.

11.                  BARROSO. Op. cit., 2006, p. 55.

12.                  Idem, p. 55.

13.                  BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 224.

14.                  BARROSO. Op. cit., 2006, p. 60.

15.                  BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 111.

16.                  STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 100-101.

17.              ZAVASCKI. Op. cit., 2001, p. 129.

 

 

* Advogado em Caxias do Sul (RS), bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul

 

 

Disponível em:

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10792

Acesso em: 06 out. 2008.