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A advocacia pública como instrumento do Estado brasileiro
no controle da juridicidade dos atos da administração pública
Aldemario Araujo Castro*
I.
Introdução
O tema sugere uma indagação inicial: é adequado ou pertinente tratar a
Advocacia Pública como instância ou instrumento de controle da juridicidade dos
atos da Administração Pública?
Se controle significa aferição de regularidade ou, em outras palavras,
verificação de conformidade da conduta analisada com certos padrões previamente
estabelecidos, não é possível esquecer da Advocacia Pública nessa discussão.
Não restam dúvidas que a Advocacia Pública realiza, na essência das suas
atribuições, uma análise da conformação de atos específicos aos ditames da
ordem jurídica (1).
A rigor, a temática não é nova (2), embora só recentemente tenha passado
a ocupar mais "espaço" nas reflexões doutrinárias. Registre-se que
existem razões significativas para o relativo "esquecimento" do papel
de controle a ser desempenhado pela Advocacia Pública.
II.
A modernidade e a insuficiência dos instrumentos clássicos ou tradicionais de
controle da atuação da Administração Pública
O pensamento político liberal construiu um importante instrumento de
controle da atuação estatal: o sistema de freios e contrapesos próprio
da divisão dos poderes (ou funções). Admitiu-se, durante considerável período
histórico, a suficiência do modelo idealizado, notadamente para conter abusos e
desvios no seio do Poder Público.
Ocorre que a crescente complexidade da vida econômica, política e
social, inclusive com o alargamento do papel e do "tamanho" do
Estado, decretou a insuficiência dos instrumentos clássicos ou tradicionais de
controle da vida democrática dentro e fora do Poder Público, em particular o
aludido sistema de freios e contrapesos.
A consciência, cada vez mais presente, da necessidade de controles mais
efetivos sobre as ações multifacetadas do Poder Público importou na construção
de importantes instituições nas últimas décadas. Os exemplos mais eloqüentes
desse processo são: a) as Cortes de Contas; b) o Ministério Público; c) os
sistemas de Controle Interno e d) a Advocacia Pública. Trata-se de um fenômeno
contemporâneo caracterizado pela multiplicação de órgãos constitucionalmente
autônomos com nítidas funções de controle, uma verdadeira pluralização de
centros de poder para tornar mais eficientes os controles recíprocos no
exercício das funções públicas.
De todas as instituições enumeradas, a Advocacia Pública é aquela com
menos visibilidade como instância de controle. As razões são as mais variadas.
Entre outras, podemos enumerar: a) a visão arraigada da "advocacia dos
governos", ou pior, a "advocacia dos governantes" e b) a
"menoridade" institucional. Sublinhe-se que a Advocacia-Geral da
União (AGU) não contabiliza sequer quinze anos de funcionamento !!!
III.
A Advocacia Pública como instrumento de controle das ações do Poder Público
O controle exercido pela Advocacia Pública presente nas atividades de
consultoria e de assessoramento jurídicos é mais evidente. Trata-se, por
excelência, da aferição de legalidade e constitucionalidade dos atos
administrativos de uma forma geral e das políticas públicas em particular.
Já o controle na atividade contenciosa é menos visível. Entretanto, está
igualmente presente e é tão importante quanto aquele observado nas atividades
de consultoria e de assessoramento.
Eis alguns dos mais importantes e contundentes instrumentos de controle
manuseados na atividade contenciosa: a) ação de improbidade (Lei n. 8.429, de 2
de junho de 1992 – art. 17, caput e parágrafo terceiro); b) ação civil
pública (Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985 – art. 5o., caput e
parágrafo segundo) e c) ação popular (Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965 –
art. 6o., parágrafo terceiro) (3).
Destaque especial deve ser dado para o "olhar" de controle
sobre o ato administrativo ilegal atacado em juízo. Existe, nessa seara, um
imenso espaço para aperfeiçoar a ação da Advocacia Pública como instrumento de
controle. Primeiro, é preciso superar as equivocadas visões arraigadas na linha
da defesa "a todo custo" ou da defesa "contra tudo e contra
todos". Ademais, nesse campo, a Advocacia Pública pode contribuir de forma
decisiva para a redução dos níveis de litigiosidade que chegam ao Poder
Judiciário.
Importa consignar, com a ênfase devida, a missão fundamental da
Advocacia Pública: sustentar e aperfeiçoar o Estado Democrático de Direito
(interesse público primário). Isso significa que a defesa do interesse público
secundário, meramente patrimonial ou financeiro, pressupõe compatibilidade com
o interesse público primário. O conflito inconciliável entre as duas
manifestações do interesse público resolve-se, com afastamento do secundário,
em favor do primário (4).
Um dos mais significativos exemplos do papel de guardiã da juridicidade
exercido pela Advocacia Pública pode ser observado no controle administrativo
de legalidade para fins de inscrição de débito em Dívida Ativa. Trata-se de uma
atividade pautada pelo interesse público primário. Com efeito, o crédito do
Poder Público poderá ter seu registro negado, por vícios jurídicos identificados,
com claro e direto prejuízo pecuniário para o Erário. Ademais, tais atividades
não se enquadram nas vertentes tradicionais de atuação da Advocacia Pública
(consultoria, assessoramento ou contencioso).
É possível afirmar, sem dúvidas ou receios: o mais eficiente controle de
juridicidade da Administração Pública pode estar, se provida dos meios
necessários, na Advocacia Pública. Indaga-se, quem, além da Advocacia Pública,
consegue, por exemplo, evitar ou se antecipar ao desvio ou abuso
administrativo?
IV.
As garantias e as prerrogativas dos Advogados Públicos
A fixação de garantias e prerrogativas para o exercício das atividades
da Advocacia Pública não surge como uma outorga de favores ou privilégios
inaceitáveis, particularmente quando se observa a sua nobre missão de sustentar
e aperfeiçoar o Estado Democrático de Direito, zelando pela incolumidade dos
interesses públicos primários.
Afinal, a possibilidade efetiva de contrariar interesses os mais
diversos, desde aqueles dos governantes do momento até poderosas manifestações
econômicas privadas, reclama a existência de proteções institucionais ao
desempenho retilíneo das atribuições da Advocacia Pública.
Assim, as garantias e as prerrogativas dos membros da Advocacia Pública
revelam-se meios ou instrumentos de realização plena do interesse público
submetido, de uma forma ou de outra, ao crivo de análise dos vários segmentos
da Advocacia Pública.
Nessa linha, o projeto da nova Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União
contempla acertadamente as garantias e as prerrogativas dos membros da AGU
juntamente com as definições, os princípios e as funções institucionais, apesar
da existência de título específico destinado aos membros efetivos da
instituição (5).
V.
O controle do controle: as corregedorias
Dadas as relevantes e republicanas funções da Advocacia Pública como
instrumento de controle, impõe-se uma indagação fundamental: quem faz o
controle do controle? Tal papel está reservado, em regra, aos órgãos
correicionais, ou simplesmente, às corregedorias.
Existe uma (triste) tradição nos órgãos correicionais, com honrosas
exceções, de agir basicamente mediante provocação. Pontifica uma postura
passiva, a exemplo daquela guarnição, permanentemente de prontidão, para
combater o fogo quando esse aparecer, mostrar a face.
É necessário, no entanto, uma inversão substancial na lógica de
funcionamento dos órgãos correicionais. Exige-se, como fator decisivo de
combate aos desvios administrativos, uma postura ativa consubstanciada no
desenvolvimento de linhas de ação e fiscalização inteligentes e propositivas.
São procedimentos que buscam se antecipar aos eventos nocivos ou identificá-los
de forma mais eficiente (6).
Paralelamente a mudança de postura dos órgãos correicionais, impõe-se a
criação de importantes instrumentos institucionais de investigação e
fiscalização, inclusive com a fixação de poderes especiais para acesso a dados,
informações e manifestações técnicas.
Outra faceta de extremo relevo na atuação correicional está relacionada
com a necessidade de conjugação de esforços dos órgãos encarregados de
investigações. Tal esforço conjunto, notadamente em casos de maior fôlego,
precisam ser efetivado por intermédio de forças-tarefas.
VI.
Conclusão
A crescente complexidade da vida econômica, política e social, com o
alargamento do papel e do "tamanho" do Estado, revelou a
insuficiência dos instrumentos clássicos de controle da vida democrática dentro
e fora do Poder Público. Nesse panorama histórico, surgiram, nas últimas
décadas, novas e importantes instituições de controle das atividades estatais
(Cortes de Contas, Ministério Público, sistemas de Controle Interno e Advocacia
Pública).
A Advocacia Pública funciona como instrumento de controle das ações do
Poder Público nas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos e na
atividade contenciosa. A missão fundamental da Advocacia Pública nesses campos
de atuação consiste basicamente em sustentar e aperfeiçoar o Estado Democrático
de Direito. Assim, a defesa do interesse público secundário, meramente patrimonial
ou financeiro, pressupõe compatibilidade com o interesse público primário.
As garantias e as prerrogativas dos advogados públicos são mecanismos
institucionais voltados para o escorreito desempenho das nobres missões da
Advocacia Pública. Deve ser considerado, no trato desse assunto, que a
Advocacia Pública pode criar enormes embaraços, alguns intransponíveis, para a
realização de interesses que não estão em consonância com a ordem jurídica.
Exige-se, como fator decisivo de combate aos desvios administrativos,
uma postura ativa dos órgãos correicionais da Advocacia Pública (o controle do
controle). Invertendo substancialmente a lógica clássica de funcionamento
passivo ou reativo, impõe-se o desenvolvimento de linhas de ação e fiscalização
inteligentes e propositivas.
NOTAS
(1) O
exercício do controle suscita, pelo menos, duas questões cruciais: a) a
correção do desvio identificado e b) a punição a ser aplicada ao agente
causador ou responsável pelo desvio. Tais enfoques não serão tratados nesta singela
reflexão. A abordagem aqui realizada se fixará no "núcleo" da
problemática, no controle em si, realizado pela Advocacia Pública.
(2) Na
linha da preocupação antiga com o papel de controle da Advocacia Pública,
notadamente no plano administrativo federal, pode ser observado o disposto no
art. 10, inciso XIII, do Decreto-Lei n. 147, de 1967 (Lei Orgânica da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). A norma possui o seguinte formato: "Ao
Procurador-Geral da Fazenda Nacional compete: zelar pela fiel observância e
aplicação das leis, decretos e regulamentos, especialmente em matéria
pertinente à Fazenda Nacional, representando ao Ministro sempre que tiver
conhecimento da sua inobservância ou inexata aplicação, podendo, para êsse fim,
proceder a diligências, requisitar elementos ou solicitar informações a todos
os órgãos, do Ministério da Fazenda ou a êle subordinados ou vinculados, bem
como a qualquer órgão da Administração direta ou autárquica". Vale
ressaltar que a regra em questão encontra-se repetida, em termos, na
competência dos Procuradores da Fazenda Nacional de uma forma geral.
(3) No
âmbito da Advocacia-Geral da União observa-se uma atenção especial para com o
tema. Num primeiro momento, o Procurador-Geral da União, Advogado da União Luís
Henrique Martins dos Anjos, por intermédio da Ordem de Serviço n. 27, de 29 de
maio de 2007, delegou, com algumas exceções, "aos Procuradores-Regionais e
Procuradores-Chefes da União nos Estados a atribuição de decidir sobre a
intervenção ou não da União nas ações civis públicas, populares e de
improbidade administrativa, nas quais a União seja intimada ou de que tome
conhecimento no âmbito do Estado-Membro em que está sediada a respectiva
Procuradoria". Num segundo momento, essa última definição foi inserida no
Ato Regimental n. 7, de 11 de outubro de 2007, do Advogado-Geral da União,
Ministro José Antônio Dias Toffoli, juntamente com a criação do Departamento de
Patrimônio Público e Probidade Administrativa. "O departamento cuidará
especificamente das ações que envolvam a recuperação de verbas desviadas
irregularmente das contas públicas, em razão de atos de improbidade, corrupção
e fraude. O objetivo é atuar de maneira pró-ativa na proposição de ações
judiciais" (conforme notícia veiculada pela Assessoria de Comunicação
Social da AGU).
(4)
"Com efeito, o dever precípuo cometido aos Advogados e Procuradores
de qualquer das entidades estatais é o de sustentar e de aperfeiçoar a ordem
jurídica, embora secundariamente, e sem jamais contrariar essa primeira
diretriz constitucional, possam esses agentes atuar em outras missões de natureza
jurídica ou administrativa voltadas às atividades-meio, como aquelas que se
desenvolvem em sustentação às medidas governamentais, à assessoria jurídica, à
direção de corpos jurídicos etc.
Mas é
importante ter-se presente que, em caso de colidência entre as
atribuições secundárias, que porventura lhes sejam cometidas, com
aquelas duas, primárias, estas deverão prevalecer sempre, por terem
radical constitucional, ou seja, em síntese: por serem missões essencialmente
de sustentação da ordem jurídica." (MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. A Advocacia de Estado Revisitada. Essencialidade ao Estado
Democrático de Direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Espírito
Santo. Vitória: PGE/ES, 2005, Volume 4. Número 4. Pág. 48).
(5) O
projeto de nova Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União foi apresentado pelo
Advogado-Geral da União Substituto, Procurador da Fazenda Nacional Evandro
Costa Gama, no "Seminário Brasileiro sobre Advocacia Pública Federal",
realizado, em Brasília, nos dias 15, 16 e 17 de agosto de 2007.
(6) São
várias as linhas de investigação "alternativas" com significativo
potencial de desenvolvimento. Eis algumas delas: a) sindicâncias patrimoniais;
b) análise das manifestações jurídicas nos processos administrativos onde foram
realizados os maiores pagamentos pela Administração Pública; c) conferência das
petições apresentadas nos processos judiciais mais relevantes (segundo vários
critérios de aferição) e d) verificação dos pronunciamentos jurídicos nos
processos administrativos e judiciais relacionados com "escândalos"
noticiados pela imprensa e "operações" conduzidas pela Polícia
Federal e pela Controladoria-Geral da União. Registre-se que essas possibilidades
"fogem" da lógica tradicional de considerar o órgão jurídico como
"foco" (ou "alvo") de aferição de regularidade e de
eficiência dos serviços jurídicos.
* Procurador da Fazenda Nacional,
mestre em Direito, professor da Universidade Católica de Brasília (UCB),
coordenador da Especialização (à distância) em Direito do Estado da UCB.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10772
Acesso em: 17 set.
2008.