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Jerri Eddie Xavier Coelho*
1. Introdução
A lei 10.180/2001
organiza os sistemas de planejamento, orçamento, administração financeira,
contabilidade, e também o Sistema de Controle Interno do Poder Executivo
Federal.
No que concerne
especificamente ao exercício da função de Controle Interno, incumbido, por
força de disposições constitucionais (art. 70 da CF/1988), de fiscalizar os
atos de gestão praticados no âmbito do Poder Executivo Federal, buscaremos aqui
analisar o teor do artigo 26 da citada lei, disciplinador de um poder-dever
administrativo.
No breve estudo
que passaremos a desenvolver, abordaremos os aspectos referentes ao
significado, à aplicabilidade e à responsabilização pelo descumprimento do
dispositivo legal.
2. Da norma e seu objetivo.
No curso das ações
fiscalizadoras que os agentes do Controle Interno desenvolvem sobre órgãos
federais ou sobre os atos de qualquer outra pessoa física ou jurídica que
gerencie recursos federais [01], faz-se constantemente necessária a
requisição de documentos e informações que sirvam como fonte para as análises a
serem efetuadas.
O respaldo legal
para estas requisições está contido no texto do artigo 26 da lei 10.180/2001,
que possui a seguinte redação:
Art. 26. Nenhum processo,
documento ou informação poderá ser sonegado aos servidores dos Sistemas de
Contabilidade Federal e de Controle Interno do Poder Executivo Federal, no
exercício das atribuições inerentes às atividades de registros contábeis, de
auditoria, fiscalização e avaliação de gestão.
1o
O agente público que, por ação ou omissão, causar embaraço, constrangimento ou
obstáculo à atuação dos Sistemas de Contabilidade Federal e de Controle
Interno, no desempenho de suas funções institucionais, ficará sujeito à pena de
responsabilidade administrativa, civil e penal.
2o
Quando a documentação ou informação prevista neste artigo envolver assuntos de
caráter sigiloso, deverá ser dispensado tratamento especial de acordo com o
estabelecido em regulamento próprio.
3o
O servidor deverá guardar sigilo sobre dados e informações pertinentes aos
assuntos a que tiver acesso em decorrência do exercício de suas funções,
utilizando-os, exclusivamente, para a elaboração de pareceres e relatórios
destinados à autoridade competente, sob pena de responsabilidade
administrativa, civil e penal.
4o
Os integrantes da carreira de Finanças e Controle observarão código de ética
profissional específico aprovado pelo Presidente da República.
Trata-se, como se
pode observar, de regra jurídica construída dentro de uma formulação
hipotético-condicional, para a qual se fixou, na parte inicial do § 1º, uma
hipótese de incidência (embaraçar, constranger ou obstaculizar), seguida, de
uma conseqüência jurídica [02] que, neste caso, é a sujeição à
necessária apuração de responsabilidade.
Ou seja, ao
objetivar coibir determinado fato (sonegação de informações e documentos), a
regra sob estudo, na verdade, veda a prática da conduta que o gera, que se
traduz em embaraçar, constranger ou obstaculizar a ação do auditor,
dificultando-lhe o acesso aos elementos necessários ao seu trabalho.
A regra, como se
percebe pela leitura do § 1º, dirige-se ao agente público, sujeito passivo da
ação de fiscalização. Cabe, contudo, verificar o alcance do conceito de agente
público neste caso, tendo em vista que a própria Constituição Federal ampliou,
por meio Emenda Constitucional n.º 19/1998 [03], o âmbito de atuação
dos órgãos de controle externos e internos. Desta forma, e considerando que
aqui tratamos de norma que pode vir a desdobrar-se em responsabilidade penal –
§ 1º, in fine –, temos que o
conceito de agente público deve abranger também aqueles a quem o Código Penal,
em seu art. 327, § 1º, chama de equiparados:... quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem
trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a
execução de atividade típica da Administração Pública.
Por fim, para que
o agente do Controle Interno possa exercer sua prerrogativa de acessibilidade –
operada em benefício do interesse público de que haja, efetivamente,
fiscalização – tal como descreve o caput
do artigo 26, deve estar atuando no exercício regular de suas
atribuições, ou seja, no desenvolvimento de trabalhos fiscalizatórios ou,
ainda, de qualquer outro trabalho onde o Controle Interno atue com a
imperatividade emanada da lei, prescindindo da vontade do sujeito fiscalizado
[04].
3. Da preservação do sigilo.
Os parágrafos
segundo e terceiro do dispositivo em tela, por suas vezes, tratam de tema
relevante, qual seja o do acesso a informações protegidas por alguma forma de
sigilo.
Inicialmente, há
que se perquirir sobre qual o sigilo que aqui se quer proteger, se apenas os
decorrentes de lei – os já conhecidos sigilos fiscal e bancário –, ou se também
aqueles decorrentes de circunstâncias fáticas, mercadológicas ou societárias,
com que frequentemente se deparam os agentes do Controle Interno, quando em
fiscalizações sobre, por exemplo, empresas estatais, suas subsidiárias e
controladas.
Parece-nos que ao
não restringir objetivamente o tipo de sigilo a ser resguardado, e por
tratar-se de regra que amplia a proteção a informações especiais, devemos
considerar que deve ser dispensado tratamento especial a qualquer tipo de
informação protegida por sigilo que venha a ser disponibilizada em razão do
art. 26, sob comento. Obviamente que as hipóteses previstas em lei, como os
sigilos bancário e fiscal, prescindem de justificativas fáticas para que se
lhes dispense tal tratamento.
O mesmo, contudo,
não ocorre em relação às demais matérias que podem ser alegadas pelos sujeitos
passivos da fiscalização, cujos argumentos sejam fundados em questões fáticas
potencialmente lesivas ao ente fiscalizado ou pessoa envolvida, como, por
exemplo, a possibilidade de que a informação, uma vez divulgada, venha a gerar
prejuízos financeiros à entidade, ou prejudicar-lhe determinada estratégia
comercial, ou, ainda, que determinada informação possa vir a denegrir imagem de
pessoa, geralmente administrador público, por fato ainda não totalmente
esclarecido. Em tais casos, não havendo previsão legal expressa, deverá o
Controle Interno analisar o caso à luz das circunstâncias, das regras objetivas
e dos princípios, buscando verificar a valiosidade da informação que se quer
proteger, e, principalmente, se é possível e coerente, no caso concreto, que se
abra mão da publicidade e da transparência em favor da proteção desta
informação.
Todavia, em todos
os casos – sigilos fiscal, bancário e os demais –, tal decisão, a de dispensar
tratamento especial às informações obtidas, deve ser formalmente postulada e
sua concessão fundamentada.
O parágrafo
segundo requer também que o órgão de Controle Interno institua regulamento para
disciplinar o tratamento a ser dispensado aos documentos sigilosos. Tal tarefa
impõe-se, com urgência, aos órgãos que dela ainda não se desincumbiram, pois a
inação representa obstáculo internamente mantido ao exercício, em sua
completude, da atividade fiscalizadora dos órgãos de controle. Devemos também considerar
que aqui não há motivos para demoras ou omissões, pois tais regulamentos podem
ser editados por normas infralegais, não se justificando o tempo que já decorre
desde aprovação da lei, em 2001, até os dias de hoje, sem que tal assunto tenha
alcançado solução.
No caso dos
sigilos legalmente previstos, independentemente da existência de regulamento
dos órgãos de controle para tratamento interno das informações, temos visto
como comum que órgãos fiscalizados, como a Receita Federal, por exemplo, neguem
ao Controle Interno o acesso aos documentos, processos e informações que,
segundo sua interpretação, contêm informação protegida por sigilo fiscal. O
argumento básico desta negativa é que o sigilo é estabelecido e estatuído por
lei complementar (Código Tributário Nacional - CTN), e que a Lei n.º
10.180/2001 não teria força para mitigá-lo, eis que de natureza ordinária.
Ao nosso ver, não
milita razão a este tipo de argumento, fundado na hierarquia das normas, tendo
em causa que tais diplomas tratam de temas diferentes: o CTN preserva o sigilo
fiscal como forma de proteção reflexa ao direito fundamental de preservação da
intimidade e da vida privada [05], enquanto que a Lei n.º
10.180/2001 abre a possibilidade de que se requeira, no caso das fiscalizações
que tenham como sujeito passivo a Receita Federal, informações sobre a
atividade do órgão arrecadador com a finalidade de aferir se há, na atividade
de gestão, a necessária observância das regras, procedimentos e princípios da
administração pública, e a consonância com os objetivos e metas previstos no
orçamento.
Ou seja, o
Controle Interno não requer, via de regra, informações com a finalidade de
acessar situação fiscal de contribuintes, mas sim com o objetivo de obter
subsídios consolidados para avaliar a gestão tributária do órgão de
arrecadação.
Nos casos em que o
Controle Interno solicita informação de contribuinte é porque ali atua,
fulcrado no inciso II do art 198 do CTN [06], seu braço correicional
(função anexa ao Controle Interno, inserida pela Lei n.º 10.683/2003).
Tema que também
importa salientar é a responsabilidade que o auditor do Controle Interno
assume, por disposição do § 3º do art. 26, quando acessa informações de caráter
sigiloso. O uso indevido destas informações o sujeita não somente às repercussões
administrativas previstas em lei, mas também implica em responsabilização
penal, uma vez que sua conduta poda configurar o tipo previsto no art. 325 do
Código Penal: violação de sigilo profissional.
4. Da apuração de responsabilidade
A instauração do
procedimento de apuração de responsabilidade pelo descumprimento, pelo sujeito
passivo da fiscalização, da regra posta no artigo 26 da Lei 10.180/2001, não é
ato discricionário do dirigente do Controle Interno. É dever.
Todo o poder
conferido à autoridade pública traz consigo o dever de exercê-lo. Desta forma,
tendo a lei estabelecido que a sonegação de informações e documentos implica em
apuração de responsabilidade, não pode o agente do Controle Interno, conforme o
juízo discricionário que faça de cada caso, decidir quando e regra deve ou não
ser aplicada. Tratamos aqui de ato vinculado, previsto em lei, e não de um
sistema de alternativas gerenciais postas à disposição do administrador.
Obviamente que a
responsabilização efetiva do sujeito passivo dependerá do que vier a ser
apurado no decorrer do processo previsto pela lei, onde deverão ser observadas
todas as garantias legais (devido processo legal, ampla defesa e contraditório)
aplicáveis a qualquer processo de apuração, por desígnio constitucional.
É, contudo, dever
inicialmente posto ao auditor do Controle Interno, ao deparar-se, durante seus
trabalhos, com a ocorrência de fato que possa configurar a obstaculização
reprimida pelo art. 26, relatar o fato, em termo circunstanciado [07],
aos seus superiores, para fins das providências prescritas.
Especial
referência merece, em nosso entender, a forma pela qual o auditor deverá
informar o fato aos seus superiores. Não podemos confundir o dever de reportar
administrativamente o fato ocorrido, com a obrigação, também imposta ao
auditor, de relatar a ocorrência técnica no âmbito do relatório de auditoria ou
de fiscalização que é elaborado pelo auditor, no final do trabalho. A primeira
exigência decorre de dever imposto ao servidor público em conseqüência do
inciso VI, art. 116 da Lei n.º 8.112/90, e deve ser exercida de pronto; a
segunda exigência é obrigação funcional decorrente da aplicação das normas
técnicas de auditoria, que exigem o relato das restrições impostas ao trabalho
auditorial.
O dirigente do
Controle Interno, por sua vez, notificado da irregularidade, após tomar as
providências que entender razoáveis para resolver o problema em sede de
entendimentos com o agente fiscalizado (visando à disponibilização da
documentação), deverá, em não obtendo êxito, iniciar, de ofício, os atos
tendentes a dar a necessária apuração ao fato, sob pena de omissão [08]
no cumprimento do dever, eis que aqui não há direito dispositivo do
administrador, mas regra cogente, protetiva da função estatal de Controle Interno,
no resguardo do interesse público.
Cumpre também,
ainda que perfunctoriamente neste estudo, divisar quais as providências a serem
adotadas com a finalidade de realizar a conseqüência contida na regra, qual
seja, a apuração de responsabilidades nas três esferas previstas no texto
legal: administrativa, civil e penal.
Para a
responsabilização administrativa, caberá ao próprio órgão de Controle Interno
tomar as providências necessárias para que o processo seja instaurado e
conduzido de forma adequada [09]. Obviamente que este tipo de
responsabilidade somente pode ser exigida de servidor público que esteja
vinculado a um regime jurídico que a preveja, e nos termos em que a prevê,
identificando sempre o tipo legal violado.
Para a
responsabilização na esfera civil, havendo indícios de improbidade [10],
ao dirigente do Controle Interno caberá a notificação do Ministério Público e
da Advocacia-geral da União, haja vista competência concorrente destes órgãos
para a ação [11].
No caso da
apuração penal, o fato deve ser informado ao Ministério Público, a fim de que,
após análise, decida sobre eventual cabimento de imputação nesta seara.
Afora estas
providências, persiste, obviamente, a necessidade de ciência ao Tribunal de
Contas da União, haja vista o teor do comando contido no § 1º, art. 74, da
CF/88: os responsáveis pelo controle
interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade,
dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade
solidária.
O que importa,
contudo, é que as medidas sejam levadas a efeito por quem tenha o dever de
agir, de modo a evitar-se a proliferação deste tipo de prática que, na
aparentemente simples indisponibilização de processos e documentos, muitas
vezes oculta irregularidades de grande potencial lesivo e prejudicam a eficácia
da ação do Controle Interno.
5. Conclusão
Encerramos este
estudo reafirmando que a efetividade das ações do Controle Interno
Constitucional depende da disposição de seus operadores em conferir consequências
às suas atividades.
Tal efetividade
encontra acolhimento na legislação. Contudo, ainda é preciso avançar na
construção e consolidação da consciência de respeito à lei, eis que é este o
traço distintivo entre as instituições que avançam e as que perecem.
Notas
01 Constituição
Federal de 1988, art. 70, § 1º: Prestará contas qualquer pessoa física ou
jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou
administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda,
ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.
02 DWORKIN, Ronald. The models of rules. University of
Chicago Law Review, 35/22.
03 Vide nota 1.
04 PIETRO, Maria
Sylvia Zanella de. Direito
Administrativo. São Paulo, Atlas, 9ª ed. P.166.
05 CF/88, art. 5º,
inciso X: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação;
06 O art. 198,
inciso II, do CTN permite o fornecimento de dados fiscais no caso de solicitações de autoridade administrativa no
interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração
regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o
objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por
prática de infração administrativa. (Redação dada pela EC 19/1998).
07 Lei 8.112/90:
Art. 116. São deveres do servidor: (...)VI - levar ao
conhecimento da autoridade superior as irregularidades de que tiver ciência em
razão do cargo.
08 Sobre o tema ver:
CORRÊA, Bruno Gaspar de Oliveira. O
comodismo e o especial fim de agir do crime de prevaricação. Jus
Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1178, 22 set. 2006. Disponível em:
09 Lei 10.683/2003:
Art. 18. À Controladoria-Geral da União, no exercício de sua competência, cabe
dar o devido andamento às representações ou denúncias fundamentadas que
receber, relativas a lesão ou ameaça de lesão ao patrimônio público, velando
por seu integral deslinde.
1o À
Controladoria-Geral da União, por seu titular, sempre que constatar omissão da
autoridade competente, cumpre requisitar a instauração de sindicância,
procedimentos e processos administrativos outros, e avocar aqueles já em curso
em órgão ou entidade da Administração Pública Federal, para corrigir-lhes o
andamento, inclusive promovendo a aplicação da penalidade administrativa
cabível.
10 Lei 8.429/1992,
artigo 11: Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os
princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os
deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições,
e notadamente: I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou
diverso daquele previsto, na regra de competência;
11 Vigliar, José
Marcelo Menezes. Improbidade
administrativa – questões atuais e polêmicas. 2ª edição. São Paulo:
Malheiros. 2003. pg. 287.
* Analista de finanças e controle da
Controladoria Geral da União, bacharel em Direito, especialista em
Administração Pública
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10714
Acesso em: 25 ago.
2008.