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Paulo Antonio de Menezes Albuquerque*
Rodrigo Ferraz de Castro Remígio**
Sumário: 1 Introdução. 2 Abertura do catálogo de
direitos fundamentais. 3 Incorporação do tratado ao direito interno. 3.1
Tratado internacional com "status" de lei ordinária. 3.2 Caráter
constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. 3.3 O
"status" intra-sistemático dos tratados internacionais 3.4 Caráter
supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos. 3.5 Hermenêutica
constitucional e o lugar dos tratados internacionais de direitos humanos 4
Conclusão. Referências bibliográficas.
Resumo
O objetivo do presente estudo é abordar os posicionamentos da doutrina e
jurisprudência sobre a natureza dos tratados internacionais de direitos humanos
ratificados pelo Estado brasileiro. Após identificar as principais correntes
doutrinárias sobre a matéria, questiona-se a possibilidade de incluir no modelo
de análise constitucional contemporâneo outro "locus" hermenêutico,
pelo qual as normas jurídicas retirem também seu fundamento de validade.
Palavras-chave: Tratados internacionais de direitos
humanos. Neoconstitucionalismo. Nova Hermenêutica. "Locus"
hermenêutico.
1.Introdução
Após a segunda guerra mundial, iniciou-se o processo de
internacionalização dos direitos humanos. Surgiram dois tipos de sistemas
protetivos: o sistema global (fomentado pela ONU) e os sistemas regionais
(sistemas europeu e interamericano). Isto fez eclodir uma nova forma de pensar
o direito, pela qual a dignidade da pessoa humana torna-se o objetivo de todo
Estado Democrático de Direito, sendo indispensável que a Constituição de um
Estado positive os direitos humanos e forneça formas de concretização e
instrumentos de garantia.
Existe uma discussão na doutrina e jurisprudência quanto à natureza dos
tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro, a saber, se
configurariam ou ostentariam: a) status
de lei ordinária; b) natureza constitucional; c) natureza supralegal; d)
natureza de emenda constitucional. O objetivo do presente estudo é analisar
esses posicionamentos, considerando a incorporação recente dos tratados de
direitos humanos em posição de igualdade com os princípios fundamentais
constitucionais.
2.Abertura do catálogo de direitos fundamentais
Os direitos fundamentais, entendidos como concretização da dignidade do
ser humano, configuram, juntamente com o princípio de separação dos poderes, o
núcleo "substancial" da Constituição. O Estado de Direito não pode
mais se preocupar com a mera positivação formal desses direitos, pois as ações
estatais são legitimadas na medida em que cumprem uma função ativa na afirmação
e efetivação dos direitos e garantias fundamentais.
Expressamente reconhecidos logo no início da Constituição Federal, os
direitos fundamentais positivados no Título II da Constituição Federal de 1988
não formam um sistema fechado e autônomo. [01] Ao contrário, a
Constituição possui abertura tanto para conteúdos "metanormativos"
(valores, princípios, justiça material), quanto para outros estatutos jurídicos
(ordem jurídica internacional). [02] O § 2° do seu art. 5° confirma
a existência de um sistema de direitos e princípios fundamentais aberto e
flexível (TRINDADE, 2003, p.512), verbis
[03]:
Art. 5º, § 2º: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
O rol contido no Título II, portanto, é meramente exemplificativo. O
dispositivo supracitado expõe um sistema constitucional aberto de direitos
fundamentais que se correlaciona com outros dispositivos do próprio texto
constitucional (direitos e garantias expressos), com princípios constitucionais
implícitos (decorrentes do regime adotado pela Constituição e dos princípios
constitucionais) e com tratados internacionais de direitos humanos. Esse
sistema de direitos fundamentais apresenta uma importante "nota de
fundamentalidade" (SARLET, 2007, p.88 e ss.), caracterizado por um duplo
aspecto: um, sob o prisma formal, o outro, sob o prisma material.
Sob o aspecto formal,
possuem caráter supralegal (estão no ápice do ordenamento jurídico),
submetem-se a limites da reforma constitucional (art. 60, § 4°, IV, CF,
caracterizando-se como "cláusulas pétreas") e são normas diretamente
aplicáveis, vinculando entidades públicas e privadas (art. 5°, § 1°). Sob o
aspecto material, implicam no
fato de que a Constituição permite uma abertura do que se entende por direitos
fundamentais através do art. 5°, § 2° – em outras palavras, há outros direitos
decorrentes, outros implícitos e aqueles que são originários de tratados
internacionais que, embora não façam parte do catálogo, são materialmente
constitucionais.
Restringe-se o objeto do presente estudo à aferição dos direitos
fundamentais que se encontram fora do catálogo do Título II, mas que são
materialmente constitucionais: os tratados internacionais de direitos humanos.
3.Incorporação do tratado ao direito interno
O costume no âmbito internacional, fonte mais tradicional do Direito
Internacional, tem cedido lugar a uma codificação dos tratados internacionais
por duas razões: a evolução dos sistemas regionais internacionais de direitos
humanos e a globalização, que remove as fronteiras em favor das relações
comerciais entre os países em todo o mundo.
A doutrina costuma apontar outros instrumentos que se tornaram sinônimos
como, v.g., convenção,
declaração, protocolo, carta, pacto, acordo, convênio, variando, no mais das
vezes, a complexidade do tema e o número de partes. Adotamos aqui o vocábulo tratado internacional "lato
sensu", o que engloba todos esses instrumentos internacionais, posto que
possuem a mesma natureza. Assim, tomamos a conceituação de MAZZUOLLI (2004,
p.48), para defini-lo como "um acordo formal de vontades concluído entre
os sujeitos de direito internacional público, regido pelo direito das gentes e
destinado a produzir, imprescindivelmente, efeitos jurídicos para as partes que
aderiram".
No direito pátrio, o consentimento em obrigar-se por um tratado é um ato
complexo. Pertence ao Chefe do Executivo a competência privativa para celebrar
atos internacionais (assinatura do compromisso), mas depende de abono do
Legislativo para que posteriormente proceda com a ratificação. O Presidente da
República precisa remeter o texto do tratado através de mensagem ao Congresso
Nacional. A matéria será discutida primeiro na Câmara e depois no Senado, que a
poderá rejeitar ou aprovar. Aprovado o decreto legislativo pelo Congresso
Nacional [04], será publicado pelo Presidente do Senado, o que
autorizará o Presidente da República a ratificar o tratado. Ratificado, surtirá
efeitos na ordem internacional. Após a ratificação, para que tenham validade
interna [05], o tratado deve ser promulgado por decreto do
Presidente da República.
A ratificação de um tratado internacional implica o reconhecimento de
uma ordem jurídica internacional pelo direito interno. Surgem, então, problemas
doutrinários "que consistem em sabermos qual o tipo de relações que [o
direito internacional e o direito interno] mantêm entre si" (MELLO, 2004,
p.109). A doutrina se divide quanto ao dualismo e ao monismo.
Para os adeptos do dualismo, direito interno e direito internacional são
dois sistemas independentes. [06] Os autores monistas apontam para
uma convergência harmônica entre os sistemas internacional e interno [07].
No entanto, quando surgem conflitos entre os dois sistemas, deve-se optar pela
primazia da ordem interna ou da ordem internacional. Para a solução desse
problema, surgiram duas correntes dentro do monismo: para uns, há prevalência
da ordem jurídica internacional (monismo
internacionalista); para outros, a interna (monismo nacionalista).
Para os adeptos ao monismo
internacionalista - cujo maior expoente foi KELSEN - o direito
internacional é hierarquicamente superior, estando o direito interno a ele
subordinado. De outro lado, o monismo
nacionalista se firma na soberania absoluta do Estado ao pregar o
primado do direito interno, o que se "justifica pela ausência de
autoridade supra-estatal internacional, o que implica a liberdade de cada
Estado apreciar suas obrigações internacionais e escolher os meios de
execução" (MACHADO, 1999, p.44-45). A adoção do direito internacional
seria mera discricionariedade, prendendo-se a um verdadeiro "culto" à
Constituição (REZEK, 2006, p.05).
Como se verá adiante, a opção pelo dualismo ou monismo refletirá na
corrente a qual o intérprete se filiará quando se deparar com um tratado
relativo a direitos humanos: a) tratado internacional com status de lei ordinária (antiga
posição do STF); b) sua natureza constitucional (PIOVESAN, TRINDADE, MAZZUOLI);
c) sua natureza supralegal (novo posicionamento do STF); d) natureza de emenda
constitucional (art. 5°, § 3° da CF/88).
3.1.Tratado internacional com
"status" de lei ordinária
A doutrina majoritária interpreta o § 2° do art. 5° da Constituição de
forma restritiva, aduzindo que as normas previstas em atos internacionais, ainda
que pertinentes a direitos humanos, ingressam no ordenamento jurídico como atos
infraconstitucionais, estando, portanto, no mesmo nível hierárquico das leis
ordinárias (CHIMENTI, 2006; MORAES, 2006; SLAIBI FILHO, 2006). Exemplo disto é
o posicionamento de FERREIRA FILHO. Em sua visão, somente os tratados de
direitos humanos aprovados pelas duas Casas do Congresso Nacional em dois
turnos e pela maioria de três quintos de seus membros seriam normas
constitucionais. Enfatiza, logo adiante, que os instrumentos internacionais
aprovados "sem essa maioria qualificada valerão como lei
infraconstitucional" (2007, p.297).
Esta também tem sido a posição majoritária no Supremo Tribunal Federal,
que passou a sinalizar para esse caminho em 1977 no julgamento do RE 80.004-SE
e, sob a vigência da nova Constituição, nos julgamentos do HC 72.131-1-RJ
(1995) e da ADIN-MC 1.480-3-DF (1997). No primeiro caso, iniciou-se a discussão
em torno da prevalência ou não da ordem jurídica interna sobre a internacional.
O relator, Min. Xavier de Albuquerque votou pela prevalência do instrumento
internacional em face de uma lei ordinária posterior, somente admitida a
revogação do compromisso internacional através de ato próprio, qual seja, a
denúncia do tratado. Vejamos um trecho do voto:
A partir do julgamento, em Plenário do RE 71.154, de que foi Relator o
eminente Ministro Oswaldo Trigueiro (RTJ 58/70), o Supremo Tribunal vem
decidindo reiteradamente que as Leis Uniformes adotadas pelas Convenções de
Genebra incorporaram-se ao nosso direito interno e entraram em vigor, no
Brasil, a contar dos decretos que as promulgaram. Tais decisões reforçaram e
atualizaram, em nossos dias, antiga orientação de nossa jurisprudência no
sentido do primado do direito internacional sobre o direito interno, como depõe
o Professor Haroldo Valladão [...]. (Supremo Tribunal Federal: RE 80.004-SE,
plenário: 01/06/1977. DJ de 29/12/1977).
Foi ele vencido pelo seguinte entendimento: ao adentrar no ordenamento
jurídico interno, o tratado assume o caráter de lei ordinária. A superveniência
de lei com ele conflitante poderia revogá-lo, não se aceitando o primado do
direito internacional. Em razão da solução lex posterior derrogat priori, utilizada diante dos conflitos
entre normas de mesma hierarquia, o tratado pode ser revogado pelo Legislativo,
dispensando a denúncia.
Firma então o Supremo Tribunal Federal no HC 72.131-1 (plenário de
22/11/1995. DJ de 01/08/2003) o entendimento sobre o status de lei ordinária mesmo dos tratados internacionais de
direitos humanos, servindo a discussão pelo Plenário do Supremo de referência
para os casos vindouros (HC 81.139-GO, HC 77.053-SP, HC 79.870-SP, RHC
80.035-SC, HC 72.131-1-RJ.), principalmente no que tange à constitucionalidade
do DL 911/69 na parte que trata da prisão civil do devedor, considerado
depositário do bem alienado. O objeto do habeas
consistiu, portanto, no pedido de concessão de ordem para pôr o paciente em
liberdade, afastando a constitucionalidade da prisão civil do fiduciante,
considerado pelo Decreto-lei 911/69 como depositário fiel do bem alienado. O
julgamento foi marcado por divergências. O Plenário, por maioria, decidiu pelo
indeferimento da ação.
O Relator, Min. Marco Aurélio, considerou ilegítima a equiparação do
contrato de alienação fiduciária regulamentado pelo Decreto-lei 911/69 com o
contrato de depósito. Conforme seu entendimento, a alienação fiduciária não é
depósito, mas contrato de compra e venda com uma indevida cláusula coercitiva
de prisão. O fiduciante, consequentemente, não tem o dever de guarda. Por outro
lado, a ratificação do Pacto de San José da Costa Rica em 1992 implicou a
derrogação do DL 911/69, dado o seu caráter de lei ordinária posterior. No
entanto, prevaleceu o entendimento firmado pelo Min. CELSO DE MELLO, conforme
se depreende do seu voto abaixo:
Na realidade, inexiste, na perspectiva do modelo constitucional vigente
no Brasil, qualquer precedência ou primazia hierárquico-normativa dos tratados
ou convenções internacionais sobre o direito positivo interno, sobretudo em
face das cláusulas inscritas no texto da Constituição da República, eis que a
ordem normativa interna não se superpõe, em hipótese alguma, ao que prescreve a
Lei Fundamental da República.
No terceiro julgado, ADIN-MC 1.480-3-DF (plenário de 04/09/1997, DJ
18/05/2001), restou consolidada a tese de que os tratados internacionais,
qualquer que seja sua natureza, ingressam no direito interno no mesmo degrau
das leis ordinárias, a elas se equiparando:
No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais
estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da
República. [...] uma vez incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema
jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade
em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas
e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa.
Precedentes.
A principal razão da tese da paridade entre tratado internacional de
direitos humanos e a lei ordinária está em reconhecer a ordem jurídica
internacional separada do direito interno. Como conseqüência, o primado do
ordenamento jurídico interno encontra fundamento na soberania do Estado. Não
que os tratados, uma vez ratificados, sejam despidos de normatividade;
situam-se, como mencionado na imagem da pirâmide kelseniana, no mesmo degrau
ocupado pelas leis ordinárias. No entanto, há a ressalva de que, se conflitarem
com a Constituição ao prever um direito fundamental mais abrangente e intenso,
a primazia continuará sendo do direito interno.
3.2.Caráter constitucional dos tratados
internacionais de direitos humanos
Minoritária na doutrina, faz-se presente na jurisprudência do STF a tese
da paridade do tratado com a lei ordinária. [08] Esta orientação,
seguida por TRINDADE, PIOVESAN e GOMES, entende que o §2° do art. 5° da CF/88
confere um caráter constitucional não a qualquer tratado internacional, mas
àqueles que se referem a direitos humanos. Embora não sejam formalmente
constitucionais, a referida cláusula de abertura seria por demais cristalina ao
considerar esses instrumentos internacionais como substancialmente
constitucionais.
A tese da materialidade constitucional desses instrumentos revela assim
uma posição monista internacionalista: o que está em jogo é a prevalência da
norma "humanitarista". Por esse prisma, a soberania não é absoluta. A
ordem jurídica interna há de se compatibilizar com os sistemas internacionais
de proteção de direitos humanos, em especial o interamericano. Esta a interpretação
que se faz quando a Constituição de 1988 coloca como fundamento da República a
dignidade da pessoa (art. 1°, III) e seu principal objetivo a construção de uma
sociedade justa (art. 3°, I). Esses princípios tanto valem para a ordem
jurídica interna quanto para a externa, uma vez que o Estado regerá suas
relações internacionais tendo como guias a cooperação com outros sujeitos
internacionais (art. 4°, IX) e a prevalência dos direitos humanos (art. 4°,
II). [09]
O objetivo do §2° do art. 5° da CF/88, na colocação de SARLET (2007,
p.141), é consagrar o princípio da não-tipicidade dos direitos fundamentais,
cujo escopo não é a restrição, e sim
[...] ampliar e completar o catálogo dos direitos fundamentais,
integrando, além disso, a ordem constitucional interna com a comunidade
internacional cada vez mais marcada pela interdependência entre os Estados e
pela superação da tradicional concepção da soberania estatal.
Busca-se, conforme destaca SAGÜÉS (2006, p.211-213), não uma destruição,
mas uma conciliação das esferas internacional e interna, mediante o uso de uma
interpretação sistemática. Mas, se um tratado concede a um particular um
direito fundamental mais intenso do que o contemplado na Constituição ou uma
norma infraconstitucional, prevalece o direito do tratado. No mesmo
sentido, MAZZUOLI (2004, p.224), quando defende o primado dos tratados
internacionais de direitos humanos:
O Brasil, no que diz respeito aos tratados internacionais de proteção
aos direitos humanos, como se depreende do § 2°, do art. 5°, da sua Carta
Magna, adotou o monismo
internacionalista apregoado por Hans Kelsen, posto que a Constituição
brasileira contém um preceito por força do qual o direito internacional dos
direitos humanos deve valer como parte integrante da ordem jurídica interna, com
o status de norma
constitucional.
Por incorporar uma disposição de direitos humanos, o direito
internacional passa a integrar o direito interno na mesma hierarquia das demais
normas constitucionais de direitos fundamentais. O §2° do art. 5° representa uma
cláusula de abertura, o que significa dizer que a própria Constituição permite
que todo tratado humanitarista ratificado pelo Legislativo ingresse no
ordenamento jurídico interno pelo andar mais alto do sistema jurídico
brasileiro.
A ordem jurídica internacional é caracterizada pela coordenação entre os
sujeitos internacionais, tornando o dogma da soberania "inteiramente
inadequado ao plano das relações internacionais" (TRINDADE, 2002, p.
1046). Não se pode, portanto, afastar o sistema jurídico internacional de
proteção dos direitos humanos sob o argumento de que a soberania do Estado
brasileiro sobrepõe a Constituição a qualquer outro diploma normativo. A
soberania dos Estados não é absoluta, sendo relativizada pelos direitos
humanos, isto porque quando um Estado opta por ingressar em um sistema
internacional de proteção dos direitos humanos, ele flexibiliza a sua
soberania, passando esta a harmonizar-se com a ordem jurídica externa. É o que
acontece com o Brasil: encontra-se vinculado ao sistema interamericano de
direitos humanos (Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Corte
Interamericana de Direitos Humanos) na qualidade de Estado-Membro da
Organização dos Estados Americanos, ao sistema global (ONU) e, não poderíamos
deixar de mencionar, ao Tribunal Penal Internacional.
A defesa do caráter absoluto da soberania impede a eficácia plena das
normas humanitaristas na ordem interna. Sob esse prisma, a ordem jurídica
interna sempre estará sobreposta ao direito internacional público e o Estado
pode recusar a validade dessas normas sob o argumento de que desnaturam o
princípio da Supremacia da
Constituição. Esta foi a interpretação formalista consolidada no
julgamento do HC 72.131 pelo STF cuja tese prevalecente, conforme visto
anteriormente, foi a da soberania estatal e, consequentemente, da supremacia constitucional. Não foi
levado em conta que os direitos fundamentais são o fim do Estado e, por esse
motivo, devem sempre ser interpretados "pro homini", portanto, acima
da legislação infraconstitucional.
Outro ponto a ser observado é quanto à vigência automática da
incorporação das normas humanitaristas desde a ratificação do tratado,
independente de edição ulterior de decreto pelo Presidente da República –
concepção monista internacionalista.(MAZZUOLI,
2004, p.375; TRINDADE, 2003, p. 412; PIOVESAN, 1997, p. 104). Já no caso de
conflito entre as normas do tratado e o direito interno, a doutrina que defende
o status constitucional dessas
normas dá prevalência àquela mais favorável à dignidade da pessoa humana
(TRINDADE, 2000, p.143; TRINDADE, 2002, p.653). É o que se depreende do
conflito entre o art. 7°, item 7 do Pacto de San José e o art. 5°, LXVII da
CF/88 – proibição de prisão do depositário infiel/ possibilidade de lei
regulamentar a prisão do depositário infiel. Não convence o argumento da Supremacia da Constituição sobre a
ordem internacional, fundada na soberania estatal, uma vez que os direitos
fundamentais, por serem a finalidade essencial do Estado, se sobrepõem ao
primado do direito interno.
3.3.O "status"
"intra-sistemático" dos tratados internacionais de direitos humanos
Em meio ao debate quanto ao status
dos tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao direito
interno, se de caráter infraconstitucional ou constitucional, restou aprovada a
Emenda Constitucional n° 45 em dezembro de 2004. Seu objetivo foi pôr um fim à
discussão, pois essas normas passariam a contar com um aspecto formal e
materialmente constitucional quando aprovadas por meio de procedimento mais
dificultoso (aprovação em dois turnos pelas Casas Legislativas do Congresso
Nacional e por três quinto dos votos de seus membros), uma vez que assumiriam
caráter de emenda constitucional.
Por um lado, conforme o entendimento de SARLET (2007, p.154), a
introdução do § 3° ao artigo 5° da Constituição assegura uma hierarquia
constitucional aos tratados que tratem de direitos humanos, pois a incorporação
como emenda constitucional impede a "supressão e esvaziamento" desses
direitos por nova reforma. De forma semelhante, REZEK (2006, p.152-153) também
considera resolvida a questão em torno da natureza desses tratados: caberá ao
Congresso identificar se eventual tratado contempla prescrições humanitaristas
para, então, aprová-lo segundo o rito das emendas constitucionais.
Por outro lado, entendemos que a posição doutrinária sobre a
materialidade desses atos internacionais já dispensa qualquer alteração formal
na Constituição. Trata-se de um problema hermenêutico resolvível pela adoção do
princípio "pro homini", pela rejeição do caráter absoluto da
soberania e na adoção da teoria monista internacionalista. Além disso, um outro
importante fator deve ser levado em conta: ainda não sabemos como o Congresso
Nacional irá aplicar o § 3° do artigo 5°. Se ele efetivamente vier a aprovar
todos os tratados de direitos humanos sob o rito das emendas constitucionais, o
problema se resolve em parte. Será uma resolução parcial porque os tratados
anteriormente incorporados continuariam com o status infraconstitucional para os adeptos da corrente formalista.
De outro lado, se, por outras razões, o Congresso não aplicar o novo rito,
então a problemática ressurge novamente. Em ambos as situações, voltaremos à
antiga discussão sobre a interpretação do § 2°.
Como se observa, o acréscimo do § 3° ao artigo 5° está longe de resolver
a discussão como pretende REZEK. Embora importantes as considerações de SARLET,
entendemos, ao contrário de sua tese, que o novo dispositivo supracitado é
inconstitucional porque dificulta a incorporação dos tratados internacionais de
direitos humanos. Assim, por piorar a aplicabilidade de normas humanitaristas,
considerando o status constitucional na conformidade do art. 5°, § 2°, a Emenda
Constitucional n° 45/2004 viola o Princípio
da Proibição do Retrocesso. Comentando o princípio, SAGÜÉS (2006, p.213)
salienta que o Princípio de Não
Regressão [10] impede que o Estado edite "normas futuras
que apaguem ou reduzam essencialmente um direito humano já reconhecido
previamente por ele". Por essa razão, a incorporação desses tratados dispensaria
uma aprovação legislativa mais rigorosa. E, sendo assim, nítida a
inconstitucionalidade material do § 3° do art. 5°.
3.4.Caráter supralegal dos tratados de
direitos humanos
Se a discussão doutrinária e jurisprudencial há muito tempo girava em
torno do caráter legal ou constitucional dos tratados de direitos humanos, a
inovação da EC 45 tenta pôr fim a essa questão. Se o Congresso Nacional vai
adotar o novo rito nos tratados vindouros, ainda não sabemos. A par dessa
divergência, surge no âmbito jurisprudencial, mais especificamente dentro do
Supremo Tribunal Federal, um novo conceito sobre a natureza jurídica das normas
humanitaristas.
Proposto pelo Ministro Gilmar Mendes nos autos do Recurso Extraordinário
n° 466.343, o caráter supralegal dos tratados de direitos humanos se referem à
situação prevista no § 2° do art. 5° da Constituição – apreciados pelo
Congresso Nacional sem o rito das emendas constitucionais. Esses tratados
"seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em
relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um
atributo de supralegalidade". Decorre dessa característica especial não a
revogação da legislação infraconstitucional conflitante com o tratado, mas a
paralisação de sua eficácia.
O caso concreto diz respeito à discussão em torno da prisão civil do
depositário infiel nos termos do DL 911/69. Segundo a nova orientação do
Supremo, a ratificação do Pacto de San José pelo Brasil em 1992 suspendeu a
eficácia do referido Decreto-lei por ser com ele conflitante, prevalecendo a
regra protetiva de direitos humanos do seu art. 7°, item 7 do Pacto. O Min.
GILMAR MENDES conclui, em seu voto, que
A prisão civil do depositário infiel não mais se compatibiliza com os
valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais
voltado para si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em
contextos internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção dos
direitos humanos.
O julgamento do mencionado Recurso Extraordinário embora se encontre
suspenso, já conta com sete votos favoráveis à tese da supralegalidade. Com
base nesse entendimento, o STF recentemente deferiu, por unanimidade, o pedido
de "habeas corpus" envolvendo o mesmo objeto (prisão civil do depositário
infiel de que trata o DL 911/69) nos autos do HC 90.172-SP (Segunda Turma:
05/06/2007, DJ de 17/08/2007).
Desta decisão conclui-se que as normas infraconstitucionais devem
guardar uma compatibilidade vertical tanto com os tratados de direitos humanos,
quanto com a Constituição. Se incompatíveis com a norma humanitarista
internacional, suspende-se sua eficácia, tendo em vista a especialidade desse
tipo de norma jurídica. Apesar de não admitir o caráter constitucional,
percebe-se o progresso ao colocar os tratados internacionais de direitos
humanos num degrau acima da legislação infraconstitucional.
3.5.Hermenêutica constitucional e tratados de
direitos humanos
O Estado contemporâneo evoluiu do Estado de Direito ao Estado
Constitucional Democrático e Humanitário. A Constituição se revela, pois, como
a Lei Fundamental de um Estado que estabelece poderes, mas que os limita,
visando ao fim maior que é a manutenção de uma sociedade justa, solidária e
digna – idéia umbilicalmente integrada ao dever de efetivação dos direitos
fundamentais. No entanto, sem um mecanismo de proteção contra os abusos, a
Constituição tende a tornar-se mero documento descritivo. Através dos
princípios da supremacia constitucional e da separação dos poderes as suas
normas podem ser garantidas e respeitadas. Toda a legislação
infraconstitucional retira da Constituição, portanto, o seu fundamento de
validade.
No pensamento positivista dogmático, vigência se confunde com validade.
Na perspectiva neoconstitucionalista, porém, nem toda norma vigente é válida.
Neste sentido FERRAJOLI (2002, p.684 e ss) observa que a vigência pressupõe
mera publicação e "vacatio" da norma: uma norma infraconstitucional
somente será válida se formal e materialmente constitucional. Não basta
obedecer ao procedimento e ao critério de competência, toda a legislação
infraconstitucional deve possuir um conteúdo adequado ao texto constitucional,
em especial aos direitos fundamentais. Também Lenio Streck (COUTINHO, 2006,
p.270) assevera que o neoconstitucionalimo põe fim à "crença na
plenipotenciariedade do âmbito da vigência da norma de uma lei (regra),
abrindo-se espaço para o âmbito que lhe é superior: o da validade, que não é
apenas formal, mas material-substancial".
Por meio dessa forma reflexiva de considerar o direito e a Constituição,
refaz-se o "’locus’ hermenêutico a partir do qual conformam-se
possibilidades de sentido de todas as normas "inferiores", não se
tendo como, pois, compreender, interpretar e aplicar o Direito independente do
padrão constitucional" (PEREIRA, 2007, p.120). Implica dizer que ela não
apenas se encontra no vértice da pirâmide normativa kelseniana: para além desta
constatação de cunho pedagógico, a Constituição se traduz como "critério
hermenêutico fundamental de todo o ordenamento jurídico" (Ramón Peralta apud PEREIRA, Op. cit.), traçando várias planos convergentes de sua
interpretação.
4.Conclusão
De tudo o que foi visto, depreende-se que o fundamento da hermenêutica
no neoconstitucionalismo é a própria Constituição, pela qual princípios e regras
ganham novos sentidos e possibilidades de aplicação. A interpretação das normas
infraconstitucionais deve ser adequada aos princípios e regras da Constituição,
instituindo um padrão multifacetado que irradia valores e sentidos a todas as
normas, que com ele devem se compatibilizar.
Quanto aos tratados internacionais de direitos humanos a que alude a
cláusula constitucional de abertura do catálogo de direitos fundamentais, há
algum tempo correntes minoritárias já os contemplavam como normas materialmente
constitucionais. Aceitando, em parte, a importância hierárquica dessas normas
internacionais, o Supremo Tribunal Federal brasileiro vem sinalizando para uma
mudança na interpretação. Preferiu utilizar o vocábulo "supralegal",
ao invés de confirmar o caráter constitucional.
A convenção internacional humanitarista, ao ser alçada à categoria de
norma supralegal, inclui assim um novo paradigma de compatibilidade vertical e
horizontal: as normas infralegais retiram seu fundamento de validade da
Constituição e dessas convenções internacionais. Os tratados de direitos
humanos – por estarem formalmente entre a Constituição e a legislação
infraconstitucional e em razão da cláusula de abertura colocá-los em pé de
igualdade com os direitos fundamentais do sistema jurídico interno – adquirem
novo "status" hermenêutico:
toda norma infraconstitucional deve agora não somente adequar-se ao texto da
Constituição (direito constitucional interno), mas também às normas derivadas
dos tratados internacionais de direitos humanos, incorporados ao ordenamento
interno.
Como conseqüência da criação da cláusula de abertura, surge, portanto, o
reconhecimento de uma fonte inovadora do sistema constitucional de direitos e
garantias fundamentais: os tratados internacionais de direitos humanos.
Combate-se assim o risco de que, no caso concreto, o operador do direito faça
uma adequação da legislação infraconstitucional tomando como parâmetro apenas
textos normativos constitucionais originários, eventualmente descurando normas
de cunho humanitarista, contempladoras de direitos fundamentais mais intensos
e/ou mais favoráveis.
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Notas
01 É a posição de
HESSE, STERN e CANOTILHO, indicada por SARLET. Cf. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007, p. 84-87.
02 DANTAS trata da
abertura da Constituição tendo como referência o conceito de "Constitución
abierta" de VERDÚ. Cf. Interpretação
constitucional no pós-positivismo: teoria e casos práticos. 2.ed. São
Paulo: Madras, 2005, p. 184.
03 O dispositivo
constitucional supracitado resultou de proposta do, à época, Consultor Jurídico
do Itamaraty Cançado Trindade.
04 O Legislativo
pode recusar o tratado e impedir a ratificação pelo Presidente da
República. Não poderá alterar o texto do tratado. As emendas que podem ser
apresentadas por cada uma das Casas do Legislativo se restringem ao projeto do
decreto legislativo, jamais ao texto dos tratados por serem
"insusceptíveis de qualquer mudança". Cf. MAZZUOLI. Op. cit., p. 315.
05 Na concepção de
TRINDADE, PIOVESAN e MAZZUOLLI, os tratados internacionais de direitos humanos
possuem validade no ordenamento jurídico interno a partir da ratificação,
prescindindo do decreto presidencial.
06 O dualismo se
desdobra em: a) dualismo radical – admite-se
a incorporação do tratado ao direito interno, desde que seja por meio de uma
lei, sem a qual o tratado não surte efeito; b) dualismo moderado – para a incorporação do tratado basta o rito
procedimental complexo (ato do Executivo – confirmação do Legislativo –
ratificação – decreto). Cf. MAZZUOLI. Op.
cit., p. 212.
07 As duas ordens,
internacional e nacional, se harmonizam porque apontam na mesma direção:
possuem o "propósito comum de proteção da pessoa humana". Cf.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado
de direito internacional dos direitos humanos. 2. ed. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. v. I, p. 506.
08 No entanto, como
se verá adiante, surge uma nova concepção liderada pelo Min. Gilmar Mendes
pondo fim à paridade dos tratados de direitos humanos com lei ordinária. Cf. RE
466.343-SP e HC 90.172-SP.
09 Pedro Dallari, ao
analisar o princípio da prevalência
dos direitos humanos e o § 2° do art. 5° da CF/88, expõe que o Brasil
tem duas preocupações na efetivação desses direitos: uma no âmbito da
comunidade internacional, outra no âmbito interno. Propõe, então, uma
"plena integração das regras de tais sistemas à ordem jurídica de cada
Estado". Cf. Constituição e
relações exteriores. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 162.
10 Cabe esclarecer
que, embora se refira apenas aos direitos sociais, a proibição do retrocesso
tratada por CANOTILHO se amolda perfeitamente à matéria aqui estudada, como um
reforço ao princípio "pro homini". Nas palavras do doutrinador
português, "o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado
através de medidas legislativas [...] deve considerar-se constitucionalmente
garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que [...] se
traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e
simples desse núcleo essencial". Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da
constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 336-337.
* Magister Legum e Doutor em Direito pela Westfälische
Wilhelms-Universität Münster (Alemanha). Professor Titular do Curso de Mestrado
em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professor da
Universidade Federal do Ceará (UFC). Procurador Federal.
** Mestrando em Direito Constitucional pela
Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Bolsista CAPES/PROSUP. Advogado.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11401
Acesso em: 23 jun.
2008.