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A união homoafetiva no direito comparado

 

 

Fábio de Oliveira Vargas*

 

 

A discussão acerca da legalização da união homossexual é tema de calorosos debates em vários países. E, em todos eles, os defensores da causa apontam para o fato de que a união entre pessoas do mesmo sexo merece tal proteção por apresentar idêntico rol de características que marcam as uniões heterossexuais: convivência duradoura, compromisso emocional e financeiro mútuo e objetivo de constituir família.

 

Obviamente a questão se encontra em diferentes estágios ao redor do globo. A questão homossexual conhece desde a criminalização à quase completa tutela de seus interesses pelos vários ordenamentos jurídicos mundo afora. No Afeganistão, existem leis penais contra a sodomia (1): o infrator será punido com pena de morte, lançado de um penhasco ou enterrado vivos sob uma parede de concreto. Na Bélgica, por outro lado, os homossexuais desfrutam praticamente de todos os direitos conferidos aos cônjuges de um casamento tradicional: podem casar-se, receber benefícios previdenciários e tributários, podem somar rendas para financiamentos e possuem direitos sucessórios bem definidos.

 

A desembargadora Maria Berenice Dias (2) propõe inclusive uma classificação didática dos países quanto ao grau de liberdade e acolhida jurídica que conferem aos homossexuais.

 

No primeiro grupo, figuram os países de extrema repressão, como ocorre nos países islâmicos e muçulmanos. Neste grupo, como se noticiou, a homossexualidade é criminalizada e sofre duríssimas repressões tais como multa, prisão, banimento e, até mesmo, a pena capital. Sociologicamente, podemos nos socorrer de Durkheim (3), dentre outros, para nos explicar tamanho atraso em comparação com o Ocidente. Nestes países, a influência da religião e de seus líderes fortalece a consciência coletiva, muito apegada aos usos e costumes aos quais está há milênios habituada. Transgressões aos "mores" (4) destas comunidades serão duramente punidas, a fim de que se mantenha a coesão e a identidade do grupo.

 

No segundo grupo, onde se situa o Brasil, a homossexualidade é tratada com indiferença pelo Direito positivado: não se reprime tampouco se protege. Nesse grupo, já ocorre uma tendência jurisprudencial no sentido do reconhecimento e da proteção dos efeitos jurídicos da união homoafetiva, mas não há ainda leis que efetivamente protejam os direitos normalmente garantidos aos indivíduos pelos textos constitucionais destes países.

 

No terceiro e último grupo, figuram países mais liberais, como os do norte Europeu, onde, além de haver políticas contra a discriminação, já se vêem ações afirmativas, contando a união homoafetiva com grande proteção jurídica, fato que se intensificou sensivelmente a partir da década de 80.

 

A Dinamarca foi o primeiro país a reconhecer efeitos jurídicos à parceria registrada entre homossexuais, um contrato registrado em cartório que, disciplinando a vida em comum do casal, gozava de praticamente de todos os direitos deferidos ao casamento.

 

Em alguns países dos dois últimos blocos, o Poder Público preocupa-se até mesmo com a oficialização de políticas afirmativas que, inspiradas no princípio da igualdade, adotam estratégias políticas contra as práticas discriminantes sofridas por determinados segmentos sociais. Trata-se da affirmative action (5) , que, surgida na década de 60, sob o governo Kennedy, foi acolhida pelos países membros da União Européia. Através da Resolução de 01.10.1981, o Conselho da Europa conclamou seus membros a empreenderem campanhas a favor da igualdade de direitos entre as uniões de afeto, independentemente do sexo de seus pares.

 

Nos Estados Unidos, o terreno para a frutificação de uniões homossexuais é bastante fértil. Embora alguns estados vedem expressamente qualquer tipo de oficialização, o que fazem com o apoio conservador do presidente Bush, vários outros estados norte-americanos, por meio de suas Supremas Cortes, têm viabilizado o casamento homossexual, como vem ocorrendo em Massachusetts, no Havaí, no Alaska e em Vermont, o primeiro a regular por lei a união homoafetiva.

 

Interessante julgado de um Tribunal da Pensilvânia conferiu o direito a alimentos a uma lésbica que, tendo feito inseminação artificial e dado à luz a pentagêmeos, foi posteriormente abandonada por sua companheira. Mesmo não tendo adotado as cinco crianças, nem sendo delas mãe biológica, essa companheira foi obrigada a pensioná-las, numa clara valorização da moderna noção de paternidade sócio-afetiva.

 

Alguns países surpreendem positivamente. A África do Sul do tão execrado apartheid (6) foi o primeiro país no mundo a elevar em nível de garantia constitucional fundamental o direito à orientação sexual, proibindo-se todo tipo de discriminação, além de se conferirem uma série de outros direitos. Em Israel, desde 1992 vigora a Lei de Igual Oportunidade de Emprego, vedando a discriminação do empregado homossexual no mercado de trabalho.

 

Na França, em 1999, uma lei (7) alterou o Código Civil e regulou o Pacto Civil de Solidariedade — o PACS. Mais um instrumento contratual a ser registrado em cartório, o PACS na verdade é uma alternativa ao casamento oficial. E pode ser utilizado tanto por homossexuais quanto por heterossexuais. No caso daqueles, o PACS é o instrumento apto para a delimitação dos direitos e deveres a serem observados na vida comum do casal homossexual, tanto em relação um ao outro, quanto em relação a terceiros.

 

Entre os países nórdicos, Holanda (2001) e Bélgica (2002) já admitem o casamento de pessoas de mesmo sexo. Na Holanda existe, inclusive, permissivo legal para a adoção conjunta, desde que se trate de crianças holandesas. Na América Latina, entretanto, apenas a Argentina ousou dar um primeiro passo, inovando seu Direito de Família. Uma lei de Buenos Aires regula a união civil entre casais homo ou heterossexuais, mas não vai tão longe quanto poderia: não prevê direitos sucessórios, nem previdenciários, além de silenciar quanto à possibilidade de adoção.

 

Na Espanha, entretanto, um Estado “sui generis” em termos de Direito Público, abalado pelo movimento separatista basco e catalão, foram dados os primeiros passos em direção do pleno reconhecimento de direitos à união homoafetiva.

 

Várias de suas comunidades autônomas, como a Catalunha (1998), Aragão (1999), Navarra (2000), Valencia (2001) já legislaram a respeito das uniões de fato, estendendo proteção jurídica também às parcerias afetivas entre pessoas de mesmo sexo. Merece transcrição a dicção do art. 1º da lei 04/2002 do Principado das Astúrias, trazido à colação por Taísa Ribeiro Fernandes (2004. p. 122):

 

“A presente lei tem por objeto estabelecer um conjunto de medidas que contribuam para garantir o princípio da não-discriminação na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico do Principado das Astúrias, de maneira que ninguém seja discriminado em razão do grupo familiar de que faça parte, tenha este sua origem na filiação, no matrimônio ou na união estável de duas pessoas que convivam em relação de afetividade análoga à conjugal, independentemente do seu sexo.” (8)

 

Agora, a Espanha avança no sentido de uma proteção mais geral da união homossexual. Em 21 de janeiro de 2005, foi aprovado pelo gabinete do primeiro-ministro José Luíz Rodríguez Zapatero o projeto de lei 121/00018, pelo qual se busca modificar o Código Civil espanhol com vistas a permitir aos casais homossexuais o direito ao casamento e à adoção conjunta.

 

O projeto, que ainda depende da aprovação do Senado, e outra vez pelo referido gabinete, pode sofrer modificações, mas tem gerado uma enorme comoção no solo espanhol, dividindo opiniões e incitando os ânimos da Igreja Católica.

 

A interferência dos fatos sociais sobre o Direito, como bem já advertira Recaséns Siches , parece ser bem mais intensa e constante do que o oposto: a interferência do Direito na sociedade. No Brasil, por exemplo, leis que contrariam certos movimentos sociais, às vezes, "não pegam".

 

O Direito, produzido por um Estado laico, não deve nem pode render-se às pressões parciais de grupos conservadores de qualquer natureza que, não tendo nenhum interesse legítimo no assunto "união homoafetiva", atrevem-se a levantar bandeiras contra os avanços da sociedade democrática do novo milênio.

 

...

Notas


(1) Nome oriundo da cidade bíblica de Sodoma, refere-se à prática sexual envolvendo intercurso anal. voltar

 

(2) DIAS apud FERNANDES, op. cit., p. 116. voltar

 

(3) DURKHEIM apud CASTRO, Celso Antônio Pinheiro de. Sociologia do Direito. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2003. voltar

 

(4) Usos e costumes de uma determinada sociedade. voltar

 

(5) MENEZES apud FERNANDES, op. cit., p. 116. voltar

 

(6) Regime político de segregação racial não mais em vigor naquele país. voltar

 

(7) Lei 99-944, de 15 de nov. de 1999. voltar

 

 

*Fábio de Oliveira Vargas é graduado em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), advogado especialista em direito empresarial pela Universidade Estácio de Sá e mestrando em direito e globalização pela Universidade Vale do Rio Verde. Atualmente, é professor de direito civil na UFJF e na Universidade Salgado de Oliveira e coordenador do projeto MGM Justiça. As opiniões contidas neste artigo não refletem, necessariamente, o pensamento da diretoria do MGM.


 

Disponível em: http://www.mgm.org.br/portal/modules.php?name=News&file=article&sid=153

Acesso: 08 de junho de 2007