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A estrutura legal do Sistema Único de Saúde:

breve escorço sobre o Direito Constitucional Sanitário

   

 

 

Sandro Alex de Souza Simões*

 

 

RESUMO

            O artigo procura traçar um panorama sobre a dimensão do Direito Sanitário brasileiro a partir de um relato de sua evolução legislativa infraconstitucional até o tratamento dado pela atual Constituição, sobremaneira no âmbito federativo.


ABSTRACT

            The article makes an approuch on Brazil’s health Law since an historical point of view over this specific legislation until the present Constitution which gives a federalist treatment in this subject.


Conceito e evolução do sistema através das Normas Operacionais Básicas

            O Sistema Único de Saúde – SUS é um modelo de ação social integrada e descentralizada de matiz constitucional como visto anteriormente. O seu perfil, como sejam os seus princípios e seus objetivos, é traçado pela Lei Fundamental no art. 194 na ampla compreensão que dá ao direito de seguridade social no título da Ordem Social. Seu conceito é obtido na legislação ordinária como sendo "o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público" (Lei 8.080/90, art. 4o ).

            No plano infraconstitucional o legislador não se esquivou da tradição de compor a normatização do SUS através de uma lei orgânica que, como tal, pretende sistematizar de maneira lógica e funcional os desideratos do direito à saúde enquanto política pública em uma ordem institucional complexa, tal como o federalismo brasileiro.

            É precisamente esse, a partir de uma perspectiva político-constitucional, o mais delicado desafio da legislação básica de direito sanitário no país: organizar e equilibrar coerentemente a exigência da realização do mandamento constitucional da saúde enquanto direito fundamental, e assim sendo amplo e indefectível, com o modelo tripartite de federalismo acolhido pela Constituição de 1988 em um ambiente claramente assimétrico, assinalado por desigualdades inter e intra-estaduais.

            A Lei 8.080, de 19.09.1990 irá constituir a chamada Lei Orgânica da Saúde e buscará atacar o problema do equilíbrio federativo nos pontos mais estrangulados pela anterior prática de excessivo centralismo, cujo modelo paroxístico foi o INAMPS, em dois pontos: o financiamento e a gestão, de que trataremos melhor mais adiante.

            A Lei 8.080/90 foi alvo de uma série de vetos que provocaram a necessidade de formulação de um novo diploma para a regulação do controle do sistema por parte da sociedade civil, como previa a Constituição de 1988 (art.194, parágrafo único, VII), com o que surge a Lei 8.142, de 28.12.1990.

            A atividade normativa mais intensa, entretanto, revela uma característica idiossincrática do direito sanitário, que é o ser de natureza eminentemente regulatória, exercendo seu alcance por meio de uma significativa atividade legiferante do Executivo, destacadamente as portarias chamadas de Normas Operacionais Básicas (NOB) e, atualmente, Normas Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS).

            Esse aspecto próprio do direito sanitário é apontado pelo Professor BARROS TOJAL (1994:22) que afirma com acerto:

            "A partir do momento em que se consolida o modelo do Estado Social, e a sua evidência resta absolutamente clara entre nós, especialmente à luz das considerações a propósito da ordem econômica da Constituição de 1988, o direito assume o papel de fator implementador das transformações sociais, veiculando inclusive prestações públicas. Por conseqüência, opera-se uma rematerialização da racionalidade legal".

            Esse aspecto é bastante sensível no direito sanitário em função da dinâmica do seu objeto, bem como de seus particularismos, o que o torna especialmente avesso aos moldes de normatização estatutária do direito clássico, aos princípios de segurança jurídica e separação de poderes analisados sob uma ótica estreita, ponto de vista, ademais, em geral inconveniente para o cientista social.

            No direito sanitário a tendência comumente apontada pelos publicistas desde LOEWENSTEIN, consoante noticia Clèmerson Clève (1993:49) quanto ao robustecimento do Poder Executivo em face da nova e volátil dinâmica da sociedade pós-moderna e pós-industrial, é destacada. O Estado passa a assumir a função de suprir demandas que antes eram resolvidas no espaço individual ou familiar. A saúde é um exemplo mais do que claro do argumento, pois se doenças menos ofensivas ainda se prestam aos preparos medicamentosos caseiros, as epidemias e a saúde preventiva apresentam espectro meta-individual e meta-familiar.

            Dessa maneira é que em 08.01.1991 a Secretaria Nacional de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde reúne as Portarias de 15 a 20 na forma da NOB 01/91 e a Resolução 258, do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social - INAMPS, norma administrativa editada com vistas a regulamentar e dar cumprimento à disciplina constitucional e legal sobre a ação sanitária do Estado na forma do Sistema Único de Saúde.

            Essa importante norma administrativa será a primeira de uma série de NOBs que traçarão o desenvolvimento e a implementação do ideal de proteção integrada à saúde no Brasil. A NOB 01/91 destaca-se pela criação do SISTEMA DE INFORMAÇÃO HOSPITALAR (SIH/SUS) e do SISTEMA DE INFORMAÇÃO AMBULATORIAL (SAI/SUS) que serão os mecanismos, doravante, de organização e operacionalização dos pagamentos dos serviços hospitalares e ambulatoriais.

            A NOB 01/91 irá adotar alterar o critério para distribuição das AIH (autorizações de internamento hospitalar) e UCA (Unidade de Cobertura Ambulatorial), que antes era baseado na relação direta entre os serviços prestados pelos Estados e Municípios. O critério da produtividade, por assim dizer, é comutado pelo parâmetro de atendimento de 10% da população-ano. Dessa forma, a Portaria 19, de 08.01.91, que integra a NOB 01/91 definiu para o Estado do Pará, ilustrativamente, 35.945 AIH-ano por um critério populacional e não mais de volume de internações feitas anteriormente.

            É de se observar que com a NOB 01/91 é clara a intenção de estruturar o serviço de saúde pública em outras bases e voltados a outros objetivos, desta vez profundamente influenciados pela política sanitária sugerida pela Constituição Federal, qual seja a da gestão descentralizada da saúde. Em insistindo na continuidade do critério produção-pagamento a relação entre a União e Estados e Municípios seria sempre a de prestadores de serviço de saúde, o que nitidamente é a intenção da Constituição de 1988, nem a da Lei 8.080/90, a qual se preocupa expressamente ao estabelecer as diretrizes do SUS em acentuar a capacidade de gestão* em cada esfera federativa, senão vejamos:

            "Art. 7º. As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

            ...

            IX - descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:

            a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;

            b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;

            X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico;

            XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população;

            XII - capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e

            XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos" (Grifos nossos).

            A evolução do aparato regulatório do SUS vai apresentar uma linha extremamente coerente no sentido de realizar o preceito da gestão descentralizada. A Resolução 258, de 07.01.91 que irá compor o texto da NOB 01/91, entretanto, não escapou às críticas pela marca centralista que ainda sugeria ao colocar o INAMPS como controlador do SUS. De fato, a posição do INAMPS no processo é ambígua porque por um lado representa uma estrutura centralizada, nacional, diretamente ligada ao Governo Federal e que nas reformulações pelas quais passa a Seguridade Social na década de 1990 perde completamente o significado, mais precisamente após a extinção do SINPAS e a criação do INSS. Com a Lei 8.080/90, art. 39, §5º todo patrimônio imobiliário do INAMPS passa a ser transferido para os órgãos que integram o SUS. Ademais a Constituição Federal atribui a competência para ação sanitária (art.198) ao SUS, perdendo o sentido a presença extemporânea do INAMPS na dita Resolução. Nesse diploma administrativo é reconhecida a necessidade da descentralização pelo que cabe ao INAMPS, quanto à supervisão das atividades de saúde "conceder um crédito de confiança aos Estados e Municípios, sem prejuízo do acompanhamento a ser exercido pelos mecanismos de controle e avaliação que estavam sendo desenvolvidos". Além do que a transferência dos recursos do INAMPS para as unidades federativas dar-se-ia mediante celebração de convênios. Sobre isso observa com acidez SANTOS citado por MONTEIRO DE ANDRADE (2001:37):

            "O Sistema Único de Saúde de repente passou a ser controlado pelo INAMPS, que num ‘crédito de confiança’, resolveu delegar competências ‘suas’(?) aos Estados e Municípios, o que é um absurdo jurídico!...Não podemos esquecer que o INAMPS não pode mais ser tido como o organismo nacional de assistência médica. Deve ser definido (pois ele não foi extinto)...É de se mencionar, também, que não há mais como alocar recursos para serviços de assistência à saúde no orçamento do INAMPS, uma vez que não lhe cabe mais prestar serviços (...)A União, os Estados, O Distrito Federal e os Municípios têm a sua competência determinada pela Constituição da República. Portanto, estão em pé de igualdade entre si, porque nenhuma destas esferas recebe sua competência da outra, mas da Constituição. Conseqüência disso: a) a descentralização estabelecida pela Constituição da República é essencialmente política, ou político-administrativa; b) sendo política, deve-se concretizar sem nenhum entrave, requisito ou pressuposto administrativo; c) o convênio é instrumento de descentralização administrativa; d) logo, a efetivação da descentralização política não pode depender de convênio, que é instrumento administrativo de atuação; e) não se opera a descentralização por convênio, uma vez que a descentralização é política nascida da Constituição da República; f) a Lei Orgânica da Saúde é o instrumento nacional garantidor da unicidade conceitual e operativa do sistema".

            Dessa maneira cabe relativizar a presença dos Convênios como instrumentos componentes da estrutura legal do SUS durante a vigência da NOB 01/91. Hodiernamente, como veremos adiante os convênios são formulados para o financiamento de projetos e programas específicos na área de saúde.como os de qualidade do sangue, para garantia de qualidade e auto-suficiência de sangue, componentes e derivados sanguíneos com a implantação de unidades de hematologia e hemoterapia, o programa de saúde mental para atenção extra-hospitalar ao portador de transtorno mental, programa de valorização do idoso, mantidos pelo Ministério da Saúde e outros às expensas da Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, como os sistemas de abastecimento de água, serviços de drenagem para o controle da malária, unidades de zoonoses e fatores biológicos de risco etc.

            Sucedeu a NOB 01/91 a NOB 01/92 e NOB 01/93. Quanto à primeira cabe destacar que ela avançou na seara do financiamento ao alocar os recursos do INAMPS para o Fundo Nacional de Saúde, superando assim a crítica de centralismo e a aura de inconstitucionalidade do controle estabelecido pela Norma Operacional anterior, tal como exposto acima. A NOB 01/92 acena com um mecanismo bastante peculiar de incentivo e estímulo à descentralização que são os FEM e FEGE (Fator de Estímulo à Municipalização e fator de Estímulo à Gestão Estadual, respectivamente), bem como o Pró-Saúde o qual buscava a realização da gestão de referência regionalizada referida na LOS, art. 7o, IX, "b". Tal Norma, contudo, não conseguiu tornar efetivas tais previsões, mas ampliou o número de municípios credenciados para gestão municipalizada da saúde para 1.074, mais que o triplo do obtido em 1991 (321).

            A NOB 01/93, criada pela Portaria 545, de 20 de maio de 1993, é sob muitos aspectos divisora de águas no plano do desenvolvimento da política sanitária brasileira desde a CF/88. Primordialmente por ter sido concebida em um amplo debate nascido na IX Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, de 9 a 14 de agosto de 1992. Nesse momento, as avaliações dos gestores e secretários de saúde, assim como técnicos dos Estados e Municípios já permitia antever, diante da mudança de administração no Ministério da Saúde, a verticalização do processo de municipalização. Em 24 de maio de 1993 é publicado o documento A ousadia de cumprir e fazer cumprir a Lei, uma exposição de motivos que compõe a NOB 01/93, a qual nos referiremos com mais acuro adiante. Importa notar agora que a NOB 01/93 perfilou situações transacionais para o processo de municipalização plena da gestão, estabelecendo três situações distintas: a transacional incipiente, parcial e semiplena. A NOB 01/93 também acentuou a importância da implantação de uma política de formação de recursos humanos na área de saúde, o efetivo funcionamento dos Conselhos de Saúde e Conferência de Saúde criados pela Lei 8.142/90, e a implantação das Comissões Intergestores tripartite (federal) e bipartite (estadual) e, last but not least, o aporte de recursos para o Fundo Nacional de Saúde pelas três esferas de governo. Cabe observar que a NOB 01/93 resulta de um processo de convicção de que os objetivos já desenhados pelos Constituição, Lei 8.080/90 e 8.142/90 estavam corretos e provocariam as mudanças desejadas para uma situação ideal de "política sanitária cidadã" para o Brasil. Mister recordar, contudo, que apenas em novembro de 1994 com o decreto 1.232, de 30 de agosto daquele ano foi regulamentada e viabilizada operacionalmente a transferência automática e direta de recursos para os municípios em gestão semiplena.

            Por maior que tenha sido o avanço técnico proposto pela NOB 01/93, noticia MONTEIRO DE ANDRADE (2001:58):

            "Pode-se constatar que, dos 4.976 municípios brasileiros, apenas 3.127 (62.84%) estavam enquadrados em algum tipo de gestão. Ressalte-se que, destes, 2.367 (47,56%) achavam-se em gestão incipiente, 616 (12,38%) na parcial e somente 144 (2,89%) em gestão semiplena. Isto demonstra que, mesmo com a NOB 01/93, a grande maioria dos municípios brasileiros, 97,7%, encontravam-se na condição de prestadores de serviço de saúde.

            "Outras limitações que podem ser percebidas na NOB 01/93 seriam a ausência de definições acerca da vigilância sanitária, epidemiológica e de endemias como também quanto ao estímulo para inversão do modelo de atenção".

            A NOB 01/96 editada pela Portaria MS 2.203, publicada no DOU a 6 de novembro de 1996 por sua vez amplia em consonância com a LOS a atuação da política de saúde em três áreas, quais sejam a assistência, as intervenções ambientais e as políticas externas ao setor saúde, in verbis:

            "A atenção à saúde, que encerra todo o conjunto de ações levadas a efeito pelo SUS, em todos os níveis de governo, para o atendimento das demandas pessoais e das exigências ambientais, compreende três grandes campos, a saber:

            a)o da assistência, em que as atividades são dirigidas às pessoas, individual ou coletivamente, e que é prestada no âmbito ambulatorial e hospitalar, bem como em outros espaços, especialmente no domiciliar;

            b)o das intervenções ambientais, no seu sentido mais amplo, incluindo as relações e as condições sanitárias nos ambientes de vida e de trabalho, o controle de vetores e hospedeiros e a operação de sistemas de saneamento ambiental (mediante o pacto de interesses, as normalizações, as fiscalizações e outros); e

            c)o das políticas externas ao setor saúde, que interferem nos determinantes sociais do processo saúde-doença das coletividades, de que são partes importantes questões relativas às políticas macroeconômicas, ao emprego, à habitação, à educação, ao lazer e à disponibilidade e qualidade dos alimentos."

            Lembra o já aludido MONTEIRO DE ANDRADE (2001:61) que essa norma irá fazer expressamente a diferença entre a gerência e a gestão do sistema de saúde. É a própria NOB que com perspicácia pontifica:

            "Assim, nesta NOB gerência é conceituada como sendo a administração de uma unidade ou órgão de saúde (ambulatório, hospital, instituto, fundação etc.), que se caracteriza como prestador de serviços ao Sistema. Por sua vez, gestão é a atividade e a responsabilidade de dirigir um sistema de saúde (municipal, estadual ou nacional), mediante o exercício de funções de coordenação, articulação, negociação, planejamento, acompanhamento, controle, avaliação e auditoria. São, portanto, gestores do SUS os Secretários Municipais e Estaduais de Saúde e o Ministro da Saúde, que representam, respectivamente, os governos municipais, estaduais e federal.

            A criação e o funcionamento desse sistema municipal possibilitam uma grande responsabilização dos municípios, no que se refere à saúde de todos os residentes em seu território. No entanto, possibilitam, também, um elevado risco de atomização desordenada dessas partes do SUS, permitindo que um sistema municipal se desenvolva em detrimento de outro, ameaçando, até mesmo, a unicidade do SUS. Há que se integrar, harmonizar e modernizar, com eqüidade, os sistemas municipais."

            A NOB 01/96 vai definir com maior clareza o papel dos gestores nas três esferas de governo, pela primeira vez quanto à União, ademais. Demonstra, como visto acima, uma preocupação legítima com a necessidade de integrar as ações de maneira a evitar o enfraquecimento global do SUS na assimetria dos municípios brasileiros, com a manutenção do papel das Comissões bipartite e tripartite e os Conselhos de Saúde como órgãos de programação e pactuação entre os gestores.

            Deve-se assinalar a criação da proposta do cartão sus municipal que permitiria a identificação simultânea do cidadão com seu sistema municipal de saúde e o sistema nacional e o incentivo ao modelo de agentes comunitários de saúde no combate aos riscos epidemiológicos. A NOB 01/96 vai instituir o Piso Assistencial Básico – PAB que garantirá o repasse automático para ações básicas em saúde.

            Serão definidos pela NOB 01/96 os denominados tetos financeiros, quais sejam o teto financeiro global (TFG), o teto financeiro da assistência (TFA), o teto financeiro global do Estado (TFGE), o teto financeiro de vigilância sanitária (TFVS), o teto financeiro de epidemiologia e controle de doenças (TFECD), o teto financeiro global do município (TFGM), o teto financeiro da assistência ao município (TFAM) e o teto financeiro de assistência ao Estado (TFAE), o que permitiu maior transparência e controle gerencial das transferências e repasses automáticos.

            Para os municípios que adotem os programas de saúde da família e agentes comunitários ficaram garantidos acréscimos percentuais ao montante do PAB, o que revela a clara intenção do Ministério da Saúde em minimizar os obstáculos ao estabelecimento do paradigma ético-participativo na gestão sanitária em substituição ao modelo assistencial-curativo.

            A NOB 01/96 propôs dois modelos de gestão aos quais habilitaram-se 99% dos municípios brasileiros conforme notícia do Ministério da Saúde. São eles a Gestão Plena da Atenção Básica e a Gestão Plena do Sistema Municipal. Sendo norma atualmente em vigor permito-me transcrever sua disciplina para cada modelo quanto às responsabilidades e prerrogativas em que importa cada qual, e os critérios para habilitação:

            A Gestão Plena da Atenção Básica:

            "Responsabilidades

            a)Elaboração de programação municipal dos serviços básicos, inclusive domiciliares e comunitários, e da proposta de referência ambulatorial especializada e hospitalar para seus munícipes, com incorporação negociada à programação estadual.

            b)Gerência de unidades ambulatoriais próprias.

            c)Gerência de unidades ambulatoriais do estado ou da União, salvo se a CIB ou a CIT definir outra divisão de responsabilidades.

            d)Reorganização das unidades sob gestão pública (estatais, conveniadas e contratadas), introduzindo a prática do cadastramento nacional dos usuários do SUS, com vistas à vinculação de clientela e à sistematização da oferta dos serviços.

            e)Prestação dos serviços relacionados aos procedimentos cobertos pelo PAB e acompanhamento, no caso de referência interna ou externa ao município, dos demais serviços prestados aos seus munícipes, conforme a PPI, mediado pela relação gestor-gestor com a SES e as demais SMS.

            f)Contratação, controle, auditoria e pagamento aos prestadores dos serviços contidos no PAB.

            g)Operação do SIA/SUS quanto a serviços cobertos pelo PAB, conforme normas do MS, e alimentação, junto à SES, dos bancos de dados de interesse nacional.

            h)Autorização, desde que não haja definição em contrário da CIB, das internações hospitalares e dos procedimentos ambulatoriais especializados, realizados no município, que continuam sendo pagos por produção de serviços.

            i)Manutenção do cadastro atualizado das unidades assistenciais sob sua gestão, segundo normas do MS.

            j)Avaliação permanente do impacto das ações do Sistema sobre as condições de saúde dos seus munícipes e sobre o seu meio ambiente.

            k)Execução das ações básicas de vigilância sanitária, incluídas no PBVS.

            l)Execução das ações básicas de epidemiologia, de controle de doenças e de ocorrências mórbidas, decorrentes de causas externas, como acidentes, violências e outras, incluídas no TFECD.

            m) Elaboração do relatório anual de gestão e aprovação pelo CMS.

            Requisitos

            a)Comprovar o funcionamento do CMS.

            b)Comprovar a operação do Fundo Municipal de Saúde.

            c)Apresentar o Plano Municipal de Saúde e comprometer-se a participar da elaboração e da implementação da PPI do estado, bem assim da alocação de recursos expressa na programação.

            d)Comprovar capacidade técnica e administrativa e condições materiais para o exercício de suas responsabilidades e prerrogativas quanto à contratação, ao pagamento, ao controle e à auditoria dos serviços sob sua gestão.

            e)Comprovar a dotação orçamentária do ano e o dispêndio realizado no ano anterior, correspondente à contrapartida de recursos financeiros próprios do Tesouro Municipal, de acordo com a legislação em vigor.

            f)Formalizar junto ao gestor estadual, com vistas à CIB, após aprovação pelo CMS, o pleito de habilitação, atestando o cumprimento dos requisitos relativos à condição de gestão pleiteada.

            g)Dispor de médico formalmente designado como responsável pela autorização prévia, controle e auditoria dos procedimentos e serviços realizados.

            h)Comprovar a capacidade para o desenvolvimento de ações de vigilância sanitária.

            I)Comprovar a capacidade para o desenvolvimento de ações de vigilância epidemiológica.

            j)Comprovar a disponibilidade de estrutura de recursos humanos para supervisão e auditoria da rede de unidades, dos profissionais e dos serviços realizados.

            Prerrogativas

            a)Transferência, regular e automática, dos recursos correspondentes ao Piso da Atenção Básica (PAB).

            b)Transferência, regular e automática, dos recursos correspondentes ao Piso Básico de Vigilância Sanitária (PBVS).

            c)Transferência, regular e automática, dos recursos correspondentes às ações de epidemiologia e de controle de doenças.

            d)Subordinação, à gestão municipal, de todas as unidades básicas de saúde, estatais ou privadas (lucrativas e filantrópicas), estabelecidas no território municipal."

             Gestão Plena Do Sistema Municipal :

            "Responsabilidades

            a)Elaboração de toda a programação municipal, contendo, inclusive, a referência ambulatorial especializada e hospitalar, com incorporação negociada à programação estadual.

            b)Gerência de unidades próprias, ambulatoriais e hospitalares, inclusive as de referência.

            c)Gerência de unidades ambulatoriais e hospitalares do estado e da União, salvo se a CIB ou a CIT definir outra divisão de responsabilidades.

            d)Reorganização das unidades sob gestão pública (estatais, conveniadas e contratadas), introduzindo a prática do cadastramento nacional dos usuários do SUS, com vistas à vinculação da clientela e sistematização da oferta dos serviços.

            e)Garantia da prestação de serviços em seu território, inclusive os serviços de referência aos não-residentes, no caso de referência interna ou externa ao município, dos demais serviços prestados aos seus munícipes, conforme a PPI, mediado pela relação gestor-gestor com a SES e as demais SMS.

            f)Normalização e operação de centrais de controle de procedimentos ambulatoriais e hospitalares relativos à assistência aos seus munícipes e à referência intermunicipal.

            g)Contratação, controle, auditoria e pagamento aos prestadores de serviços ambulatoriais e hospitalares, cobertos pelo TFGM.

            h)Administração da oferta de procedimentos ambulatoriais de alto custo e procedimentos hospitalares de alta complexidade conforme a PPI e segundo normas federais e estaduais.

            i)Operação do SIH e do SIA/SUS, conforme normas do MS, e alimentação, junto às SES, dos bancos de dados de interesse nacional.

            j)Manutenção do cadastro atualizado de unidades assistenciais sob sua gestão, segundo normas do MS.

            k)Avaliação permanente do impacto das ações do Sistema sobre as condições de saúde dos seus munícipes e sobre o meio ambiente.

            l)Execução das ações básicas, de média e alta complexidade em vigilância sanitária, bem como, opcionalmente, as ações do PDAVS.

            m)Execução de ações de epidemiologia, de controle de doenças e de ocorrências mórbidas, decorrentes de causas externas, como acidentes, violências e outras incluídas no TFECD.

             Requisitos

            a)Comprovar o funcionamento do CMS.

            b)Comprovar a operação do Fundo Municipal de Saúde.

            c)Participar da elaboração e da implementação da PPI do estado, bem assim da alocação de recursos expressa na programação.

            e)Comprovar capacidade técnica e administrativa e condições materiais para o exercício de suas responsabilidades e prerrogativas quanto à contratação, ao pagamento, ao controle e à auditoria dos serviços sob sua gestão, bem como avaliar o impacto das ações do Sistema sobre a saúde dos seus munícipes.

            e)Comprovar a dotação orçamentária do ano e o dispêndio no ano anterior correspondente à contrapartida de recursos financeiros próprios do Tesouro Municipal, de acordo com a legislação em vigor.

            f)Formalizar, junto ao gestor estadual com vistas à CIB, após aprovação pelo CMS, o pleito de habilitação, atestando o cumprimento dos requisitos específicos relativos à condição de gestão pleiteada.

            g)Dispor de médico formalmente designado pelo gestor como responsável pela autorização prévia, controle e auditoria dos procedimentos e serviços realizados.

            h)Apresentar o Plano Municipal de Saúde, aprovado pelo CMS, que deve conter as metas estabelecidas, a integração e articulação do município na rede estadual e respectivas responsabilidades na programação integrada do estado, incluindo detalhamento da programação de ações e serviços que compõem o sistema municipal, bem como os indicadores mediante dos quais será efetuado o acompanhamento.

            i)Comprovar o funcionamento de serviço estruturado de vigilância sanitária e capacidade para o desenvolvimento de ações de vigilância sanitária.

            j)Comprovar a estruturação de serviços e atividades de vigilância epidemiológica e de controle de zoonoses.

            k)Apresentar o Relatório de Gestão do ano anterior à solicitação do pleito, devidamente aprovado pelo CMS.

            l)Assegurar a oferta, em seu território, de todo o elenco de procedimentos cobertos pelo PAB e, adicionalmente, de serviços de apoio diagnóstico em patologia clínica e radiologia básicas.

            m)Comprovar a estruturação do componente municipal do Sistema Nacional de Auditoria (SNA).

            n)Comprovar a disponibilidade de estrutura de recursos humanos para supervisão e auditoria da rede de unidades, dos profissionais e dos serviços realizados.

            Prerrogativas

            a)Transferência, regular e automática, dos recursos referentes ao Teto Financeiro da Assistência (TFA).

            b)Normalização complementar relativa ao pagamento de prestadores de serviços assistenciais em seu território, inclusive quanto a alteração de valores de procedimentos, tendo a tabela nacional como referência mínima, desde que aprovada pelo CMS e pela CIB.

            c)Transferência regular e automática fundo a fundo dos recursos correspondentes ao Piso Básico de Vigilância Sanitária (PBVS).

            d)Remuneração por serviços de vigilância sanitária de média e alta complexidade e, remuneração pela execução do Programa Desconcentrado de Ações de Vigilância Sanitária (PDAVS), quando assumido pelo município.

            e)Subordinação, à gestão municipal, do conjunto de todas as unidades ambulatoriais especializadas e hospitalares, estatais ou privadas (lucrativas e filantrópicas), estabelecidas no território municipal.

            f)Transferência de recursos referentes às ações de epidemiologia e controle de doenças, conforme definição da CIT.

            Para a regulamentação da NOB 01/96 o Ministério da Saúde editou a Instrução Normativa nº 01/98 de 02 de janeiro de 1998 que regulamenta os conteúdos, instrumentos e fluxos do processo de habilitação de Municípios, de Estados e do Distrito Federal às novas condições de gestão criadas pela Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde - NOB SUS 01/96. Nesse diapasão, tomando-se por base que a NOB 01/96 foi bem sucedida na expansão da municipalização da gestão, já que cerca de 99% dos municípios brasileiros já eram participantes de alguma das formas de gestão estabelecidas, mas que ainda restava a regionalização e hierarquização preconizada pela Lei 8.080/90. Assim sendo, postulou-se na NOAS-SUS 01/2001 a elaboração por parte dos Estados-membros e Distrito Federal do Plano Diretor de Regionalização que em harmonia com o plano estadual de saúde deve assegurar o mais amplo acesso possível do cidadão às atividades de proteção à saúde em qualquer nível de complexidade. São os PDRs os documentos que devem prever e estabelecer as regiões ou microrregiões de saúde que serão divididas pelo critério de melhor atendimento administrativo a situações comuns a diversos municípios e estados-membros; os módulos assistenciais, que são unidades com poder de resolução no plano básico de assistência abrangendo um ou mais municípios, que nesse caso deverá eleger uma sede e4 as unidades territoriais de qualificação na assistência à saúde, nas Unidades da federação em que o modelo de regionalização não permitir microrregiões de saúde.

            Para finalizar esse capítulo sobre a estrutura legal do SUS devo ainda aduzir algum comentário sobre a Emenda Constitucional 29, de 13.09.2000. Tal modificação à Lei Fundamental de 1988 pretendeu vincular percentual das receitas tributárias à política de saúde, assim como o constituinte originário houvera feito com a educação.

            A EC 29, de 13.09.2000 alterou os artigos 34, 35,156,160,167 e 168 e acrescenta o art. 77 ao ADCT, afirmando as bases fundamentais dos valores a serem repassados pelos entes federativos na constituição de um piso orçamentário para as atividades de saúde. Dessa maneira, o art.77 do ADCT estabelece o ano de 2004 como termo final para os ajustes orçamentários a serem introduzidos com acréscimos de 5% para a União em relação ao exercício de 2000 reajustado consoante a variação nominal do PIB entre 2001 e 2004. Para os Estados e Distrito federal até 2004 o aumento orçamentário com a saúde deve ser de 12% e para os Municípios de 15%.


PRINCÍPIOS REGULAMENTADORES DO SUS: COMPETÊNCIA DAS TRÊS ESFERAS DE GOVERNO

            Sobre o conceito de autonomia e descentralização:

            Ensina RAUL MACHADO HORTA, maior autoridade sobre federalismo na doutrina jurídica nacional, citando farta bibliografia alienígena, que a jurisprudentia atribui inúmeros e multifários sentidos ao termo "autonomia", ora alargando-o ora restringindo-o. Não há um modelo próprio de federação no direito comparado, ressaltando apenas algumas condições objetivas para uma caracterização mínima capaz de identificar a forma de Estado mencionada, tais como:

            "1. A decisão constituinte criadora do Estado-federal e de suas partes indissociáveis, a federação ou União, e os Estados-membros;

            2.A repartição de competências entre a federação e os Estados-membros;

            3.O poder de auto-organização constitucional dos Estados-membros, atribuindo-lhes autonomia constitucional;

            4.A intervenção federal, instrumento para restabelecer o equilíbrio federativo, em casos constitucionalmente definido;

            5.A câmara dos Estados, como órgão do poder legislativo federal, para permitir a participação do Estado-membro na formação da legislação federal;

            6.A titularidade dos Estados-membros, através de suas Assembléias Legislativas, em número qualificado, para propor emenda à Constituição Federal;

            7.A criação de novo Estado ou modificação de Estado existente dependendo da aquiescência da população do Estado afetado.

            8.A existência no Poder Judiciário Federal de um Supremo Tribunal ou Corte Suprema, para interpretar e proteger a Constituição Federal, e dirimir litígios ou conflitos entre a União, os Estados, outras pessoas jurídicas de direito interno, e as questões relativas à aplicação ou vigência da lei federal", porém, faz observar o autor adiante que, "não obstante a permanência de determinados requisitos, como a repartição de competências, a autonomia constitucional do Estado-membro, a intervenção federal, a Câmara dos Estados, recebem eles definições individualizadoras e contrastantes nos diversos modelos reais de federalismo. Em alguns casos a autonomia constitucional do Estado-membro praticamente deixa de existir, quando a Constituição Federal se encarrega de preordenar o Estado-membro em seu texto, tornando a Constituição Federal um documento híbrido, federal e Estadual" (1995:347).

            De fato, o que se depreende do trecho suso colecionado é que se configura possível, sem agressão à doutrina ou ao direito comparado, uma federação centralizada, como sem sombra de dúvida, é a direção implicada nas recentes reformas efetuadas pelo governo federal brasileiro, o que não é novidade neste país. A bem da verdade, a história da federação brasileira desde a proclamação da República, onde encontra o seu nascedoiro, tem sido a alternância entre modelos mais ou menos centralizados. Finda com a república velha uma nefasta experiência nacional em termos de debilidade do governo federal, onde a descentralização descambou para a cruel realidade da política oligárquica, fenômeno que inscreveu seu nome na história brasileira como "coronelismo", prostrando a política nacional, a começar pela manipulação e distorção dos resultados eleitorais (que já era uma realidade no Império) até a marginalização de Estados-membros não participantes do restrito pacto.

 A centralização ou descentralização são conformadas por técnicas de distribuição de competências que atendem a princípios que devem estar definidos na própria Carta Magna sob pena de dissolução da ordem interna em virtude do embate de competências. Não se pode jamais falar em "autonomia absoluta" ao mesmo passo que também não é correto juridicamente afirmar que a fiscalização ou a instituição de normas gerais pelo ente político competente para tanto seja, aprioristicamente, interferência indevida ou agressão a autonomia. Isto porque a centralização ou descentralização serão sempre parciais, como ensina magistralmente um dos maiores juristas do século XX, HANS KELSEN:

            "A centralização ou descentralização de uma ordem jurídica podem ser de graus quantitativamente variáveis. O grau de centralização ou descentralização é determinado pela proporção relativa do número e da importância das normas centrais e locais da ordem. Conseqüentemente pode-se fazer distinção entre centralização totais e parciais. A centralização é total se as normas forem válidas para o território inteiro. A descentralização é total se as normas forem válidas apenas para partes diferentes do território, para subdivisões territoriais(...)Quando nem a centralização nem a descentralização são totais, falamos de descentralização parcial e centralização parcial, que, desse modo, são iguais. A centralização e a descentralização totais são apenas pólos ideais. Existe certo grau determinado abaixo do qual a centralização não pode descer, e certo grau máximo que a descentralização não pode ultrapassar sem a dissolução da comunidade jurídica (...) O Direito Positivo conhece apenas a centralização e descentralização parciais" (1995:291 / Grifos nossos).

            Sobre o tema, indica também o ilustre Prof. Meirelles Teixeira, já na década de 40 que são traços do novo federalismo:

            "a) aumento da intervenção estatal, tanto central como dos poderes locais;

b)desenvolvimento de uma vasta área de cooperação entre os poderes central e locais, com mútuas vantagens, sem distribuição constitucional dos poderes. O governo federal necessita de maiores contatos com os poderes e com os problemas locais; os governos locais, por sua vez, necessitam de mais e mais ajuda, de maior assistência dos governos centrais. Daí acordos, uso de pessoal burocrático, serviços em comum, empréstimos federais aos Estados-membros, etc.

A)reforço dos poderes dos governos centrais, na forma já exposta (...).

B)necessidade de reajustamento na distribuição dos poderes governamentais e de adoção de sistemas mais ou menos simples de reforma constitucional (...)" (1991:658).

            Distribuição de competências na federação brasileira:

            O sistema de distribuição de competências adotado pela Constituição de 1988 é complexo, baseado na melhor técnica do direito constitucional alemão e austríaco. A Carta Magna estipula competências da seguinte ordem, de acordo com HORTA:

            "I. Competência geral da União (art.21, I até XXV);

II.Competência de legislação privativa da União (art.22, I a XXIX, parágrafo único);

III.Competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art.23, I a XII, parágrafo único);

IV.Competência de legislação concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (art.24, I a XVI, parágrafos 1o, 2o, 3o e 4o );

V.Competência dos poderes reservados aos Estados (art.25, parágrafo 1o e 125, parágrafos 1o, 2o,3o e 4o)" (ob.cit:407).

            A competência geral da União diz respeito aos poderes materiais da União, tais como os poderes soberanos, poderes de defesa do Estado e da estrutura federal, de Administração e fiscalização econômico-financeira etc., e segue este mesmo critério a atribuição das matérias a que incumbe à União tratar. A competência legislativa privativa "incorpora os preceitos declaratórios e autorizativos da competência geral na legislação federal, através da lei e da norma jurídica, sob o comando privativo da União federal, por intermédio dos órgãos de manifestação da vontade legislativa" (id.ibidem : 411). A competência comum condensa obrigações do poder público, "condensa preceitos e recomendações dirigidas à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, traduzindo intenções programáticas do constituinte, reunidas em conjunto de normas não uniformes, muitas com as características de fragmentos que foram reunidos na regra geral por falta de outra localização mais adequada. São regras não exclusivas, não dotadas de privatividade e que deverão constituir objeto da preocupação comum dos quatro níveis de governo, dentro dos recursos e das peculiaridades de cada um" (id.ibidem:417). Já a competência concorrente dispõe sobre temas de legislação que tocam aos Estados-membros, Distrito Federal e União simultaneamente, excluídos, portanto, os municípios, contudo em níveis ou estratos diferenciados de tratamento, quais sejam, aqueles que determinam a formulação de normas gerais e normas suplementares. Aos Estados-membros e DF cabe a competência para elaboração de normas sobre as matérias elencadas no art.24, que será plena na inexistência de normas gerais, cuja competência para edição é da União. À guiza de observação cabe afirmar que a competência dos Estados-membros manter-se-á plena naquilo que não contrariar a norma federal, seja esta preexistente ou superveniente em relação àquela.

            As normas gerais são as denominadas no direito francês de "leis de quadro", ou seja, leis que irão realizar os contornos ou referências normativas cujo preenchimento será conferido pela competência suplementar dos Estados-membros consoante suas necessidades ou peculiaridades regionais, respeitados os limites previamente traçados pela lei federal geral. Acrescenta HORTA:

            "A legislação concorrente, que amplia a competência legislativa dos Estados, retirando-a da indigência em que a deixou a pletórica legislação federal no domínio dos poderes enumerados, se incumbirá do aperfeiçoamento da legislação estadual às peculiaridades locais, de forma a superar a uniformização simétrica da legislação federal" (id.ibidem:418).

            De acordo com a atual Constituição Federal é competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios cuidar da saúde a assistência pública e promover programas de saneamento básico (art. 23, II e IX, in fine). Em seguida, a Constituição estabelece que caberá concorrentemente à União, aos Estados e Distrito Federal a proteção e defesa da saúde (art.24, XII), sabendo-se que nesse último caso a União restringir-se-á a elaborar normas gerais as quais os Estados poderão suplementar.

            Mas o papel do Município não é do estrito cumprimento da legislação federal e estadual acompanhado da "esterelidade normativa" como pode sugerir a sua ausência no rol da competência concorrente. No art. 30, I, II, VII da Constituição Federal de 1988 fica insculpida a competência do município para legislar sobre assuntos de interesse local, suplementando no que couber a legislação federal e estadual, assim como prestar serviços de saúde à população. Observe-se que a fórmula do interesse local somada a capacidade de suplementar naquilo que caiba, ou seja nos próprios assuntos locais, a legislação dos outros entes federativos dá uma margem razoável de discricionariedade ao legislador municipal para aquilo que as normas gerais, no caso federais e estaduais, não conseguirem alcançar satisfatoriamente ou sobre o que silenciarem. Exemplos desse exercício suplementar encontram-se sugeridos pela Lei 8.080/90 no seu art. 15, incisos V, VI, XI, XVI, XX e XXI, tais como a regulação da proteção à saúde do trabalhador, fomento à pesquisa, planejamento de políticas sanitárias etc.

            Dos arts. 16 a 18 da Lei 8.080/90 teremos o tratamento das competências dos três entes federativos quanto à direção do SUS, as quais podem ser definidas sem prejuízo da leitura posterior dos incisos a partir da seguinte compreensão: à União caberão as ações relativas ao planejamento, incentivo e cooperação técnica na política sanitária, como dão mostra os verbos adotados nos dispositivos do art.16 ("formular", "promover", "prestar", "elaborar", "definir", "coordenar"...). Neste aspecto a Lei procura realizar o papel de normatização genérica que a Constituição Federal destina à União. Os Estados-membros, por seu turno, tem o dever desde já estabelecido na LOS de promover a descentralização das ações de saúde para os municípios, cuidando sempre da prestação do apoio técnico-financeiro necessário para isso (art. 17, I e III). Incumbe aos Estados-membros a execução, em caráter complementar, das ações de vigilância epidemiológica, sanitária, alimentação e nutrição e saúde do trabalhador. Em termos de competência regulatória expressa na LOS os Estados-membros estabelecerão normas de caráter suplementar sobre procedimentos de controle de qualidade para produtos e substâncias de consumo humano.

            Já as competências da Direção Municipal do SUS envolvem de um lado a participação no planejamento das políticas sanitárias junto aos demais órgãos federativos e a execução das ações, primordialmente. Cabe também ao Município a normatização complementar das ações e serviços públicos de saúde no seu âmbito de atuação (LOS, art.18, XII), com o que a própria Lei efetiva a previsão constitucional sobre o papel regulatório dos municípios sobre a matéria.

            O federalismo cooperativo e princípio de subsidiariedade:

            É sintomático que os desafios que o nosso tempo impõe aos países são de tal ordem que os pequenos grupos e associações obrigatoriamente cedem espaço à macroorganizações, sejam públicas, sejam no seio da sociedade civil. A invenção federalista não se encontra imune a este fenômeno que nele reveste-se na tendência à centralização dos poderes nas mãos da União, órgão político federal, titular de soberania, em contraposição à autonomia dos entes políticos parciais.

            De outro lado, não se pode negar que a reação à centralização é necessária nas sociedades abertas. Não se consente na absorção dos poderes maiores por poderes totalizantes. É nessa perspectiva que se deve falar em federalismo cooperativo, explicando, a esse respeito o mestre PAULO BONAVIDES:

            "Dois princípios regem todo sistema federativo: a autonomia e a participação. O primeiro, concorrendo para manter a descentralização; o segundo, para garantir a união, mas descentralização e união fundadas sempre no consenso, na legitimidade, na consciência cooperativa (...)" e, dissertando sobre a centralização, pondera adiante: "Não resta dúvida que a época tem sido de concentração de poderes e ações intervencionistas da parte do Estado, por decorrência inelutável de pressões sociais que deixam às vezes arquejante o organismo democrático das Sociedades Abertas. O problema de instituições estáveis se torna mais grave nos sistemas de governo dos países em desenvolvimento, onde a vinculação do poder com a ordem jurídica não se apóia em elementos da tradição e da cultura política da sociedade, a qual basicamente não existe. E, quando tais países se organizam sob a forma federativa, o único caminho para evitar o ´Leviatã´ unitário das burocracias tecnocráticas passa necessariamente pelo meridiano de um federalismo cooperativo, de inspiração democrática. Esse federalismo não é fechado, tanto que reconhece também por legítimo que, nas uniões federativas, certas matérias, como política exterior e defesa, pesquisa básica de grande porte, economia, finanças, planejamento e proteção do meio ambiente, com a defesa do patrimônio ecológico, tenham suas regras e decisões básicas referidas à órbita de competência do poder central" (in, A Constituição aberta. São Paulo, 2o ed., Malheiros editores, 1996:432/435).

            A existência do sistema constitucional de repartição de competências e receitas tributárias deve ser entendido dentro do conceito de federalismo cooperativo democrático. Assim também, o incremento das responsabilidades dos entes políticos parciais em saúde, educação e trânsito. A idéia é de que entes menores devam ser responsáveis pela prestação de serviços e de desincumbir-se de todas as tarefas que estejam ao seu alcance, que possam ser absorvidas pela sua capacidade de trabalho e organização. Esta é o significado do que se convencionou chamar "princípio de subsidiariedade", tão timidamente estudado no Brasil. BONAVIDES refere-se a ele, inclusive, como princípio cardeal de toda Constituição Federal legítima, juntamente com o princípio da solidariedade e da pluralidade (ob.cit.:435). Não obstante o princípio da subsidiariedade não possuir exclusiva aplicação no domínio das formas de Estado, ele "pode ser aplicável nas relações entre órgãos centrais e locais, verificando-se, também, o grau de descentralização. A descentralização é um domínio predileto de aplicação do princípio de subsidiariedade, sendo que a doutrina menciona as possíveis relações entre o centro e a periferia" (BARACHO, 1997:30).

            Sobre o conceito escolhe o citado autor a lição de VLADIMIRO LAMSDORFF-GALAGANE:

            "que a autoridade só faça o que é preciso para o bem comum, mas aquilo que os particulares não podem ou não querer<sic>fazer por si mesmos. A necessidade de intervenção da autoridade se estabelece, pois, eventualmente, e cessa rapidamente assim que os particulares voltem a manifestar capacidade para resolver o problema sem ajuda alheia"(apud José Alfredo de Oliveira BARACHO. O princípio de subsidiariedade. Rio de Janeiro: Forense, 1997:37).

            O caso sob análise é perfeitamente definível dentro dos limites da discussão sobre o federalismo na Constituição Federal de 1988 e, nela, a verticalidade da aplicação do princípio de subsidiariedade. Daí a busca imprescindível pelo ideal equilíbrio federativo, inclusive em termos de sistemas de proteção social. Sobre isto aduz ainda BARACHO:

            "O princípio de subsidiariedade é considerado como instrumento utilizado pelo governantes,<sic> na procura de equilíbrios, <sic>necessários a redefinir novas mudanças procuradas pela sociedade, na compreensão e efetivação de suas necessidades. Para tal efetivação, surge<sic>os questionamentos acerca das fronteiras de ingerência e da não-ingerência, que variam de acordo com a capacidade e as necessidades dos atores sociais. A doutrina social não exclui formas de intervenção estatal, em casos de necessidade, mas recusa a liberdade e igualdade sacralizadas" (ob.cit.:57/ grifos nossos).

            Ao nosso parecer, em poucos momentos o legislador infraconstitucional foi tão feliz em implementar a estrutura cooperativa no federalismo brasileiro quanto na área da saúde na década de 1990. O papel de planejamento conjunto das políticas como realizado pela previsão da LOS. Os Conselhos de Saúde da Lei 8.142/90 e os perfis de habilitação já referidos nas NOBs. que desde a 01/93 vêm ampliando o processo de municipalização desejado pela Carta Magna são notáveis argumentos em socorro dessa afirmação.


LEI ORGÂNICA DA SAÚDE (LEI 8.080/90)

            A Lei Orgânica da Saúde, Lei 8.080/90 veio regulamentar as ações de saúde no Brasil, entendida amplamente a expressão, seja para abrigar a saúde preventiva e curativa propriamente dita, seja a vigilância sanitária, seja mesmo os fatores externos concernentes a saúde como o saneamento básico, alimentação, trabalho etc.

            O Art. 198 da Constituição Federal de 1988 prevê a integralização em rede hierarquizada e regionalizada dos serviços e ações de saúde em forma de sistema único e o art. 200 trata de estabelecer os objetivos de tal sistema.

            "Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

            I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

            II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;

            III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;

            IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;

            V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;

            VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;

            VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;

            VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho" (Grifos nossos).

            A norma constitucional como destacado acima é quem faz a referência à atividade regulamentadora do legislador infraconstitucional. A Lei 8.080/90 nasce para dar visibilidade e estrutura ao SUS, juntamente com a Lei 8.142/90, a qual, como já dito, deriva da necessidade de ultrapassar-se os vetos que a LOS recebeu, criando os Conselhos e Conferência de Saúde bem como implementando os instrumentos de controle social das políticas de saúde.

            A Lei 8.080/90 é dividida em cinco títulos que tratam, respectivamente sobre: disposições gerais, o sistema único de saúde, os serviços privados de assistência à saúde, recursos humanos e financiamento. Passamos a fazer uma breve análise de apresentação sobre cada qual.

            Das disposições gerais

            Nesse título a LOS avança em relação à conceituação do direito à saúde em dois pontos substancialmente.

            Em primeiro lugar ao tratar do direito à saúde, consoante a perspectiva constitucional, como um direito fundamental. Nesse ponto de vista não se trata de defender o direito à vida compreensivamente, e sim de entender a saúde como um direito à vida qualificado, direito às condições mínimas necessárias para uma existência digna. Dessa maneira o Estado não pode mais conformar-se à rudimentar função de prestador de serviços de saúde, o que traduziria uma relação individual, contratual, de consumo entre o cidadão e o SUS. Em face da saúde enquanto direito fundamental o Estado reveste-se do papel de garantidor positivo de uma política sanitária ampla com o fito de desincumbir-se da sua responsabilidade, de seu dever constitucional de prestar, a qual corresponde um direito difuso.

            Em segundo lugar ao abordar no art. 3o os fatores determinantes ou condicionantes da saúde tais como a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais, a LOS ampliou de maneira corajosa o conceito da saúde. O conceito inclusivo ou compreensivo de saúde presente na LOS permite compreender que os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País, o que situa nitidamente e intencionalmente o direito à saúde como elemento basilar da construção da cidadania brasileira.

            É de se entender que o espectro de abrangência da LOS alcança não apenas o setor público, mas igualmente o setor privado já que as ações e serviços de saúde são de relevância social.

            O Sistema Único de Saúde

            Como já dito anteriormente a organização dos serviços e ações de saúde em forma de Sistema único já era mandamento de índole constitucional, de maneira que a LOS surge para integrar a eficácia da previsão.

            Sobre o alcance da vinculação dos serviços públicos em todas as esferas federativas ao SUS afirmam categoricamente CARVALHO e SANTOS (1995:63):

            "Com o comando único em cada esfera de governo e a determinação legal de que esse comando será exercido nos Estados pela Secretaria de Saúde, todos os serviço de saúde nos Estados e Municípios terão, obrigatoriamente, de ficar subordinados à normatividade do SUS. A LOS não deixou espaço para o que ERNANI BRAGA uma vez denominou ‘feudalismo institucional’.

            Desse modo, os serviços de saúde, ainda que não estejam formalmente subordinados ou vinculados às Secretarias Estaduais ou Municipais de Saúde, como os hospitais penitenciários (geralmente subordinados às Secretarias de Justiça ou de Segurança), os hospitais das Forças Armadas e os hospitais universitários, integram o SUS e, constitucionalmente e legalmente, hão de submeter-se à direção única do SUS, no tocante à política de saúde."

            De ressaltar que a participação dos hospitais universitários no plano do SUS far-se-á mediante convênio (art.45 da LOS), e não automaticamente como a princípio de depreende do texto do art. 4o da Lei em comento.

            Quanto aos objetivos do SUS é notável a ampliação que a LOS confere aos oito incisos do art.200 da CF/88, que nela transformam-se em vinte e um. Todas as finalidades aqui traçadas, a bem da verdade, encontram respaldo constitucional, pois não fogem aos assuntos referentes à vigilância sanitária, à saúde do trabalhador, ao saneamento básico, ao controle e fiscalização de serviços e produtos e recursos humanos. Quanto aos princípios e diretrizes já forma tratados no princípio desse trabalho.

            Para finalizar essa parte cabe a referência ao art. 8o que encomenda a direção do SUS para cada esfera federativa, no plano federal ao Ministério da Saúde, nos Estados às Secretarias Estaduais e nos Municípios às Secretarias Municipais. Menção obrigatória merece também a previsão do consórcio entre os Municípios facultado pelo art. 10 da LOS.

            Acerca da competência regulatória das três entidades federativas (arts. 16 a 18) já aludimos no capítulo anterior.

            Dos serviços privados da Assistência à saúde

            Quanto aos serviços privados de saúde a LOS prevê duas classificações: aqueles que não pertencem ao SUS, respaldados pela liberdade que a Constituição Federal de 1988 confere à iniciativa privada no setor, feitas apenas as restrições concernentes ao capital estrangeiro, constantes do art. 199, §3o desse Excelso Diploma, e os que mediante convênio prestam serviço complementar de saúde ao Sistema Único.

            Para a contratação dos particulares pessoas jurídicas que prestarão o serviço de saúde privado complementar (art.199, §1o da CF/88), na hipótese das condições do setor público não cobrirem a demanda, o que é uma realidade nacional evidente, faz-se necessária a realização de licitação nos moldes da Lei 8.666/93. Advertem CARVALHO e SANTOS (ob.cit.:183) que a inobservância dessa regra tem sido generalizada no plano federal, sem que haja qualquer justificativa palpável para o afastamento da aplicação da Lei 8.666/90.

            O art. 25 da LOS lembra o mandamento constitucional de que a preferência para formulação de convênios para que as entidades privadas integrem o SUS é das instituições de fins filantrópicos.

            O art. 26, §1o fala sobre os critérios para remuneração e parâmetros da cobertura assistencial, pelo que é importante assinalar que são duas atividades submetidas à competência da Direção Nacional do SUS mediante aprovação do Conselho Nacional de Saúde.

            Dos recursos humanos

            Uma das preocupações da Constituição Federal na área da saúde foi, expressamente, a formação de recursos humanos (art. 200, III). A LOS busca implementar uma política de fomento à qualificação específica na área através de programas de aperfeiçoamento pessoal em todos os níveis de ensino, inclusive pós-graduação, bem como a valorização da dedicação exclusiva ao SUS. Sobre o tema socorro-me novamente de CARVALHO e SANTOS (ob.cit.:208):

            "Por mais bem estruturado que venha a ser o Sistema Único de Saúde, por mais abrangente e pormenorizada que venha a ser a legislação ordenadora do SUS, por mais recursos financeiros e materiais de que disponha o sistema, e por mais avançados que sejam os enunciados da política de saúde e os objetivos fixados na Lei Orgânica da Saúde, O SUS NÃO FUNCIONARÁ A CONTENTO E OS IDEAIS NELE TRADUZIDOS ESTARÃO FADADOS AO FRACASSO se não dispuser de recursos humanos qualificados e, obviamente, valorizados sempre" (Grifos no original).

            A Norma Operacional Básica 01/93 no documento A ousadia de cumprir e fazer cumprir a Lei incumbia um grupo de trabalho especificamente para elaborar diretrizes e apoio técnico à "preparação e gestão de RH para o Sistema; ordenar a formação em articulação com o aparelho formador e entidades profissionais".

            Do financiamento

            A norma inspiradora da matéria é de matiz constitucional. Reza o art. 195 da Constituição Federal que "a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais".

            A EC 29/2000 também introduziu modificações que repercutem na elaboração dos orçamentos da saúde nas três esferas federativas na obrigatoriedade da observância de percentuais vinculados à saúde, in verbis:

            "Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

            I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

            II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

            III - participação da comunidade.

            § 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.

            § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:

            I - no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º;

            II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios;

            III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.

            § 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:

            I - os percentuais de que trata o § 2º;

            II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais;

            III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal;

            IV - as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União."

            Há de se levar em conta após a referida emenda constitucional que o orçamento da seguridade social conta na área de saúde com receita vinculada de impostos, além de contribuição social específica no nível federal (CPMF).

            No caso dos Estados-membros e Distrito Federal comporá o orçamento nacional da saúde 11% da receita do imposto sobre transmissão causa mortis, do ICMS e do IPVA, assim como suas participações na distribuição da receita do IRPJ pago à União pelos seus órgãos, do FPE e do IPI (Art. 77,II do ADCT). Quanto aos Municípios 15% dos valores recebidos de sua receita originária e transferida. Já a União assumiu um critério mais financeiro-atuarial, acrescendo em 5% o montante de sua contribuição em 1999 ao orçamento da saúde para 2000, e de 2001 a 2004 essa quantia corrigida pela variação nominal do PIB.

            A LOS prevê a somatória de outras fontes ao orçamento da saúde como aquelas provenientes de doações, alienações patrimoniais, taxas e emolumentos na área de saúde e serviços que possam ser prestados, contanto que não interfiram na área-fim do SUS (art.32).

            É de ressaltar que a Lei adverte que as ações de saneamento básico executadas supletivamente pelo SUS serão financiadas com recursos do Sistema Financeiro de Habitação, precipuamente (art. 32, §3o da LOS), assim como o fomento à pesquisa poderão ser co-financiadas por Universidades e Instituições de fomento, além das próprias unidades executoras.


AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA

            A ANVISA foi criada pela Medida Provisória 1.791, de 1998 posteriormente convertida na Lei 9.782 de 26 de janeiro de 1999. Sua finalidade é administrar o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, a qual foi definida na Lei Orgânica da Saúde como "um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo e o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde" (art. 6o, §1o da Lei 8.080/90).

            Foi concebida no novel modelo das Agências Nacionais, cuja natureza jurídica é de autarquia submetida a regime especial. É gerida por uma Diretoria Colegiada composta por até cinco membros escolhidos pelo Presidente da República e ratificados pelo Senado Federal, nos moldes da indicação para Ministros dos Tribunais Superiores e altas autoridades do Executivo. O mandato da Diretoria será de três anos permitida uma única recondução e dentre tais membros o Presidente da República escolherá o Diretor-Presidente. Além da Diretoria Colegiada a ANVISA conta também com um Procurador e um Ouvidor.

            Na sua estrutura foi criada também um Conselho Consultivo formado por membros dos no mínimo, representantes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, dos produtores, dos comerciantes, da comunidade científica e dos usuários. A Lei deixa para o regulamento estabelecer a competência e o número de membros do Conselho. Diz o Decreto 3.029 de 16 de abril de 1999:

            "Art. 17. O Conselho Consultivo tem a seguinte composição:

            I - Ministro de Estado da Saúde ou seu representante legal, que o presidirá;

            II - Ministro de Estado da Agricultura e do Abastecimento ou seu representante legal ;

            III - Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia ou seu representante legal;

            IV - Conselho Nacional de Saúde - um representante;

            V - Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde - um representante;

            VI - Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde - um representante;

            VII - Confederação Nacional das Indústrias - um representante;

            VIII - Confederação Nacional do Comércio - um representante;

            IX - Comunidade Científica, convidados pelo Ministro de Estado da Saúde - dois representantes;

            X - Defesa do Consumidor - dois representantes de órgãos legalmente constituídos.

            § 1o O Diretor-Presidente da Agência participará das reuniões do Conselho Consultivo, sem direito a voto.

            § 2o O Presidente do Conselho Consultivo, além do voto normal, terá também o de qualidade.

            § 3o Os membros do Conselho Consultivo poderão ser representados, em suas ausências e impedimentos, por membros suplentes por eles indicados e designados pelo Ministro de Estado da Saúde." (NR) (Parágrafo incluído pelo Dec. nº 3.571, de 21.8.2000)"

            A ANVISA tem como objetivos precípuos a regulação, controle e fiscalização dos produtos que impliquem riscos à saúde pública, tais como medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias, alimentos, inclusive bebidas, águas envasadas, seus insumos, suas embalagens, aditivos alimentares, limites de contaminantes orgânicos, resíduos de agrotóxicos e de medicamentos veterinários, cosméticos, produtos de higiene pessoal e perfumes, saneantes destinados à higienização, desinfecção ou desinfestação em ambientes domiciliares, hospitalares e coletivos, conjuntos, reagentes e insumos destinados a diagnóstico, equipamentos e materiais médico-hospitalares, odontológicos e hemoterápicos e de diagnóstico laboratorial e por imagem, imunobiológicos e suas substâncias ativas, sangue e hemoderivados, órgãos, tecidos humanos e veterinários para uso em transplantes ou reconstituições, radioisótopos para uso diagnóstico in vivo e radiofármacos e produtos radioativos utilizados em diagnóstico e terapia, cigarros, cigarrilhas, charutos e qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, quaisquer produtos que envolvam a possibilidade de risco à saúde, obtidos por engenharia genética, por outro procedimento ou ainda submetidos a fontes de radiação (art. 7o da Lei 9.782/99).

            Na sua atuação a ANVISA deve pautar-se pelos objetivos de atuar sobre as circunstâncias especiais que provoquem potencialmente riscos à saúde, por isso seu espectro de ação é amplo, envolvendo não apenas poder de polícia, mas poder de normatizar.

            A Lei é expressa ao exigir a observância do princípio da descentralização administrativa da gestão, na efetividade do princípio de subsidiariedade visto acima, para que a ANVISA possa delegar poderes, inclusive de arrecadação como veremos adiante, aos demais entes federativos, mediante assentimento dos Conselhos de Saúde. Mas será sempre sua a responsabilidade superior de prestar orientação técnica aos Estados-membros e Municípios, bem como será incumbência do Ministério da Saúde a formulação, acompanhamento e avaliação no plano nacional da política e prioridades das ações de vigilância sanitária para o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, que é coordenado pela ANVISA. Para a implementação da política de descentralização a referência legislativa é a Lei 8.080/90 já estudada anteriormente.

            A ANVISA veio substituir a extinta Secretaria de Vigilância Sanitária, órgão do Ministério da Saúde e hoje ocupa, juntamente com o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Vigilância Sanitária, a trindade que deve desincumbir-se das ações dessa natureza no país. Para a consecução de suas atribuições a Lei 9.782/99 estabelece uma gama ampla de poderes à Agência os quais realizam com clareza um novo perfil intervencionista para o poder Executivo no atendimento à demandas dinâmicas cuja resolução muitas vezes escapa ao ritmo lento das tramitações legislativas. Dentre as prerrogativas da ANVISA cabe citar:

            "Art. 7º Compete à Agência proceder à implementação e à execução do disposto nos incisos II a VII do art. 2º desta Lei, devendo:

            III - estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária;

            IV - estabelecer normas e padrões sobre limites de contaminantes, resíduos tóxicos, desinfetantes, metais pesados e outros que envolvam risco à saúde;

            V - intervir, temporariamente, na administração de entidades produtoras, que sejam financiadas, subsidiadas ou mantidas com recursos públicos, assim como nos prestadores de serviços e ou produtores exclusivos ou estratégicos para o abastecimento do mercado nacional, obedecido o disposto no art. 5º da Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977, com a redação que lhe foi dada pelo art. 2º da Lei nº 9.695, de 20 de agosto de 1998;

            VI - administrar e arrecadar a taxa de fiscalização de vigilância sanitária, instituída pelo art. 23 desta Lei;

            VII - autorizar o funcionamento de empresas de fabricação, distribuição e importação dos produtos mencionados no art. 8o desta Lei e de comercialização de medicamentos;(Redação dada pela MP nº 2.000-12, de 13 de janeiro de 2000)

            VIII - anuir com a importação e exportação dos produtos mencionados no art. 8º desta Lei;

            IX - conceder registros de produtos, segundo as normas de sua área de atuação;

            X - conceder e cancelar o certificado de cumprimento de boas práticas de fabricação;

            .....

            XIV - interditar, como medida de vigilância sanitária, os locais de fabricação, controle, importação, armazenamento, distribuição e venda de produtos e de prestação de serviços relativos à saúde, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde;

            XV - proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde;

            XVI - cancelar a autorização de funcionamento e a autorização especial de funcionamento de empresas, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde;

XVII - coordenar as ações de vigilância sanitária realizadas por todos os laboratórios que compõem a rede oficial de laboratórios de controle de qualidade em saúde;

            XVIII - estabelecer, coordenar e monitorar os sistemas de vigilância toxicológica e farmacológica;

            XIX - promover a revisão e atualização periódica da farmacopéia;

            XX - manter sistema de informação contínuo e permanente para integrar suas atividades com as demais ações de saúde, com prioridade às ações de vigilância epidemiológica e assistência ambulatorial e hospitalar;

            XXI - monitorar e auditar os órgãos e entidades estaduais, distrital e municipais que integram o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, incluindo-se os laboratórios oficiais de controle de qualidade em saúde;

            XXII - coordenar e executar o controle da qualidade de bens e produtos relacionados no art. 8º desta Lei, por meio de análises previstas na legislação sanitária, ou de programas especiais de monitoramento da qualidade em saúde;

            XXIII - fomentar o desenvolvimento de recursos humanos para o sistema e a cooperação técnico-científica nacional e internacional;

            XXIV - autuar e aplicar as penalidades previstas em lei.

            XXV - monitorar a evolução dos preços de medicamentos, equipamentos, componentes, insumos e serviços de saúde, podendo para tanto:

            a. requisitar, quando julgar necessário, informações sobre produção, insumos, matérias-primas, vendas e quaisquer outros dados, em poder de pessoas de direito público ou privado que se dediquem às atividades de produção, distribuição e comercialização dos bens e serviços previstos neste inciso, mantendo o sigilo legal quando for o caso;( Redação dada pela MP nº 2.000-12, de 13 de janeiro de 2000)

            b. proceder ao exame de estoques, papéis e escritas de quaisquer empresas ou pessoas de direito público ou privado que se dediquem às atividades de produção, distribuição e comercialização dos bens e serviços previstos neste inciso, mantendo o sigilo legal quando for o caso;(Redação dada pela MP nº 2.000-12, de 13 de janeiro de 2000)

            c. quando for verificada a existência de indícios da ocorrência de infrações previstas nos incisos III ou IV do art. 20 da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, mediante aumento injustificado de preços ou imposição de preços excessivos, dos bens e serviços referidos nesses incisos, convocar os responsáveis para, no prazo máximo de dez dias úteis, justificar a respectiva conduta;(Redação dada pela MP nº 2.000-12, de 13 de janeiro 2000)

            d. aplicar a penalidade prevista no art. 26 da Lei nº 8.884, de 1994;(Redação dada pela MP nº 2.000-12, de 13 de janeiro de 2000)

            § 1º A Agência poderá delegar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a execução de atribuições que lhe são próprias, excetuadas as previstas nos incisos I, V, VIII, IX, XV, XVI, XVII, XVIII e XIX deste artigo."

            Agora entre os poderes da ANVISA o que mais impressiona, senão incomoda, encontra-se no art.8o, §4o, o qual além do produtos listados na Lei de interesse à proteção sanitária e portanto autorizadores da ação da ANVISA, "a Agência poderá regulamentar outros produtos e serviços de interesse para o controle de riscos à saúde da população, alcançados pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária".

            A norma citada constitui uma verdadeira norma em branco como as constantes da doutrina penalista, hoje muito em voga na seara ambiental, onde os riscos muitas vezes apenas podem ser avaliados diante do fato, dificilmente cabíveis no raio de uma previsão legislativa. Trata-se de uma prerrogativa fronteiriça do Estado de Direito, um alargamento de fronteiras que sugere uma alteração de paradigmas.

            Trata-se de saber que os regulamentos expedidos pela ANVISA teriam o poder de obrigar a terceiros coercitivamente tal como uma lei formal. A doutrina costuma apontar três dificuldades fundamentais para tanto, quais sejam o fato de que a atividade normativa no plano administrativo submete apenas por obra do dever de obediência hierárquica na Administração Pública, sendo pífio seu alcance em face de terceiros. No mesmo diapasão, a regulamentação no rigor da disciplina constitucional é faculdade do Presidente da República (art. 84, IV da CF/88), sendo a Diretoria Colegiada da ANVISA incompetente para expedir regulamentos para a fiel execução da lei. Por fim, o art. 8o, §4o, da Lei 9.782/99 parece autorizar a ANVISA a inovar na ordem jurídica ao conferir-lhe poderes para definir outros produtos que não estejam compreendidos pela referida Lei, sendo este papel estranho ao poder regulamentar que existe, por excelência, para disciplinar a execução da Lei e não para ultrapassar-lhe os limites, acrescentando-lhe novos elementos ou subtraindo os já definidos. Nesse sentido aponta MORAES (2001:47):

            "Portanto, o §4o do art. 8o da Lei 9.782 deverá, nesse aspecto, ser interpretado restritivamente, isto é, os outros produtos de que trata o artigo em comento, só poderão ser aqueles já cuidados nessa Lei ou em outra vigente. Não poderá a Agência fiscalizar ou controlar outros produtos não previstos em lei porque, do contrário, estaria inovando a ordem jurídica e, por conseguinte, afrontando o princípio constitucional da legalidade"

            A autora citada chega a mencionar a perspectiva de entendimento da atividade normativa da ANVISA caracterizar-se como complementar de "norma em branco", mas refuta a idéia por aceita-la cabível na seara de tipificação criminal e não no que concerne a fiscalização de bens e serviços pela Agência, ao que pensamos opor o argumento de quem pode o mais, também pode o menos... Parece-nos que se a tipificação a partir de norma penal em branco, mesmo em matéria de vigilância sanitária é possível, como já sói acontecer no direito penal ambiental, igualmente e com mais razão a dilatação do rol de bens afeitos à supervisão da ANVISA seria aceitável, porque a autorização genérica está perfeitamente expressa na Lei, a natureza dos objetos claramente delineável pela enumeração dos artigos 7o e 8o, bem como os anexos da Lei, e, finalmente, as finalidades da ANVISA definidas em lei no conceito de vigilância sanitária dado pela LOS permitiriam o controle efetivo das ações da agência.

            Não se trata de delegação legislativa camuflada, o que seria claramente inconstitucional pelo disposto no art. 68 e parágrafos da CF/88, já que essa apenas pode ser dada nas hipóteses previstas naquele dispositivo ao Presidente da República. Também não há que se falar em decreto autônomo, figura de aceitação controvertida entre os administrativistas, pois mesmo para quem os admita sua expedição é privativa do Chefe máxime do Executivo, nos termos do já citado art. 84, IV da Constituição Federal.

            Como já dito acima, o poder conferido à ANVISA apenas se pode admitir no direito brasileiro como o de complementar por força de dever regulamentar uma norma em branco. Os limites do poder regulamentar com mais razão estarão presentes no caso, isso porque se ao decreto do Chefe do Executivo já se impõe o dever de conformar-se à Lei, com mais razão as Instruções, Resoluções e Portarias que órgãos administrativos podem expedir estarão cingidas por tais barreiras. Como ensina a palavra precisa de BANDEIRA DE MELLO (1996:208):

            "Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que já não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão faze-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão faze-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o Chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebe-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta".

            Eis aí a questão que em um esforço exegético mais correto resolve-se: a autorização do §4o do art. 8o da Lei 9.782/99 não pode ser interpretada extensivamente como a permitir a criação de outras modalidades de imputação ou restrição a direitos que não as previstas na lei, mas sim como ampliação do rol de bens e serviços passíveis da fiscalização, quando sejam tais que possuam conexão intrínseca com a natureza da atividade protetiva de vigilância sanitária. Observe-se que não se cuida de extensão de poder algum, pois a ANVISA continuará dispondo dos mesmas prerrogativas de polícia e normativa que a Lei formal já lhe faculta, senão de um detalhamento dos objetos passíveis de fiscalização, os quais pela sua natureza, pelos riscos que potencialmente apresentam já se encontram compreendidos na finalidade, na justificativa ontológica da ANVISA. Portanto, não vemos ofensa alguma ao princípio da legalidade já que não importa a permissão em uma ampliação da capacidade de ANVISA fazer ou obrigar alguém a fazer alguma coisa que não esteja prevista em lei formal. Os meios de coerção da ANVISA definidos em lei não podem ser ampliados por regulamentos de qualquer lavra. Mas o detalhamento da enumeração de produtos e serviços sujeitos às mesmas condições de fiscalização legalmente previstas parece-nos possível de harmonizar-se no ordenamento jurídico brasileiro.

            Um detalhe interessante também a mencionar sobre a ANVISA é que a sua administração faz-se fundamentada juridicamente em um contrato de gestão que é assinado entre o Ministério da Saúde e o Diretor-Presidente que assumir a agência. É essa contrato de gestão que consignará as prioridades e objetivos do mandato a ser cumprido pela Diretoria e os critérios de avaliação de desempenho. Reza a Lei:

            "Art. 19. A Administração da Agência será regida por um contrato de gestão, negociado entre o seu Diretor-Presidente e o Ministro de Estado da Saúde, ouvidos previamente os Ministros de Estado da Fazenda e do Planejamento, Orçamento e Gestão, no prazo máximo de cento e vinte dias seguintes à nomeação do Diretor-Presidente da autarquia. (Redação dada pela MP nº 2.000-12, de 13 de janeiro de 2000)

            Parágrafo único. O contrato de gestão é o instrumento de avaliação da atuação administrativa da autarquia e de seu desempenho, estabelecendo os parâmetros para a administração interna da autarquia bem como os indicadores que permitam quantificar, objetivamente, a sua avaliação periódica.

            Art. 20. O descumprimento injustificado do contrato de gestão implicará a exoneração do Diretor-Presidente, pelo Presidente da República, mediante solicitação do Ministro de Estado da Saúde

            Por fim, a Lei 9.782/99 autoriza a exoneração imotivada do Diretor-Presidente da Agência ao nuto do Presidente da República nos primeiros quatro meses de mandato, após o que será afastado apenas nos casos de prática de ato de improbidade administrativa, de condenação penal transitada em julgado e de descumprimento injustificado do contrato de gestão da autarquia.

            Sua manutenção financeira advém basicamente da receita da Taxa de Vigilância sanitária, paga anualmente em valores fixos pelas empresas nas hipóteses, exemplificativamente, de autorização de funcionamento por estabelecimento ou unidade fabril e para cada tipo de atividade, sobre a indústria de medicamentos, equipamentos (medicina nuclear, tomografia computadorizada, ressonância magnética e cineangiocoronagrafia), etc.

            Além disso a ANVISA arrecada receita do seu patrimônio alienado ou arrendado, de doações, da cobrança de sua dívida ativa e da imposição de multas (art. 22 da Lei 9.782/99).


AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE COMPLEMENTAR

            A ANS foi criada pela Lei 9.961 de 28 de janeiro de 2000 para promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País.

            Dentre suas finalidades institucionais encontra-se a proposição de políticas e diretrizes gerais ao Conselho Nacional de Saúde Suplementar - Consu para a regulação do setor de saúde suplementar, o estabelecimento das características gerais dos instrumentos contratuais utilizados na atividade das operadoras, a fixação de critérios para os procedimentos de credenciamento e descredenciamento de prestadores de serviço às operadoras, o estabelecimento de parâmetros e indicadores de qualidade e de cobertura em assistência à saúde para os serviços próprios e de terceiros oferecidos pelas operadoras, de normas para ressarcimento ao Sistema Único de Saúde – SUS e relativas à adoção e utilização, pelas operadoras de planos de assistência à saúde, de mecanismos de regulação do uso dos serviços de saúde.

            Sua natureza jurídica, como a ANVISA, é de autarquia sob regime especial, entendido assim aquele que permite maior autonomia na gestão dos seus recursos e estabilidade para os gestores que exercerão mandatos.

            Sua administração submete-se às mesmas regras da ANVISA explicitadas acima: Diretoria Colegiada indicada pelo Presidente da república e ratificada pelo Senado; três anos de mandato; Diretor-Presidente indicado dentre os demais membros da Diretoria Colegiada; Procuradoria e Ouvidoria compondo a estrutura administrativa; adoção do contrato de gestão como instrumento de estabelecimento de objetivos e critérios de avaliação de desempenho.

            Correspondente do Conselho Consultivo da ANVISA, a ANS possui a Câmara de Saúde Suplementar de caráter permanente e consultivo. Assim a Lei define sua composição:

            "Art. 13. A Câmara de Saúde Suplementar será integrada:

            I - pelo Diretor-Presidente da ANS, ou seu substituto, na qualidade de Presidente;

            II - por um diretor da ANS, na qualidade de Secretário;

            III - por um representante de cada Ministério a seguir indicado:

            a) da Fazenda;

            b) da Previdência e Assistência Social;

            c) do Trabalho e Emprego;

            d) da Justiça;

            e) da Saúde;

            IV - por um representante de cada órgão e entidade a seguir indicados:

            a) Conselho Nacional de Saúde;

            b) Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde;

            c) Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde;

            d) Conselho Federal de Medicina;

            e) Conselho Federal de Odontologia;

            f) Conselho Federal de Enfermagem;

            g) Federação Brasileira de Hospitais;

            h) Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços;

            i) Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas;

            j) Confederação Nacional da Indústria;

            l) Confederação Nacional do Comércio;

            m) Central Única dos Trabalhadores;

            n) Força Sindical;

            o) Social Democracia Sindical;

            V - por um representante de cada entidade a seguir indicada:

            a) de defesa do consumidor;

            b) de associações de consumidores de planos privados de assistência à saúde;

            c) do segmento de auto-gestão de assistência à saúde;

            d) das empresas de medicina de grupo;

            e) das cooperativas de serviços médicos que atuem na saúde suplementar;

            f) das empresas de odontologia de grupo;

            g) das cooperativas de serviços odontológicos que atuem na área de saúde suplementar;
h) das entidades de portadores de deficiência e de patologias especiais.

            § 1o Os membros da Câmara de Saúde Suplementar serão designados pelo Diretor-Presidente da ANS."

            A receita da ANS provém fundamentalmente da Taxa de Saúde Suplementar cujos sujeitos passivos são as pessoas jurídicas, condomínios ou consórcios constituídos sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa ou entidade de autogestão, que operem produto, serviço ou contrato com a finalidade de garantir a assistência à saúde visando a assistência médica, hospitalar ou odontológica, devida nas hipóteses de plano de assistência à saúde, quando seu valor será o produto da multiplicação de R$ 2,00 (dois reais) pelo número médio de usuários de cada plano privado de assistência à saúde, deduzido o percentual total de descontos apurado em cada plano e por registro de produto, registro de operadora, alteração de dados referente ao produto, alteração de dados referente à operadora, pedido de reajuste de contraprestação pecuniária em saúde suplementar.


Bibliografia citada:

            Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo. 8o ed. São Paulo. Malheiros,1996.

            José Alfredo de Oliveira BARACHO. O princípio de subsidiariedade. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

            Paulo BONAVIDES. A Constituição aberta. 2o ed., São Paulo:Malheiros editores, 1996.

            Guido Ivan de CARVALHO e Lenir SANTOS. Sistema Único de Saúde. 2o ed. São Paulo:Hucitec. 1995.

            Raul Machado HORTA. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995

            Hans KELSEN. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

            J. H. MEIRELLES TEIXEIRA. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Forense Universitária, 1991.

            Clèmerson Merlin CLÈVE. Atividade legislativa do poder executivo no estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: RT. 1993.

            Luiz Odorico MONTEIRO DE ANDRADE. SUS passo a passo. São Paulo, Sobral: HUCITEC, UVA. 2001.

            Eliana Aparecida Silva de MORAES. O poder regulamentar e as competências normativas conferidas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária in Revista de Direito Sanitário. São Paulo: LTR. Mar/2001.

            Sebastião Botto de Barros TOJAL. O direito regulatório do Estado Social e as normas legais de saúde pública in O Direito Sanitário na Constituição brasileira de 1988: normatividade, garantias e seguridade social. Brasília, 1994.

 

 

 

*Procurado Federal Especializado- INSS, Professor de Teoria da Constituição e História do Direito no Centro Universitário do Pará - CESUPA,Mestre em Direito Público- UFPA;

 

 

Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5420 >. Acesso em: 27/03/07