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Douglas Policarpo*
PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil Constitucional – dignidade afetiva
– direito à sucessão – reconhecimento de paternidade.
RESUMO: Com o advento da Constituição de 1988, foram
introduzidos novos elementos do direito civil brasileiro, os quais romperam com
o sistema patrimonialista até então vigente, possibilitando uma aproximação
maior com a realidade, principalmente no caso de reconhecimento de paternidade
extemporânea, quando o afeto, o carinho e a convivência mútua já estão
sedimentadas.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Código Civil e a proteção do bem
material; 2. A Constituição e a introdução de valores sentimentais no direito
de família; 3. O papel do afeto no conceito de família; 4. Família e dignidade
da pessoa humana; Conclusão: a) pela manutenção da filiação sócio-afetiva e a
desconsideração da filiação genética para fins jurídicos; b) pela possibilidade
da filiação sócio-afetiva participar da sucessão como herdeiro legítimo e sua
conseqüente exclusão da sucessão por filiação biológica; c) a responsabilização
dos bens da paternidade biológica por danos causados pelo abandono afetivo; e;
Referências.
INTRODUÇÃO
Pelas
mudanças sociais ocorridas nos últimos tempos, as quais têm refletido
sobremaneira no direito de família, o ordenamento jurídico pátrio houve por bem
abraçar e introduzir novos valores, muitos dos quais abstratos, como o afeto, o
amor, a felicidade, possíveis, agora, principalmente, pela constitucionalização
da família, o que veio a prestigiar o indivíduo como ser sentimental,
desvinculando-se das amarras legalistas e objetivas do homem como bem material.
Nesse
sentido, temos visto o surgimento de decisões nos tribunais, em direito de
família, valorando esses atributos abstratos, fundamentando-os nos princípios
constitucionais e na dignidade da pessoa humana, dizendo o direito àqueles
casos em concreto, embora um tanto quanto cautelosas com as rápidas mudanças
sociais.
A
vida nos tem mostrado que nos casos de reconhecimento de paternidade tardia,
quando o filho, por muitos anos, já houvera sido inserido em autêntica família,
onde lhe constam as figuras da formação clássica, tais como mãe, pai, irmãos,
avós, etc., o filho biológico se mostra, na maioria das vezes, avesso à
substituição das antigas figuras construídas pelo afeto, pelas agora
reconhecidas judicialmente.
Corroborado
a isso, há nítido bloqueio de construção de qualquer sentimento afetivo por
parte do reconhecido, tendo em vista os próprios valores sociais e cristãos da
família, onde há somente um pai, uma mãe. Somado a isso, é verificada a
incompreensão dos motivos que resultaram no reconhecimento tardio da filiação.
E o mesmo se dá em relação ao pai ou mãe reconhecidos que, menos, mas também,
acabam por não conseguir gerar sentimentos fraternais para com o filho
reconhecido, tendo em vista a não participação de toda a sua formação. Não
houve convivência. Sem contar com a temerária desagregação de sua família de
origem.
Partindo
dessas proposições, procuraremos demonstrar a desarmonia entre o atual direito
da sucessão legal, inserido no direito de família, e o reconhecimento da
paternidade extemporânea, o qual valoriza o sentimento.
O CÓDIGO CIVIL E A PROTEÇÃO DO BEM
MATERIAL
O
desenvolvimento da indústria e do comércio, resultado do crescimento
populacional acelerado do século XIX, teve como uma de suas conseqüências o
acúmulo de riquezas para uma recém surgida classe social que exigia do Estado
segurança e proteção para seus bens.
Nesse
contexto, reclamou-se a queda do absolutismo monárquico e o florescimento da doutrina
liberal, a qual vislumbrou na propriedade individual, concebida como direito
subjetivo por excelência, a garantia da pessoa contra os abusos do poder
político.
No
caso do Brasil, vimos o Código Civil como seguimento de ideais individualistas
e voluntaristas que, consagradas pelo Código de Napoleão, foram incorporadas
pelas codificações do século XIX. Embora em vigor a partir de 1º de janeiro de
1917, o projeto do Código Civil brasileiro foi elaborado por Clóvis Bevilaqua
em 1889, no mesmo rumo, portanto, do movimento legislativo que caracterizou o
século XIX. (Tepedino, 2006, p. 22).
Na
esteira dos movimentos legislativos, temos a plenitude da força dos códigos,
não se permitindo qualquer distanciamento de sua letra, uma vez que ela é
completa e absoluta, abarcando caso a caso os fatos da vida real.
Como
se sabe, a Escola da Exegese, re-elaborando o princípio da completude de antiga
tradição romana medieval, levou às últimas conseqüências o mito do monopólio
estatal da produção legislativa, de tal sorte que o direito codificado esgotava
o fenômeno jurídico, em todas as suas manifestações. Assinalou-se o fetichismo
da lei e, mais ainda, o fetichismo do Código Civil para as relações
de direito privado [...]. (Tepedino, 2006, p. 24).
Ao
direito privado estava configurado o Código Civil como seu ordenamento maior. A
ele cumpriria garantir a atividade privada e em particular ao sujeito de
direito, a estabilidade proporcionada por regras quase imutáveis nas suas
relações econômicas que refletiram em todos os rumos do direito privado,
inclusive no direito de família.
A
valorização do aspecto patrimonial da vida pode ser percebida com facilidade, o
que é possível com a leitura do referido diploma legal, especialmente na parte
que trata do Direito de Família. Os artigos, em sua maioria, dizem respeito ao
patrimônio da família, de forma direta ou indireta. Uma rápida análise mostra
que a preocupação do legislador foi maior no que diz respeito à proteção da
entidade familiar e do patrimônio que a acompanhava. A ampla proteção ao
aspecto da legitimidade da união e dos filhos nela nascidos demonstra que,
embora liberal, o Estado conduziu à proteção de um aspecto por ele considerado
relevante: o patrimonial. (Carbonera, 2000, p. 294).
Nesse
universo, o da liberdade e autonomia privada, era o Código Civil que fazia às
vezes de Constituição, estabelecendo as diretrizes e propiciando, através
delas, plena liberdade àquele que representava o valor fundamental da época
liberal: o indivíduo livre e igual, submetido apenas à sua própria vontade.
(Moraes, 2003, p. 102-103).
Porém,
enfatizando a preocupação do liberalismo tão-somente com o patrimônio,
verificamos que antes do período legalista do direito, havia possibilidade de
reconhecimento de filhos incestuosos ou adulterinos. No entanto, tal
acontecimento foi proibido, tendo em vista o valor do bem material, da
propriedade, em detrimento da pessoa.
No
período colonial, filhos naturais tinham o mesmo direito dos legítimos. Os
ilegítimos, oriundos de relações incestuosas ou do adultério, podiam ser
reconhecidos com uma permissão especial do rei. Mas, durante o século XIX e com
o início da preocupação com o destino das propriedades familiares, medidas
consideradas liberais começaram a ser tomadas, praticamente impossibilitando os
pais de reconhecerem seus filhos ilegítimos. Apesar de argumentarem que essas
leis eram importantes para manter a paz das famílias, a ordem e a moralidade
pública, no fundo era a garantia da propriedade que interessava. (Grinberg,
2001, p. 46).
Destarte,
fica claro o direcionamento legislativo para a propriedade e, por ilação, a
justificativa de qual a razão somente os filhos legítimos faziam parte daquela
unidade familiar de produção. Em conseqüência, entre a verdade jurídica e a
social poderia não existir correspondência.
Porém
o conteúdo dessa família não se esgotava nas noções de patriarcado, hierarquia,
matrimonialização e manutenção do vínculo. O aspecto patrimonial também se
destacava. A constituição e a proteção do patrimônio na esfera familiar têm sua
importância revelada com a análise dos dispositivos legais do Código Civil brasileiro,
especialmente no que diz respeito às formas de regime de bens ou, ainda, à
necessidade de outorga para a alienação de bens imóveis, cuja propriedade é de
pessoa casada. (Carbonera, 2000, p. 281-282).
Relativamente
à família, verificamos que o Código Civil, tanto o de 1916 e um pouco menos o
de 2002, fez clara opção pelo ter, pela propriedade, colocando o ser
em posição inferior, ou quase que não lhe atribuindo valores ou cuidados,
seguindo a tendência observada em muitos dos Códigos Civis vigentes à época,
inclusive o Código Civil brasileiro.
Desta
forma, ainda vemos recentes decisões que enfatizam a desigualdade entre os
filhos, relegando o afeto existente entre as pessoas, apoiando-se em conceitos
materialistas:
ANULAÇÃO.
PARTILHA. HERDEIRO ADOTIVO PRETERIDO. A questão consiste em saber se a filha
adotada sob a antiga redação do art. 377 do CC/1916 (que excluía dos direitos
sucessórios o filho adotado quando o adotante tivesse filhos legítimos) tem
direitos na partilha em que a de cujus faleceu quando em vigor a
CF/1988. Ressaltou o Min. Relator que, após a CF/1988, não mais se tolera
qualquer distinção entre filhos havidos ou não do casamento ou por adoção.
Outrossim, não há alteração do pedido ou causa de pedir com a inclusão, no pólo
passivo da demanda, de novas pessoas, maridos e esposas dos réus originalmente
nominados na inicial. Quanto à prescrição, considerou-a vintenária como
decidido e consagrado na jurisprudência assente. Note-se que o Tribunal a
quo julgou válida a anulação da partilha, pois a herdeira não participou
do inventário, inexistindo coisa julgada contra ela, deixou, contudo, incólumes
as doações efetivadas antes da nova constituição. A Turma não conheceu do
recurso, pois não houve violação do art. 377 do CC/ 1916 nem do art. 6º da
LICC. Precedentes citados: REsp 32.853-SP, DJ 27/5/1993, e REsp 114.310-SP , DJ
17/2/2003. REsp 260.079-SP, Rel. Min. Fernando
Gonçalves, julgado em 17/5/2005. (g.n.)
Noutro
lugar, Pietro Perlingieri (1997, p. 4), relata a influência francesa recebida
pelo Código Civil italiano, asseverando que o diploma de 1865,
"caracterizava-se especialmente por colocar no centro do ordenamento a
propriedade imobiliária da terra: na manutenção e no incremento desta, é
predominantemente inspirada a disciplina da família e das sucessões causa
mortis.".
Ainda,
cabe a colocação de Michelle Perrot, quanto ao caráter patrimonialista da
própria constituição familiar: "[...] a família, como rede de pessoas e
conjunto de bens, é um nome, um sangue, um patrimônio material e simbólico,
herdado e transmitido. A família é um fluxo de propriedades que dependem
primeiramente da lei". (Funções da família in. História da vida
privada: da revolução francesa à primeira guerra. São Paulo: Companhia da
Letras, 1991, v.4, p. 105, apud Carbonera, 2000, p. 282)
Por
fim, temos que o atual Código Civil seguiu as linhas mestras do Código
anterior. E não poderia ser diferente. Como regra disciplinadora e ordenadora
por natureza das relações privadas, possui em sua essência regras eminentemente
patrimonialistas que, visam dar proteção aos bens e, em direito de família,
visa a manutenção e transmissão desses aos seus herdeiros.
De
qualquer sorte, viu-se com altivez no século XX uma intensificação de processo
intervencionista chamado de constitucionalismo, o qual acabou por subtrair do
Código Civil inteiro setores da atividade privada, mediante um conjunto de
normas que não se limita a regular aspectos especiais de certas matérias,
disciplinando-as integralmente.
O
processo de que se fala é finalmente consagrado, no Brasil, pela Carta
Constitucional de 1988, a qual inaugura uma nova fase e um novo papel para o
Código Civil, a ser valorado e interpretado juntamente com inúmeros diplomas
setoriais, cada um deles com vocação universalizante. (Tepedino, 2006, p. 29).
Agora,
o operador do direito trabalha com princípios constitucionais, como normas
jurídicas privilegiadas para a reunificação do sistema interpretativo,
evitando, assim, as antinomias provocadas por núcleos normativos díspares,
correspondentes a lógicas setoriais nem sempre coerentes.
Por
outro lado, o legislador especial, por mais frenética que seja a sua atividade
legiferante, não consegue atender à torrente de novas situações geradas no seio
da realidade econômica, situação agravada pelo envelhecimento do Código Civil,
sendo fundamental, por isso mesmo, que possa o magistrado decidir os conflitos
atinentes às situações não ainda regulamentadas, com base nos valores
constitucionais. (Tepedino, 2006, p. 32).
Dessa
forma, o Código Civil perde, definitivamente, o seu papel de Constituição do
direito privado. Os textos constitucionais, paulatinamente, definem princípios
relacionados a temas antes reservados exclusivamente ao Código Civil e ao
império da vontade: a função social da propriedade, os limites da atividade
econômica, a organização da família, matérias típicas do direito privado,
passam a integrar uma nova ordem pública constitucional.
Por
conseguinte, o próprio direito civil, através da legislação extra-codificada,
desloca sua preocupação central, que já não se volta tanto para o indivíduo,
senão para as atividades por ele desenvolvidas e os riscos delas decorrentes.
(Tepedino, 2006, p. 28).
A CONSTITUIÇÃO E A INTRODUÇÃO DE
VALORES SENTIMENTAIS NO DIREITO DE FAMÍLIA
Com
o processo de urbanização, os costumes foram sendo substituídos e a grande
prole deu lugar a um número cada vez mais reduzido de filhos. Além disso, houve
a possibilidade de maior convívio entre estes e os pais, dando margem a um
relacionamento mais próximo, pautado na preocupação de um membro da família com
os demais, permitindo a abertura de espaço para o afeto, bem como indicando um
início de modificação no modelo tradicional de família. Desta forma, o
enxugamento da família acabou contribuindo para que ela pudesse se tornar uma
comunidade mais coesa, com maior proximidade entre seus membros. (Carbonera,
2000, p. 283).
Corroborando
com essa mudança social, a Constituição de 5 de outubro de 1988, inaugura uma
nova fase do direito civil, alterando, sobremaneira, a base da direito de
família, que, abandonando seu caráter privado-patrimonislista, passa a atender,
a buscar e satisfazer anseios da pessoa, como membro inerente da família.
Na
outra face, vê-se que o texto Constitucional, sem limitar as relações privadas
e civilísticas, dá maior eficácia aos institutos codificados, revitalizando-os,
mediante nova tábua axiológica. É a constitucionalização do direito civil.
[...]
enquanto o Código dá prevalência e precedência às situações patrimoniais, no
novo sistema de Direito Civil fundado pela Constituição a prevalência é de ser
atribuída à situações existenciais, ou não patrimoniais, porque à pessoa humana
deve o ordenamento jurídico inteiro, e o ordenamento civil em particular, dar a
garantia e a tutela prioritárias. Por isto, neste novo sistema, passa a ser
tuteladas, com prioridades, as pessoas das crianças, dos adolescentes, dos
idosos, dos consumidores, dos não-proprietários, dos contratantes em situação de
inferioridade, dos membros da família, das vítimas de acidentes anônimas.
(Moraes, 1998, p. 127).
Como
visto anteriormente, o Direito Civil, em seu facho família, acabava por
prejudicar a pessoa, em seu subjetivismo existencial, em lugar de proteger. A
Constituição da República cuidou de alterar isto ao estabelecer a igualdade de
filhos de qualquer origem. Finalmente a relação pais e filhos, ingressou de
forma plena no terreno da igualdade jurídica, campo onde se torna possível a
valorização das pessoas e de seus sentimentos.
Neste
ponto é importante observar que, embora anteriormente pudesse existir vontade
do genitor para o reconhecimento do filho ilegítimo, motivado seja por questão
de consciência ou por afeto, a proibição jurídica imperou por tempo
significativo. Com o abrandamento do rigor legal, a esfera do desejo pessoal e
do sentimento aumentou e o afeto definitivamente ganhou espaço nas relações
paterno-filiais. (Carbonera, 2000, p. 288-289).
Utilizando-se,
como exemplo do instituto do casamento, o qual se aproveita plenamente no foco
de nosso trabalho, vemos inconcebível atribuir à lei jurídica a determinação de
afeto entre pessoas e, por conseqüência a família, requisito inerente da
afinidade e aproximação sentimental, mas o Direito tão-somente intervém para
regular socialmente esses efeitos humanos decorrente da união, declarando as
relações que surgem da constituição do ente social que se formou.
Desta
maneira, o afeto e a família são comumente referidos como dados, como fatos,
embora sejam abstrações de difícil determinação. Ambos estão presentes em todos
os momentos de nossa vida, e, especificamente com relação ao afeto, é preciso
lembrar que não diz respeito apenas àquilo que denominamos de "amor",
mas, sim, a todos os sentimentos que nos unem.
Silvana
Maria Carbonera, destaca o panorama buscado pelo conceito de família, protegida
pela Constituição Federal:
A
família ganhou dimensões significativas e um elemento que anteriormente estava
à sombra: o sentimento. E, com ele, a noção de afeto, tomada como um elemento
propulsor da relação familiar, revelador do desejo de estar junto a outra
pessoa ou pessoas, se fez presente. Diante disto, o Direito paulatinamente
curvou-se e demonstrou, através da legislação e da jurisprudência, a
preocupação com este "novo" elemento, mesmo que inicialmente de forma
indireta. (2000, p. 286).
Neste
sentido, quando finalmente rompemos com as definições biológicas e formas de
família, concebendo a mesma como uma comunidade de afeto, a abstração dos
termos nos leva a buscar elementos identificáveis nas práticas e na simbologia
dos grupos sociais, que nos permitem reconhecer relacionamentos que possam ser
nomeados de "família sócio-afetiva".
Se
anteriormente as relações de família estavam impregnadas com a noção de
legitimidade, com o passar do tempo pode se observar a contestação jurídica de
extensão. Filhos ilegítimos passaram a ingressa na esfera da família jurídica.
Primeiro aqueles designados de naturais, em razão de terem sido concebidos por
pessoas não casadas e sem impedimento para tanto. Depois os adulterinos, após a
dissolução da sociedade conjugal do genitor. Finalmente aos incestuosos foi
aberto o acesso à filiação jurídica, consagrada de forma expressa pela Lei
7.841/89, que pôs fim expressamente à vedação de seu reconhecimento, derradeiro
resquício da proibição. (Carbonera, 2000, p. 288).
A
interposição de princípios constitucionais nas vicissitudes das situações
jurídicas subjetivas significa uma alteração valorativa do próprio conceito de
ordem pública, tendo na dignidade da pessoa humana o valor maior, posto ao
ápice do ordenamento. Se a proteção aos valores existênciais configura momento
culminante da nova ordem pública instaurada pela Constituição, não poderá haver
situação jurídica subjetiva que não esteja comprometida com a realização do
programa constitucional. (Tepedino, 2006, p. 42).
[...]
promover um "direito judicial dos princípios constitucionais do direitos
de família". A aplicação dos preceitos constitucionais deveria ser feita
com habilidade e, sobretudo, com a ousadia necessária a todos os que operam o
direito de forma não dissociada da realidade. Isto somente pode ser feito se o
operador do direito se mantiver atento às transformações sociais e seus efeitos
na esfera jurídica. (Carbonera, 2000, p.275).
De
fato, quando a atual Constituição da Federal estabelece com fundamento da
República a dignidade da pessoa humana e por alcance o afeto, o sentimento do
ser humano, o constituinte opta por superar a individualismo, ou seja, a
concepção abstrata do homem, que marcou o tecido normativo codificado, passando
a eleger a pessoa, na sua dimensão humana, como centro da tutela do ordenamento
jurídico.
O PAPEL DO AFETO NO CONCEITO DE
FAMÍLIA
A
moderna concepção jurídica de família, gradativamente construída, deslocou-se
do aspecto desigual, formal e patrimonial para o aspecto pessoal e
igualitários. Como conseqüência, a importância dos interesses individuais dos
sujeitos da família, isto é, da busca da felicidade como mola propulsora,
provocou a valorização da vários elementos anteriormente secundários, dentre os
quais se encontra a afetividade.
Com
a valorização das pessoas, seus interesses também o foram. Desta forma, os
anseios relacionados a uma família construída sobre novos parâmetros se fizeram
sentir e receberam ampla proteção constitucional, tendo a dignidade e a
igualdade como princípios orientadores, assim como a possibilidade de tentar
tantas vezes quantas forem necessárias a formação de uma família feliz.
Lembramos
que o papel do afeto é constitutivo das relações interpessoais que formam a
família. As pessoas se unem ou se separam em razão do afeto. Assim, sua
existência deve importar principalmente àquele que estão nelas interessados.
Nesse
contexto, o afeto deve ocupar lugar de destaque e merece maior atenção da área
jurídica, pois como bem coloca Maria Berenice Dias, "[...] amplo é o
espectro do afeto, mola propulsora do mundo e que fatalmente acaba por gerar
conseqüências que necessitam se integrar ao sistema normativo legal".
(Carbonera, 2000, p. 277).
Tal
preocupação já pode ser localizada na doutrina que trata das atuais tendências
do Direito de Família, onde o afeto já ocupa um lugar significativo, sendo este
um ponto relevante, pois demonstra seu gradativo ingresso na esfera jurídica. A
análise da jurisprudência também indica que, neste ponto, os julgadores já
estão cientes do valor do afeto nas relações de família. Da mesma forma, a
preocupação com o aspecto afetivo também já se faz sentir na legislação.
(Carbonera, 2000, p. 277-278).
A
adequação feita pela Carta Constitucional acabou revelando novos contornos
jurídicos da família contemporânea. Baseada nos desejos de seus membros em
satisfazer seus interesses de realização afetiva e crescimento pessoal, a noção
de família foi ampliada e a proteção a todas as entidades familiares produziu
efeitos benéficos há muito desejados.
Ademais,
com a instalação da igualdade e da liberdade na família, o vínculo jurídico
passou a ceder parte de seu espaço à verdade sócio-afetiva. Felicidade e afeto
demarcaram seu espaço na noção jurídica de família em todas as esferas, a
exemplo do que há havia acontecido na realidade sócia. "Da família
matrimonializada por contrato chegou-se à família informal, precisamente porque
afeto não é um dever de coabitação uma opção, um ato de liberdade. Da margem
para o centro: os interesses dos filhos, qualquer que seja a natureza da
filiação, restam prioritariamente considerados."(Fachin, 1996, p. 98).
Assim,
a família contemporânea é tomada como a "comunidade de afecto e
entre-ajuda", espaço onde as aptidões naturais podem ser potencializadas e
sua continuidade só encontra respaldo na existência do afeto. (Oliveira; Muniz,
1990, p. 11).
É
a família eudemonista, pois traduz o meio onde "acentuam-se as relações de
sentimento entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da
família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra a agitação da
vida nas grandes cidades e das pressões econômicas e sociais" (Oliveira;
Muniz, 1990, p. 54).
A
preocupação procede, uma vez que o afeto é um elemento indispensável para a
formação da pessoa. Isto redundou no fato de que, embora continuem existindo
famílias nos moldes patriarcais, a recepção de outras formas abriu espaço para
famílias fundadas no afeto e no desejo de estar junto, forma uma comunhão de
vida e fazendo com que este seja seu elemento central.
Mas
só podem conviver pessoas que têm afeição e respeito mútuo, sendo ambos
necessários para a continuidade da relação familiar. Somente a existência do
afeto faz com que pessoas restrinjam sua esfera de liberdade, renunciando a
determinados desejos, para que outras também possam crescer e se desenvolver,
pois o desenvolvimento de uma produz efeitos benéficos a todas. Em que pese
soar estranho tratar de renúncia ou restrição a liberdade ao mesmo tempo em que
se fala de dignidade e igualdade, somente podem ser dignas e iguais as pessoas
que respeitam as outras, e isto acontece de forma voluntária quando se unem em
virtude do afeto. Se assim não fosse, certamente não estaríamos falando de
família, onde as pessoas decidem permanecer unidas por vontade própria,
buscando a realização própria e dos demais, respeitando a esfera da dignidade e
da liberdade de cada sujeito. (Carbonera, 2000, p. 296).
O
aspecto sócio-afetivo do estabelecimento da filiação, baseado no comportamento
das pessoas que a integram, revela que talvez o aspecto aparentemente mais
incerto, o afeto, em muitos casos é o mais hábil para revelar quem efetivamente
são os pais. A incerteza presente na posse de estado de filho questiona
fortemente a certeza da tecnologia. Ademais a verdadeira paternidade decorre
mias de amar e servir do que de fornecer material genético. (Carbonera, 2000,
p. 304).
São
certeiras as palavras de Eduardo de Oliveira Leite (1994, p. 120): "[...]
se posso obrigar alguém a responder patrimonialmente pela sua conduta
(alimentos ao filho) não posso obrigar, quem quer que seja, a assumir uma paternidade
que não deseja.
Não
se pode ignorar: ao mesmo tempo em que se torna possível conhecer a origem
genética pela tecnologia, o afeto também ganha espaço e contornos jurídicos,
revelando os pais do coração. Como bem aduz João Baptista Villela, o aspecto
biológico cede espaço ao comportamento. A figura paterna é reconhecida pelo
amor, desvelo e serviço com que se entrega ao bem da criança. Verdade e
mentiras, noções relativas que se revelam conforme o momento e o enfoque
apresentado. (Carbonera, 2000, p. 304-305).
Desta
forma, a construção de um novo sistema de filiação emerge como imperativa,
posto que a alteração da concepção jurídica de família conduz necessariamente à
mudança da ordenação jurídica da filiação (Carbonera, 2000, p. 305), e o afeto,
neste sentido, deve ocupar lugar de destaque. .
A
doutrina tem se dedicado a estudar o afeto nas relações familiares, inclusive
elevando-o ao patamar de princípio da afetividade, advogando a idéia de que:
O
princípio da afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de
princípio, em fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita
aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva
superação dos fatores de discriminação, entre eles. Projetou-se, no campo
jurídico constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social
fundado essencialmente nos laços de afetividade. (Lobo, 2004, p. 1).
Ainda,
A
igualdade entre filhos biológicos e adotivos implodiu o fundamento da filiação
na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou mãe e
seus filhos, eleva-os à mesma dignidade da família matrimonializada. O que há
de comum nessa concepção plural de família e filiação é a relação entre eles
fundada no afeto. (Lobo, 2004, p. 1).
Assim,
estamos diante da valorização da pessoa na família, em sentido diverso do
encontrado no Código Civil brasileiro, nitidamente transpessoal. Esta
valorização está coerente com as linhas gerais da Constituição Federal, uma vez
que o artigo 1º, III, consagra como fundamento da República Federativa do
Brasil a dignidade da pessoa humana.
Neste
sentido, a proteção à pessoa, recebendo status constitucional, deve ser princípio
orientador no seu tratamento em todas as esferas. A proteção aos componentes da
família não constitui exceção à regra, o que conduz à sua priorização em
relação ao grupo.
FAMÍLIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
É
importante consolidar a noção de família como uma comunidade, constituída em
razão da vontade, onde as pessoas buscam a realização pessoal própria e
daqueles que a cercam.
Como
dito acima, o afeto, que começou como um sentimento unicamente interessante
para aqueles que o sentiam, passou a ter importância externa e ingressou no
meio jurídico. Possui, mais do que nunca, extremo valor jurídico nas relações
familiares, sendo instrumentalizado pelo princípio da dignidade da pessoa
humana, constitucionalmente garantido (CF, art. 1º, III).
Cabe
a nós destacarmos a importância do princípio da dignidade da pessoa humana,
tendo em vista, entre outros, pela intimidade existente com o direito de
família constitucionalizado. Tal princípio exerce importante função instrumental
integradora e hermenêutica na ordem jurídica como um todo e, especialmente, no
direito de família como veremos.
[...]
na medida em que serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração
não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas
de todo o ordenamento jurídico. De modo todo especial, o princípio da dignidade
da pessoa humana [...] acaba por servir de referencial inarredável no âmbito da
indispensável hierarquização axiológica inerente ao processo
hermenêutico-sistemático. (Sarlet, 2002, p. 83).
Constata-se,
pois, um importante papel do princípio da dignidade da pessoa humana, inclusive
nas relações intersubjetivas. O critério hermenêutico, servindo como fundamento
basilar para solução de algumas questões controvertidas.
Dentre
as funções exercidas pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana,
destaca-se, pela sua magnitude, o fato de ser, simultaneamente, elemento que
confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem
constitucional. Confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática
ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na dignidade da
pessoa humana. (Sarlet, 2002, p. 79).
Ainda,
possui caráter cogente, comparado em importância e abrangência ao direito à
vida, precedendo ambos aos demais princípios capitulados no caput do
art. 5º. Não é admissível o direito à vida dissociado da dignidade sem o
comprometimento do Estado de Direito. Porém, o direito à vida encontra exceção,
art. 5º, inciso XLVII, alínea "a", onde a pena de morte é permitida
em caso de guerra declarada, não cabendo exceção à dignidade. (Nascimento,
2004, p. 15).
Desse
modo, entendemos que cabe ao poder público não apenas se abster de violar a
dignidade de cada uma das pessoas, mas também atuar positivamente no sentido de
efetivar e proteger a dignidade de cada um e, conseqüentemente, de todos os
particulares. Nesse sentido, como já destacado e argumentado acima, há a função
legislativa que deve ser exercida e preenchida com o fito de construir uma
ordem jurídica que permita a efetiva implementação da dignidade da pessoa
humana.
A
dignidade constitui a um só tempo pressuposto e condição para que se viva em
sociedade, e exige limitação ao poder de toda autoridade ou mesmo pessoa de
atingi-la ou desrespeitá-la, ainda que a pretexto de zelar pelo bem estar de
todos.
A
dignidade da pessoa humana, na perspectiva das relações intersubjetivas cria
dever geral de respeito pela pessoa (como valor intrínseco), consistente num
conjunto de deveres e direitos recíprocos, de natureza material, voltados ao
resguardo e à promoção dos bens indispensáveis ao desenvolvimento da pessoa
humana. A dignidade da pessoa humana, também vista sob o enfoque das relações
intersubjetivas, merece ser reconhecida e devidamente tutelada pela ordem
jurídica na perspectiva de igual respeito e igual consideração de toda pessoa
humana, tanto pelo Estado, como pela sociedade. Desse modo, imprescindível se
faz compreender a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva inter-relacional
e comunicativa, "constituindo uma categoria de co-humanidade de cada
indivíduo (Mitmenschilichkeit dês individuums), de tal sorte que, na
esteira da lição de Peter Haberle, a consideração e reconhecimento recíproco da
dignidade pode ser definida como uma espécie de ‘ponte dogmática’, ligando os
indivíduos entre si". (Gama, 2003, p. 145-146).
Destarte,
acreditamos que a Constituição elevou a dignidade da pessoa humana e o
desenvolvimento da sua personalidade ao posto máximo do ordenamento jurídico,
constituindo opção metodológica oposta a do individualismo das codificações.
A
pessoa humana, no que se difere diametralmente da concepção jurídica de
indivíduo, há de ser apreciada a partir da sua inserção no meio social, no
âmbito de sua convivência e desenvolvimento pessoal, que é no seio da família
em que vive.
Por
outro lado, tampouco há que se falar apenas em "direitos"
(subjetivos) da personalidade, mesmo se atípicos, porque a personalidade humana
não se realiza somente através de direitos subjetivos, mas sim através de uma
complexidade de situações jurídicas subjetivas, que podem se apresentar, sob as
mais diversas configurações: como poder jurídico, como direito potestativo,
como interesse legítimo, pretensão, autoridade parental, faculdade, ônus,
estado – enfim, como qualquer circunstância juridicamente relevante. (Moraes,
2003, p.118).
Daí
sustentar-se que a personalidade humana é valor, um valor unitário e
tendencialmente sem limitações. Assim, não se poderá, com efeito, negar tutela
a quem requeira garantia sobre um aspecto de sua existência para o qual não
haja previsão específica, pois aquele interesse tem relevância ao nível do
ordenamento constitucional e, portanto, também em via judicial. Eis aí a razão
pela qual as hipóteses de dano moral são tão freqüentes, porque a sua reparação
está posta para a pessoa como um todo, sendo tutelado o valor da personalidade
humana. Os direitos das pessoas estão, assim, todos eles, garantidos pelo
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e vêm a ser
concretamente protegidos pela cláusula geral de tutela da pessoa humana. Em seu
cerne encontram-se a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a
solidariedade. Nesse sentido, deve-se inibir ou reparar, em todos os seus
desdobramentos, a conformação de tratamentos desiguais – sem descurar da injustiça
consubstanciada no tratamento idêntico aos que são desiguais [...]. A cláusula
geral visa proteger a pessoa em suas múltiplas características, naquilo
"que lhe é próprio", aspectos que se recompõem na consubstanciação de
sua dignidade, valor reunificador da personalidade a ser tutelada. Assim,
cumpre reconhecer que, evidentemente, também se abrigam sob o seu manto os
demais direitos que se relacionam com a personalidade, alguns deles descritos
pelo próprio legislador constituinte no artigo 5º da Constituição Federal.
(Moraes, 2003, p.127-128).
Visto
que a dignidade está intimamente ligada à vida e à liberdade, como regra geral
daí decorrente, pode-se dizer que, em todas as relações privadas, inclusive nas
relativas à família, nas quais venha a ocorrer um conflito entre uma situação
jurídica subjetiva existencial e uma situação jurídica patrimonial, entendemos,
juntamente com Maria Celina Bodin de Moraes, (2003, p.120) que a primeira
deverá prevalecer em todos os aspectos, obedecidos, assim, os princípios
constitucionais que estabelecem a dignidade da pessoa humana como o valor
cardeal do sistema.
CONCLUSÃO
O
dinamismo social implica em freqüentes e corriqueiras adaptações do ordenamento
jurídico aos fatos da vida. No entanto, tais alterações, devido à grande
velocidade em que elas ocorrem, não são automáticas. Cabe, assim, aos
operadores do Direito acomodar esses novos valores sociais reais, à norma em
abstrato.
O
sistema jurídico como um todo tem a função de possibilitar sejam reconhecidos
fatos em contextos sociais, contextos nos quais ocorrem as relações entre as
pessoas, seres humanos fundamentalmente organizados para viverem uns em meios a
outros.
Dessa
forma, o direito de família, por tratar diretamente com os autores dos fatos
sociais, tem se voltado inteiramente para um subjetivismo integrador das
atividades sentimentais, emocionais e porque não volitivas dessas relações. Tal
fato somente pôde ocorrer após a constitucionalização do direito de família.
Neste
sentido, formando-se uma família que respeite a dignidade de seus membros, a
igualdade nas relações entre eles, a liberdade necessária ao crescimento
individual e a prevalência das relações de afeto entre todos, ao operador
jurídico resta acatar e reconhecer os fatos humanos.
Considerando
o panorama da problemática trazida à análise e nas apresentadas linhas acima,
relativamente ao reconhecimento da paternidade biológica extemporânea ou
tardia, concebendo esta nos casos em que já houve a construção da personalidade
e dos valores humanos em pessoa inserida em autêntica família, onde lhe constem
as figuras da formação familiar clássica, tais como mãe, pai, irmãos, avós,
etc.,
Ainda,
atendendo ao fato de que o filho biológico se mostra, na maioria das vezes,
avesso à substituição das antigas figuras construídas pelo afeto, pelas pessoas
agora reconhecidas judicialmente, o que acarreta evidente bloqueio de
construção de qualquer sentimento afetivo por parte do reconhecido, tendo em
vista os próprios valores sociais e cristãos da família; a incompreensão dos
motivos que resultaram no reconhecimento tardio da filiação. E o mesmo se dá em
relação ao pai ou mãe reconhecidos, vez que não houve convivência entre esses sujeitos.
Acabamos
por concluir os seguintes pontos:
a)
pela manutenção da filiação sócio-afetiva e a desconsideração da filiação
genética para fins jurídicos
A
noção de afeto, como um elemento concreto a ser considerado nas relações de
família, foi ingressando gradativamente no jurídico, assim como outras tantas:
liberdade, igualdade, solidariedade. Isto se deve às transformações pelas quais
ela passou, especialmente quanto ao deslocamento do centro de preocupações: da instituição
família para aqueles que a compõem.
A
partir do momento em que o sujeito passou a ocupar uma posição central, era
esperado que novos elementos ingressassem na esfera jurídica. E foi o que se
observou com relação ao afeto.
A
vontade de estar de permanecer junto a outra pessoa revelou-se um elemento de
grande importância tanto na constituição de uma família, assim como em sua
dissolução. As pessoas passaram a se preocupar mais com o que sentiam do que
com a adequação de seus atos ao modelo jurídico.
Ademais,
o Direito não deve decidir de que forma a família deverá ser constituída ou
quais serão suas motivações juridicamente relevantes. Em se tratando de
relações familiares, seu campo de atuação deve se limitar ao controle da
observação dos princípios orientadores, deixando às pessoas a liberdade quanto
à formação e modo de condução das relações.
O
modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a
família atual não é mais, exclusivamente biológica. A origem biológica era
indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais.
Após o advento constitucional superou-se todas essas amarras, dando-se um salto
na proteção do ser humano e de sua dignidade.
O
afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da
convivência e não do sangue. Como visto, a história do direito civil e do
direito de família e à filiação confunde-se com o destino do patrimônio
familiar, visceralmente ligado à consangüinidade legítima.
A
restauração da primazia da pessoa humana, em detrimento do caráter biológico ou
patrimonial nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à
realidade e aos fundamentos constitucionais.
A
família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas
da humanidade, a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de
vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos
biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte
sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo
prevalecimento de interesses patrimoniais.
Aí
observamos, na história do direito de família, na medida da redução da
patrimonialização, a progressiva valorização do indivíduo como ser humano
sujeito das relações existenciais, que acaba por autorizar, baseado nos
princípio da dignidade da pessoa humana e dos demais princípios
constitucionais, a manutenção do status de filho criado por família não
biológica, desconsiderando por completo o vínculo genético. Somente as
informações genéticas, para fins de saúde e preservação da vida humana, seriam
consideradas e preservadas.
b)
pela possibilidade da filiação sócio-afetiva participar da sucessão como
herdeiro legítimo e sua conseqüente exclusão da sucessão por filiação biológica
Como
examinado, o desenvolvimento científico, que tende a um grau elevadíssimo de
certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais
e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência,
a construção permanente dos laços afetivos. A identidade genética não se
confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações
afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.
Dessa
maneira, entendemos que desde a infância até o final da vida do filho, estará
sendo atendido o conteúdo do art. 227 da CF, o qual prega o dever da família
assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à personalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de
colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível
apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria
família.
Destarte,
estando atendidos os valores humanos abstratos, pela inserção e vivência em
determinada família, mesmo a não biológica, e, novamente baseado no princípio
da dignidade das pessoas humana e os demais princípios constitucionais,
entendemos deva ser autorizada a manutenção do status de legitimidade ao
filho criado por família não biológica, e plenamente possível a legitimação
para a sucessão dos bens de sua família, visto a convivência e eventual
colaboração da construção do patrimônio familiar. Ao revés, cremos estar
impossibilitada a sucessão genética, tendo em vista não fazer parte do conceito
de família, constando-se alheio sentimental e materialmente ao conceito de
família, caso do reconhecimento extemporâneo da filiação.
Por
fim, cabe destacar, mais uma vez que a ausência de regulamentação não pode ser
argumento para não proteção da família. A falta de previsão legislativa para
uma gama de relações não implica em impossibilidade de tutela, que pode ser
prestada através dos diversos mecanismos existentes, fundamentados, dentre outros,
na vida digna do ser humano, com amplamente debatido acima.
c)
a responsabilização dos bens da paternidade biológica por danos causados pelo
abandono afetivo
Temos
que tribunais estão reticente no reconhecimento de danos morais, tendo como
causa o afeto, o sentimento não dispensado nas relações familiares, como
demonstra o julgado abaixo:
AÇÃO.
INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. PAI. FILHO. ABANDONO AFETIVO. A Turma, por maioria,
conheceu do recurso e deu-lhe provimento para afastar a possibilidade de
indenização nos casos de abandono afetivo, como dano passível de indenização.
Entendeu que escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter
um relacionamento afetivo, que nenhuma finalidade positiva seria alcançada com
a indenização pleiteada. Um litígio entre as partes reduziria drasticamente a
esperança do filho de se ver acolhido, ainda que, tardiamente, pelo amor
paterno. O deferimento do pedido não atenderia, ainda, o objetivo de reparação
financeira, porquanto o amparo, nesse sentido, já é providenciado com a pensão
alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já
obtidos com outros meios previstos na legislação civil. REsp 757.411-MG, Rel. Min. Fernando
Gonçalves, julgado em 29/11/2005.
Porém,
entendemos ser totalmente cabível no âmbito do direito de família e autorizado
no atual ordenamento jurídico pátrio, a concessão de pagamento de pecúnia, em
casos que claramente esteja comprovada e não ter sido suprida a necessidade
afetiva do autor, por qualquer outra forma.
A
Constituição prega fundamentalmente o dever da família, e aqui perfeitamente
ela considerada entre genitor(a) e filho, mesmo não vivendo sob o mesmo teto,
assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à personalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de
colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível
apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria
família
Ainda e mais uma vez, deverão propiciar o atendimento do princípio da
dignidade da pessoa humana, assegurando-lhe o melhor desenvolvimento da
personalidade possível.
Logo,
advogamos a idéia de que embora a Lei Maior faça referência expressa à violação
da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, não o vemos
como ordenações taxativas. O que interessa é a circunstância de haver um
princípio geral que estabeleça a reparabilidade do dano moral,
independentemente do prejuízo material. Tal entendimento pode ser melhor
analisado na obra de Eduardo A. Sambrizzi (Daños en el derecho de família.
Buenos Aires: La Ley,
s.d.).
Desta
forma, a incidência desse princípio abrange todas as possibilidades de lesão ao
livre desenvolvimento da pessoa em suas relações sociais, incluindo aquelas de
cunho mais marcadamente patrimonial, mas que também podem trazer efeitos
destrutivos à dignidade, como cremos no caso de reconhecimento de paternidade
extemporânea.
Conclusivamente,
nesses casos entendemos deva ser ignorada a parte sucessória do direito de
família, visto que, embora biologicamente descendente, o filho reconhecido está
alheio ao conceito de família, o que implica na transmutação da reparabilidade
do dano sofrido para o direito das obrigações, tendo tal transcendência, como
pano de fundo, o sentimento de afeto.
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*advogado, especialista em Direito Empresarial e mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino (ITE), bolsista do CAPES
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Acesso em: 08 fev. 2007.