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Marcelo Barbosa Sacramone*
Sumário:1. Introdução. 2. Conceito. 3. Interpretação do negócio
jurídico. 4. Relação entre a vontade e a declaração na simulação. 5. Simulação
absoluta e simulação relativa. 6. Simulação maliciosa e simulação inocente. 7.
Efeitos da simulação no Código Civil de 1916. 8. Efeitos da simulação no Novo
Código Civil. 9. Conclusão. 10. Bibliografia.
1.Introdução
O
Novo Código Civil logrou unificar a matéria obrigacional no direito brasileiro,
o que, longe de constituir uma inovação no direito pátrio, já era tentado sem
sucesso desde 1859 com o Esboço de Código Civil de Teixeira de Freitas.
Os
princípios que regem o tratamento a ser dispensado às relações comerciais e às
relações civis não se apresentam, contudo, de maneira uniforme, o que dificulta
a unificação. A prática reiterada de negócios jurídicos de maneira organizada e
estável pelo empresário cria em torno desta atividade negocial uma lógica
diversa da pautada à realização de um negócio isolado, típico das relações
civis.
Dentre
esses princípios, a segurança e a previsibilidade alcançam extrema relevância
ao desenvolvimento das transações empresariais, em virtude da
"habitualidade, continuidade finalística e coordenação sistemática"
[01], como características que as revestem. A tutela da aparência do
negócio jurídico, assim, emerge como o principal ponto de regulamentação do
direito obrigacional pelo Código Civil de 2002, pondo em relevância, desta
maneira, duas figuras intrinsecamente ligadas: a interpretação e a simulação
dos negócios jurídicos.
2.Conceito
O
termo simulação tem origem no latim simulatio, que significa fingimento,
artifício [02]. Na definição vernacular, simulação significa ato ou
efeito de fingir o que não é; disfarce; fingimento [03].
Juridicamente,
pode-se definir simulação como a aparência de um negócio jurídico contrário à
realidade, destinado a provocar uma ilusão no público, seja por não existir
negócio de fato, seja por existir um negócio diferente daquele que se aparenta
[04]
Quanto
à sua natureza jurídica, as teorias que procuraram conceituar a simulação podem
ser agrupadas em dois grupos principais: a teoria tradicional e a teoria
objetiva.
A
primeira teoria, cujos postulados são dominantes tanto no Brasil quanto
alhures, preconiza uma discordância entre a vontade real e a declaração; as
partes convencionariam uma vontade real desejada, mas emitiriam uma declaração
não conforme a esta, com o intuito de iludir terceiros.
Nesta
acepção se enquadra Beviláqua, para o qual há simulação "quando o ato
existe apenas aparentemente, sob a forma, em que o agente faz entrar nas
relações da vida. É um ato fictício, que encobre e disfarça uma declaração real
da vontade, ou que simula a existência de uma declaração que se não fez. É uma
declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso do
ostensivamente indicado" [05].
No
mesmo sentido se manifesta Ferrara determinando que "aquilo que é mais
característico no negócio simulado é a divergência intencional entre a vontade
e a declaração. A vontade interna e a declaração externa estão conscientemente
em oposição" [06].
As
partes emitem, em suma, de comum acordo, com o intuito de enganar terceiros,
uma declaração divergente da vontade real.
A
teoria objetiva, sustentada mormente por Kohler, por outro lado, preconiza a
existência, no fenômeno simulatório, de duas declarações que se anulam
reciprocamente. Para esta teoria, é inconcebível apregoar a divergência entre a
vontade real e a declaração.
Segundo
esta teoria, não há na simulação qualquer desarmonia entre a ação e a vontade;
a suposta divergência aparente decorre da separação de somente uma parte do
todo da declaração, parte que é levada a conhecimento de terceiros. Mas esta
divergência não existe; o que existe são duas declarações, uma declaração e uma
contra-declaração no mesmo negócio jurídico, as quais se anulariam
reciprocamente [07].
Para
a teoria objetiva, sobre a mesma intenção, duas declarações são emitidas. Uma é
destinada a terceiros, criando a aparência de determinado negócio jurídico e
determinados efeitos típicos que este geraria; a outra fica na esfera exclusiva
de conhecimento dos contratantes, regulando de maneira real os efeitos
estabelecidos pelas partes [08].
A
despeito das particularidades de cada teoria depreende-se que a o pactuado
entre as partes não é o que é manifestado perante terceiros, criando uma
aparência de negócio que não se coaduna com a vontade real de produção de
efeitos dos sujeitos. A regulação sobre o instituto concentra-se assim em
saber, tanto na relação com terceiros quanto entre as partes, qual dos
elementos da simulação deve prevalecer, quais sejam a vontade ou a declaração
aparente [09].
3.Interpretação do negócio jurídico
A
interpretação acerca do fenômeno simulatório, debruçando-se sobre a prevalência
da vontade interna ou da declaração exteriorizada, guarda referência com a
própria evolução do conceito de negócio jurídico.
Savigny,
ao conceituar negócio jurídico, preconiza uma concepção subjetiva em que o
negócio jurídico apresenta-se como uma declaração de vontade com o fim imediato
de constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica. Sua essência reside
na vontade; a declaração apresenta-se como mero meio necessário de
exteriorização desta. Nesse sentido, na divergência entre a vontade e a
declaração, prevaleceria a vontade [10].
No
Brasil, a teoria subjetiva consagrou-se no Código Civil de 1916 que
determinava, em seu artigo 85, que "nas declarações de vontade se atenderá
mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem".
Contrapondo-se
à corrente subjetivista, a teoria objetiva procura sanar a desconfiança e
imprevisibilidade que comprometem a própria fluência das relações, mormente das
relações comerciais, em decorrência do direito tutelar um elemento interno ao
sujeito, sua vontade, em contraposição ao externalizado no meio social – a
declaração.
Sob
essa perspectiva, conceitua Betti que o negócio jurídico transparece como o
"ato de autonomia privada a que o direito liga o nascimento, a modificação
e a extinção das relações jurídicas entre particulares". Para o autor, a
vontade "pertence unicamente ao foro interno da consciência individual.
Somente na medida em que se torna reconhecível no ambiente social, seja como
declaração, seja como comportamento, ela se torna um fato social, suscetível de
interpretação e de avaliação pelas partes. Somente declarações ou
comportamentos são entidades socialmente reconhecíveis e, portanto, próprias
para constituir objeto de interpretação ou instrumento de autonomia privada
(...) Objeto de interpretação não pode ser senão um dado objetivo, uma entidade
reconhecível precisamente no ambiente social" [11].
Dessa
opinião perfilha Azevedo, para quem "a vontade não é elemento do negócio
jurídico; o negócio é somente a declaração de vontade" [12].
Para o autor, "a declaração, uma vez feita, se desprende do iter
volitivo; adquire autonomia, como a obra se solta de seu autor. É da
declaração, e não da vontade, que surgem os efeitos. Tanto é assim que, mesmo
quando uma das partes, em um contrato, muda de idéia, persistem os efeitos
deste" [13].
O
Código Comercial de 1850 consagrava a corrente objetiva em seus artigos 130 e
131. Para o normativo, a interpretação dos contratos e convenções mercantis deveria
ser realizada através dos costumes, da boa fé e do "verdadeiro espírito e
natureza do contrato".
A
boa fé nesse contexto apareceria na sua vertente objetiva, relacionada a
padrões de comportamento dos contratantes de uma determinada localidade e de um
certo tempo, contrapondo-se à boa fé subjetiva, que recairia sobre os aspectos
psicológicos e éticos do indivíduo, algo interior, psíquico do agente. A boa fé
objetiva, por outro lado, seria ligada aos usos e costumes, à regra de conduta
desenvolvida normalmente pelo homem, o que acaba por permitir a previsibilidade
e certeza do comportamento esperado do contratante, garantindo a fluência das
transações no mercado.
O
Novo Código Civil, unificando o direito obrigacional, consagra, em sua Parte
Geral, a boa fé objetiva, conforme a dicção do artigo 113, que determina que
"os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos
do lugar de sua celebração". A adoção da teoria objetiva do negócio
jurídico, no entanto, não pode ser sustentada em virtude da reprodução quase
literal do artigo 85 do Código Civil de 1916 no Novo Código. Nesse sentido, o
artigo 112 do novo normativo estabelece que "nas declarações de vontade se
atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da
linguagem".
Pela
dicção do dispositivo, salta aos olhos a prevalência da vontade real à sua
manifestação; a declaração torna-se mero instrumento para se buscar a real
intenção das partes, a qual estaria naquela consubstanciada. Consagra-se assim
a teoria subjetiva, apesar da menção à boa-fé objetiva, voltando-se o
intérprete à "manifestação da vontade de cada uma das partes e não naquela
comum, correspondente à natureza do negócio" [14].
A
adoção da teoria subjetiva na interpretação dos negócios jurídicos, a qual,
entretanto, é temperada pela consideração da boa-fé objetiva, não
desconsiderando totalmente a declaração manifestada pelas partes em virtude da
confiança e previsibilidade a ser gerada no mercado, foi nestes mesmos moldes
implantada pelo Novo Código Civil ao tratar da simulação.
4.Relação entre a vontade e a
declaração na simulação
Ao
analisar o conceito de simulação verificou-se como ponto comum entre as teorias
que procuraram definir sua natureza a manifestação de um negócio jurídico a
terceiros que não se coaduna com a verdadeira vontade das partes, com a real
intenção dos sujeitos de produzirem determinados efeitos entre si.
Como
requisito da simulação figura assim um acordo das partes contratantes em
declarar para terceiros um negócio jurídico aparente, simulado, cujos efeitos
não são desejados pelas partes. Além disso, o propósito do negócio aparente é o
de enganar a coletividade, seja não visando a causar nenhum dano, seja
objetivando prejuízos a terceiros, ou fugir ao imperativo da lei [15].
Ambas
as partes devem manifestar uma não conformidade entre o negócio jurídico
aparente e a real vontade de produção de efeitos com o ato. Se o desacordo
entre a vontade e o negócio jurídico convencionado for de apenas um dos
sujeitos, ou seja, não houver a cooperação na criação do negócio jurídico
aparente, o instituto não é o da simulação, mas sim o da reserva mental, como
predominantemente sustentado pela doutrina [16].
Da
necessidade de combinação das vontades das partes para estabelecer o negócio
jurídico simulado, surge a figura do acordo simulatório. É por meio
deste que as partes convencionam a criação de uma relação jurídica aparente a
terceiros (negócio simulado) e regulam seus reais interesses mediante
uma relação jurídica efetiva a produzir efeitos entre si (negócio
dissimulado). Nas palavras de Miranda, "as partes não celebram dois
negócios distintos – o simulado e o dissimulado – mas um só – o simulado – que
encobre também, nas simulações relativas, a relação jurídica dissimulada"
[17].
É
o acordo simulatório que possibilita o surgimento do negócio simulado, mediante
a estipulação pelas partes de um objetivo dissimulado. Acordo simulatório é o
meio convencionado pelas partes para obterem aquilo que se dissimulou.
O
§1o do artigo 167 do Novo Código Civil, à semelhança do artigo 102
do revogado Código Civil de 1916, estabelece que haverá simulação nos negócios
jurídicos quando: "I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a
pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II –
contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III – os
instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados".
5.Simulação absoluta e simulação
relativa
O
acordo simulatório pode regular que a vontade das partes, ao convencionarem o
negócio jurídico aparente, era não produzir com o ato simulado nenhum efeito
jurídico, ou produzir efeitos diferente dos efeitos típicos do negócio
determinado. Pode-se distinguir a simulação, conforme esses efeitos regulados
no acordo simulatório, em simulação absoluta e simulação relativa.
Na
simulação absoluta, a declaração aparente de vontade não visa a produzir
qualquer efeito jurídico. Através do acordo simulatório, as partes convencionam
um negócio jurídico aparente, mas que também não desejam produzir qualquer
efeito com esse ato.
As
partes procuram transmitir a terceiros uma situação enganosa de que teriam
convencionado determinado negócio jurídico (aparente), mas na realidade não
quiseram, de comum acordo, produzir qualquer resultado. Há a mera aparência,
pois as partes não desejam produzir nenhum efeito jurídico com o negócio que se
apresenta a terceiros.
Na
simulação relativa, por outro lado, visa-se com o negócio simulado produzir
efeitos diferentes dos típicos do negócio. O negócio aparente, na simulação relativa,
"não passa de um meio de realização do ato dissimulado, ou realmente
querido" [18].
A
simulação relativa difere da simulação absoluta pois as partes têm a intenção
de gerar efeitos jurídicos, de produzir com o negócio jurídico aparente um
resultado. Os efeitos buscados pelas partes, contudo, não são os efeitos
normalmente gerados pelo negócio aparente. O resultado buscado é o da relação
jurídica dissimulada, a qual fica encoberta pelo negócio jurídico aparente.
6.Simulação maliciosa e simulação
inocente
Como
anteriormente visto, o outro requisito da simulação é o propósito, através do
negócio aparente, de enganar a coletividade. Nesse sentido, pode-se contrapor a
simulação maliciosa à simulação inocente, tendo em vista a boa ou má-fé das
partes envolvidas.
Na
simulação inocente, o intuito de enganar a terceiros não visa a prejudicar
qualquer desses ou violar determinação legal. Os simuladores desejam com o
negócio jurídico simplesmente ocultar de terceiros a verdadeira natureza do
negócio, sem, no entanto, causar dano a interesses de qualquer pessoa.
Na
simulação maliciosa, por outro lado, as partes visam prejudicar terceiros ou
violar disposição legal. É, portanto, a finalidade do agente que irá determinar
a consideração do negócio como malicioso ou inocente. Segundo Pereira, assim,
"o mesmo ato ou a mesma declaração de vontade pode constituir simulação
inocente ou maliciosa, conforme seja desacompanhada ou revestida de um
propósito danoso: um marido que disfarça sob a forma de compra e venda um
donativo a um parente, para que não o apoquente a mulher, faz uma simulação
inocente, mas o mesmo processo será simulação maliciosa se o propósito é
desfalcar o patrimônio conjugal e prejudicá-la" [19].
7.Efeitos da simulação no Código Civil
de 1916
A
simulação no Código Civil de 1916 era caracterizada como vício social e tida
tradicionalmente, de maneira correlata aos vícios de vontade, tais como o erro,
o dolo e a coação, como causa de anulabilidade do negócio jurídico, desde que
praticada com a intenção de prejudicar terceiros, ou de burlar a lei.
Como
pode-se depreender do exposto, os efeitos da simulação variavam conforme a
espécie de simulação tratada.
Na
simulação absoluta, o negócio jurídico era tido como inexistente pois o intuito
das partes era criar uma mera aparência de negócio jurídico, não resultando
nenhum efeito jurídico. A caracterização de sua inexistência decorria da
interpretação a contrario sensu do artigo 81 do antigo Código, que
determinava que "todo o ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir,
resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato
jurídico" [20].
Nesse
sentido, o negócio jurídico aparente – ato jurídico, na dicção do antigo Código
Civil [21] -, como destinado pelas partes a não promover qualquer
efeito jurídico entre si, não possui o elemento de fato necessário à sua
concepção, qual seja a vontade das partes de se vincularem, sendo considerado
como inexistente [22].
O
referido se harmoniza à definição de ato inexistente de Gomes, para quem
"somente dois requisitos gerais podem ser considerados elementos de fato
que, faltando inteiramente, não permitem sua formação. Esses elementos são: a)
a vontade; b) o objeto (...) Quando falte, pois, um desses dois elementos,
negócio jurídico não se forma. Uma vez que é juridicamente inexistente,
desnecessário declarar sua invalidade, visto que não pode produzir qualquer
conseqüência jurídica. Não se convalida, não se converte em outro negócio
válido, não pode ter eficácia como putativo" [23].
Não
poderia um terceiro eventualmente prejudicado por confiar na aparência do
negócio absolutamente simulado alegar a existência deste para pleitear
direitos, mas simplesmente fundamentar pedido indenizatório no artigo 159, que
estabelecia que todo "aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica
obrigado a reparar o dano" [24].
Na
simulação relativa inocente, as partes estabelecem um negócio jurídico aparente
para encobrir uma relação jurídica dissimulada. Esta simulação, apesar de visar
enganar a coletividade, como pressuposto da própria figura da simulação, não
objetiva causar prejuízo a terceiro ou violar norma legal não sendo portanto
causa de anulabilidade do negócio jurídico, que permaneceria válido.
Com
relação a esta, dispunha o artigo 103 do Código Civil de 1916 que "a simulação
não se considerará defeito em qualquer dos casos do artigo antecedente, quando
não houver intenção de prejudicar a terceiros, ou de violar disposição de
lei".
Para
Pontes de Miranda a regra adviria do artigo 525 do Esboço de Teixeira de
Freitas que determinava que "se a simulação for relativa e também não
tiver havido intenção de prejudicar a terceiro, ou de violar disposição de lei,
os atos não valerão com o caráter aparente que tiverem, mas com o seu caráter
verdadeiro, se como tais pudessem valer". Para o autor, o negócio jurídico
aparente é inexistente. O ato simulado é como regra fático, e não jurídico,
"somente se puder sobrevir prejuízo a terceiro, ou violação à lei, o
sistema jurídico fá-lo entrar no mundo jurídico" [25]
Nesse
sentido, na simulação relativa inocente prevaleceria o negócio jurídico
dissimulado, verdadeira intenção de realização pelas partes. A essa conclusão
se pode chegar pela interpretação a contrario sensu do artigo 104, que
veda a alegação de simulação pelas partes somente na simulação maliciosa.
"Sendo inocente a simulação relativa, qualquer dos simulantes pode pedir a
que se declare a relação jurídica dissimulada, prevalecendo, então, o que foi
querido, em vez do que se aparentou querer" [26].
Se
houver a intenção de prejudicar terceiros ou de violar disposição de lei, a
simulação era considerada defeito social, causa de anulabilidade de todo o
negócio jurídico. O artigo 105 do Código Civil de 1916 estabelecia, desta
forma, que "poderão demandar a nulidade dos atos simulados os terceiros
lesados pela simulação, ou os representantes do poder público, a bem da lei, ou
da Fazenda".
Às
partes, entretanto, não foi atribuída esta faculdade em decorrência do
princípio nemo auditur propriam turpitudinem allegans, pelo qual o
direito não protegeria a alegação da própria má-fé. O princípio foi consagrado
no artigo 104, que dispunha que "tendo havido intuito de prejudicar a
terceiros ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer os
contraentes em juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o
outro, ou contra terceiros".
Desta
forma, se os terceiros interessados não demandarem a anulabilidade do ato, às
partes não era permitido se desvincularem da obrigação imposta, ainda que
acometida como causa de anulabilidade.
Pode-se
depreender, do exposto com referência à caracterização da simulação no Código
Civil de 1916, que a regulação privilegia a vontade real das partes seja
declarando o negócio jurídico na simulação absoluta como inexistente, o
prevalecimento do negócio dissimulado na simulação relativa inocente, seja
anulando o negócio jurídico aparente na simulação maliciosa, cujo intuito era
prejudicar terceiros ou violar disposição de lei.
O
negócio jurídico simulado prevalecerá somente na hipótese excepcional de
simulação maliciosa em que terceiros interessados ou os representantes do poder
público legitimados não demandem sua anulação, sendo esta demanda
impossibilitada às partes em decorrência de regra expressa.
Logo,
o tratamento dispensado à simulação no Código Civil de 1916 harmoniza-se com a
corrente subjetiva já adotada por este normativo ao tratar da interpretação do
negócio jurídico.
8.Efeitos da Simulação no Novo Código
Civil
O
Novo Código Civil não mais trata a simulação maliciosa como defeito do negócio
jurídico e sim como causa de nulidade deste. Rompe assim com a tradição do
direito pátrio que a considerava como defeito ligado ao interesse particular
das partes.
Desta
forma, estabelece o artigo 167 do novo normativo que "é nulo o negócio
jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na
substância e na forma".
Assim
como o Código Civil de 1916, percebe-se que os efeitos do negócio jurídico
simulado variam conforme o tipo de simulação em análise.
Na
simulação absoluta, considerava a doutrina tratar-se de negócio jurídico
inexistente, como já anteriormente apontado. Todavia, a afirmação não mais
parece procedente em relação ao Novo Código Civil, que vislumbra no §2o
do artigo 167 que são ressalvados "os direitos de terceiros de boa-fé em
face dos contraentes do negócio jurídico simulado".
Nesse
sentido, útil faz-se a análise da distinção feita por Gomes dos atos
inexistentes e dos atos nulos. Segundo o autor, "a utilidade da distinção
entre inexistência e nulidade está na circunstância de que o negócio mesmo nulo
pode, às vezes, produzir algum efeito (...) enquanto o negócio inexistente se
apresenta como o nada jurídico, sem aptidão alguma a produzir qualquer efeito
jurídico" [27].
Assim,
embora as partes não tenham a vontade real de criar efeitos, como elemento de
fato necessário a formação do negócio jurídico, como apontado pela doutrina ao
analisar o dispositivo frente ao Código Civil de 1916, a celebração de um
negócio ainda que meramente aparente poderia criar direitos a terceiros de
boa-fé que nesta aparência acreditaram.
O
negócio jurídico na simulação absoluta apareceria, portanto, como nulo, embora
excepcionalmente possa gerar direitos quanto a terceiros de boa-fé.
Na
simulação relativa o negócio jurídico não é causa de nulidade se a simulação
for inocente, ou seja, se o negócio aparente não tiver sido realizado para
ocultar uma relação jurídica que causaria prejuízos a terceiros ou contrariaria
imperativo legal.
Pela
dicção do artigo 167 do Novo Código Civil, não se considera a relação jurídica
aparente, que as partes quiseram transparecer à coletividade, mas subsistiria a
relação jurídica dissimulada desde que esta fosse inocente, ou seja,
"válida na substância e na forma".
Sobre
esta espécie de simulação, o Código de 2002 acaba por reproduzir as conclusões
da análise a respeito do Código de 1916: debruça-se sobre o negócio
dissimulado, prevalecendo a vontade real das partes em contraste ao declarado à
coletividade, o negócio aparente.
Ao
contrário da simulação inocente, a simulação maliciosa implica na nulidade do
negócio jurídico, afetando tanto sua relação simulada quanto sua relação
dissimulada.
O
artigo 168 estabelece que qualquer interessado e o Ministério Público podem alegar
a nulidade do negócio jurídico, devendo mesmo o juiz pronunciá-la ex officio,
ainda que contra o requerimento das partes. Mas não reproduziu o Novo Código
Civil o artigo 104 do Código de 1916 que proibia às partes, em litígio entre si
ou contra terceiro, pleitear a nulidade do negócio jurídico quando simulado de
maneira maliciosa.
Na
opinião de Pereira, ainda que a disposição não tenha sido reproduzida, as
partes não poderiam argüir o próprio vício para tornar nulo o negócio porque o
direito não protegeria a má-fé do próprio requerente. Para o autor, o argumento
seria reforçado ainda pelo §2º do artigo 167, que garante que somente os
terceiros de boa-fé terão seus direitos ressalvados em face dos contraentes do
negócio jurídico simulado, excluindo da hipótese a proteção dada aos terceiros
quando de má-fé. [28].
Compartilha
da mesma opinião Monteiro, para quem "os simuladores não têm qualidade
para argüir a simulação, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiro;
só os próprios prejudicados serão partes legítimas para deduzi-la em juízo; mas
a lei igualmente confere aos representantes do poder público, a bem da lei, ou
da fazenda, legitimação processual para pleitear a decretação da nulidade"
[29].
A
posição supracitada, no entanto, parece ser afastada pela consideração pelo
ordenamento jurídico vigente da simulação não mais como causa de anulabilidade
do negócio jurídico, mas sim como causa de nulidade.
Definindo-se
a simulação maliciosa como causa de nulidade, o Código Civil de 2002 não mais a
regulou com o intuito de proteger os interesses particulares dos sujeitos
envolvidos, voltando-se à tutela da própria ordem pública. Determina-se, desta
forma, que o negócio jurídico celebrado para simular uma relação que cause
prejuízo a terceiros ou que afronte a lei, mesmo que os interessados
mantenham-se inertes, não pode subsistir e continuar a gerar efeitos no
ordenamento jurídico. Sob este aspecto, mesmo o juiz deve decretá-la quando
conhecer do negócio jurídico ou de seus efeitos, ainda que em demanda cujo
pedido não verse sobre sua declaração, como rege o artigo 168.
Desta
maneira, não caberia retirar dos contratantes o direito de alegar a nulidade do
negócio porque, mais que o interesse particular na questão, tutelariam o
respeito à ordem pública [30].
Por
outro lado, embora a declaração de nulidade do negócio jurídico na simulação
maliciosa produza efeitos ex tunc, invalidando-o desde a sua concepção,
alguns efeitos do negócio excepcionalmente podem ser preservados.
Com
o intuito de proteger a própria fluência das transações no mercado e a
confiança imprescindível entre os agentes, a ordem jurídica ressalva os
direitos de terceiros de boa-fé que acreditaram e fundamentaram suas ações na
aparência do negócio jurídico a eles apresentado. Declara-se a nulidade do
negócio simulado maliciosamente, preservando-se, contudo, os efeitos gerados
pelo negócio aparente em relação a terceiros que desconheciam a divergência
entre a vontade real e a declaração dos contratantes.
9.Conclusão
Apesar
das relações empresariais regerem-se por princípios próprios, o Novo Código
Civil, ao unificar a matéria obrigacional, manteve na simulação a prevalência
da vontade real à sua manifestação, seja declarando a nulidade do negócio
maliciosamente simulado, seja a subsistência do negócio jurídico dissimulado na
simulação relativa inocente.
A
ressalva dos direitos de terceiros de boa-fé que confiaram no negócio jurídico
aparente, apesar de gerar um temperamento da teoria adotada, não atenua a
insegurança e a imprevisibilidade que seriam causadas pela consideração do
subjetivismo em relação à validade das relações contratadas de maneira
simulada, o que acabaria por comprometer, se não interpretada de maneira
restrita, as próprias transações no mercado.
Notas
01
L. G. P. B. Leães, A Disciplina do Direito de Empresa no Novo Código Civil
Brasileiro, in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e
Financeiro, no128, Rio de Janeiro, Malheiros, 2002, pp. 12.
02
A. M. Pauperio, Simulação, in Enciclopédica Saraiva do Direito,
São Paulo, Saraiva, 1977, pp. 78-79.
03
A B. H. Ferreira, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, 11a
ed., Rio de Janeiro, Gama, termos simulação e simular.
04
F. Ferrara, Della Simulazione dei Negozi Giuridici, 5a ed.,
Roma, Athenaeum, 1926, p. 36.
05
C. Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, 2a ed., Rio de
Janeiro, Editora Rio, 1980, p. 225.
06
F. Ferrara, op. cit., p. 37.
07
F. Ferrara, op. cit., p. 43.
08
C. P. U. Miranda, Simulação (Direito Civil), in Enciclopédica
Saraiva do Direito, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 86.
09
T. Ascarelli, O Negócio Indireto, in Problemas das Sociedades
Anônimas e Direito Comparado, 1a ed., Campinas, Bookseller,
1999., p. 179.
10
C. P. U. Miranda, Interpretação e Integração dos Negócios Jurídicos, São
Paulo, RT, 1989., p. 27 ss.
11
E. Betti, Teoria Geral do Negócio Jurídico (trad. Fernando Miranda), t.
I, Coimbra, Coimbra Editora, 1969, p. 98.
12
A. J. Azevedo, Negócio Jurídico – Existência, Validade e Eficácia, São
Paulo, 1974, p. 96.
13
A. J. Azevedo, op. cit., pp. 99-100.
14
P. Forgioni, A Interpretação dos Negócios Empresariais no Novo Código Civil
Brasileiro, in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e
Financeiro, no130, Rio de Janeiro, Malheiros, 2003, p. 32.
15
M. M. Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, v. 1, 6a ed., Rio
de Janeiro, Freitas Bastos, 1988, p. 402.
16
Neste sentido se manifesta Ferrara, para o qual "o ponto comum dos dois
institutos é que em ambos se declara uma coisa que não se deseja com o objetivo
de enganar. Mas uma se distingue da outra por causa que a reserva se
desenvolver no segredo da mente de um só dos contratantes, enquanto a simulação
resulta do acordo de todas as partes" (F. ferrara, op. cit., p.
48).
A
reserva mental foi regulada pelo Novo Código Civil no artigo 110, o qual dispõe
que "a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a
reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário
tinha conhecimento".
Como
pode-se apreender do dispositivo supracitado, a reserva mental constitui
verdadeira exceção à regra da prevalência da vontade sobre a declaração nos
negócios jurídicos, como apregoada pelo Novo Código Civil.
17
C. P. U. Miranda, op. cit., p. 86.
18
M. M. Serpa Lopes, op. cit., p. 402.
19
C. M. S. Pereira, Instituições de Direito Civil, v. 1, Rio de Janeiro,
Forense, 2004, p. 638.
20
C. P. U. Miranda, op. cit., p. 95.
21O
conceito de ato jurídico adotado no Código Civil de 1916 era tido de maneira
restrita a significar o ato que tem por fim imediato adquirir, resguardar,
transferir, modificar ou extinguir direitos, conforme redação do artigo 81. No
Novo Código Civil essa denominação é ampliada para compreender toda e qualquer
manifestação de vontade, "seja individual ou coletiva, seja dos órgãos
jurisdicionais ou do Poder Legislativo, seja das autoridades administrativas ou
do particular, constituindo gênero, do qual a declaração de vontade do
particular, dirigida no sentido da obtenção de um resultado, seria espécie,
denominada de negócio jurídico" (L. G. P. B. Leães, op. cit.,
p. 11).
22
C. P. U. Miranda , op. cit., p. 95; F. C. Pontes de Miranda, Tratado
de Direito Privado, t. IV, 4a ed., São Paulo, RT, pp. 376 – 377.
A inexistência do negócio jurídico absolutamente simulado era expressa já no
Esboço de Teixeira de Freitas, que determinava em seu artigo 524 que "se a
simulação for absoluta, sem que tenha havido intenção de prejudicar a
terceiros, ou de violar disposições da lei, e assim se provar a requerimentos
de algum dos contraentes, julgar-se-á que nenhum ato existira".
23
O. Gomes, Introdução ao Direito Civil, 18a ed., Rio de
Janeiro, Forense, 2002, p. 470.
24
F. C. Pontes de Miranda, op. cit., pp. 383-384.
25
F. C. Pontes de Miranda, op. cit., p. 394.
26
F. C. Pontes de Miranda, op. cit., p. 400. No mesmo sentido manifesta-se
Venosa: "se a simulação for inocente, inexistindo prejuízo ou violação de
direito de terceiro, prevalecerá o ato dissimulado, desde que não ilida
disposição legal, bem como reúna os elementos necessários para ter vida
jurídica" (S. S. Venosa, Direito Civil – Parte Feral, v. 1, 3a
ed., São Paulo, Atlas, 2003, p. 481).
Em
sentido contrário se manifesta Miranda, pois como partes de um todo nem a
relação jurídica simulada, nem a dissimulada seriam consideradas viciadas; o
negócio aparente não poderia ser anulado por terceiros, assim como o
dissimulado não poderia ser anulado pelas partes (C. P. U. Miranda, op. cit.,
p. 96).
27
O. Gomes, op. cit., p. 471.
28
C. M. S. Pereira, op. cit., pp. 638-639.
29
W. B. Monteiro, Curso de Direito Civil – Parte Geral, 39a
ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 253.
30
No mesmo sentido Venosa, para quem "não havendo a restrição do art. 104 do
Código Antigo, mormente porque se trata de caso de nulidade, os simuladores
podem alegar a simulação um contra o outro, ainda porque a nulidade pode ser
declarada de ofício. (S. S. Venosa, op. cit., p. 486).
* advogado em Jundiaí (SP), mestrando em direito comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/
Acesso em: 08 fev. 2007.