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Flávio Tartuce*
Como
não poderia ser diferente, o novo Código Civil traz inovações importantes
quanto ao tratamento geral da posse e da propriedade, conceitos vitais tanto
para o direito das coisas quanto para todo o direito privado.
A
análise desses institutos também deve ser feita à luz da Constituição Federal,
dentro da proposta de encarar o direito civil a partir do Texto Maior, e
vice-versa. Aliás, pelas previsões de regulamentação e proteção da propriedade
em vários dispositivos constitucionais não é possível admitir tratamento
diferente.
Inicialmente
quanto à posse, duas grandes escolas procuraram delimitar o seu conceito,
escolas essas que para nós encontram-se superadas.
Para
a teoria subjetivista ou subjetiva, cujo principal defensor foi Savigny, a
posse poderia ser conceituada como o poder direto ou imediato que tem a pessoa
de dispor fisicamente de um bem com a intenção de tê-lo para si e de defendê-lo
contra a intervenção ou agressão de quem quer que seja. A posse, para essa
corrente, possui dois elementos:
a)
Corpus ¾ elemento material,
constituído pelo poder físico ou de disponibilidade sobre a coisa.
b)
Animus domini ¾ intenção
de ter a coisa para si, de exercer sobre ela o direito de propriedade.
Logicamente,
pelo segundo elemento acima descrito, podemos concluir que, para essa teoria, o
locatário, o comandatário, o depositário, entre outros, não seriam possuidores,
pois não há qualquer intenção de tornarem-se proprietários. Portanto, não
gozariam de proteção direta, impedimento para ingressarem tais sujeitos com as
competentes ações possessórias. A exemplo do Código Civil de 1916, denota-se
que novo Código Civil não adotou essa corrente, já que os sujeitos acima
citados são possuidores, no melhor sentido da expressão. Somente para fins de
usucapião é que essa teoria é considerada, para a caracterização da posse ad
usucapionem.
Para
a segunda corrente, precursora de uma teoria objetivista ou objetiva da posse,
e cujo principal defensor foi Ihering, para constituir a posse bastaria a
pessoa dispor fisicamente da coisa ou a mera possibilidade de exercer esse
contato. Essa corrente dispensa a intenção de ser dono, possuindo a posse
apenas um elemento, o corpus, elemento material e único fator o visível
e suscetível de comprovação, formado pela atitude externa do possuidor em
relação à coisa, agindo este com o intuito de explorá-la economicamente. Aliás,
para essa teoria, dentro do conceito de corpus estaria uma intenção, não
o animus de ser proprietário, mas sim de explorar a coisa com fins
econômicos.
Entre
as duas teorias, entendemos que o novo Código Civil adotou parcialmente a
teoria objetivista de Ihering, de acordo com o que consta do artigo 1.196 da
atual codificação. Dessa forma, o locatário, o comandatário, entre outros, para
o nosso direito, são possuidores e como tais podem utilizar as ações
possessórias, inclusive contra o próprio proprietário, que não pode utilizar nessas
ações a exceção de domínio (exceptio proprietatis), interpretação do
art. 1.210 da novel codificação. Assim, o art. 1.196 do Código Civil define a
posse como sendo o exercício pleno ou não de alguns dos poderes inerentes à
propriedade.
Mas
o Código atual perdeu a oportunidade de trazer expressamente uma teoria mais
avançada quanto à posse, aquela que considera a sua função social, tese cujo
principal defensor foi Saleilles.
Entretanto,
já adiantamos que tal teoria consta do Projeto nº 6.960/02, de autoria do
Deputado Ricardo Fiúza, pelo qual o artigo 1.196 passará a ter a seguinte
redação: "considera-se possuidor todo aquele que tem poder fático de
ingerência sócio-econômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre
determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade
de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de
posse". Isso, adotando sugestão de Joel Dias Figueira Jr.
[01].
Sem
dúvidas que a redação da proposta é muito melhor do que o atual art. 1.196,
comprovando o afastamento em relação às duas correntes clássicas.
Mas,
sem prejuízo dessa proposta de alteração, entendemos que o princípio da função
social da posse é implícito à codificação emergente, principalmente pela
valorização da posse-trabalho, conforme arts. 1.238, parágrafo único;
1.242, parágrafo único; e 1.228, §§ 4º e 5º, todos do novo Código Civil.
Como
é notório, prevêem o parágrafos únicos dos arts. 1.238 e 1.242 a redução dos
prazos para a usucapião extraordinária e ordinária, respectivamente, nos casos
envolvendo bens imóveis. Na usucapião extraordinária o prazo é reduzido de 15
(quinze) para 10 (dez) anos; na ordinária de 10 (dez) para 5 (cinco) anos. Em
ambos os casos, a redução se dá diante de uma situação de posse-trabalho,
nos casos em que aquele que tem a posse utiliza o imóvel com intuito de
moradia, ou realiza obras e investimentos de caráter produtivo, com relevante
caráter social e econômico. Entendemos que essas reduções estão de acordo com a
solidariedade social, com a proposta de erradicação da pobreza e,
especificamente, com a proteção do direito à moradia, prevista no art. 6º da
Constituição Federal.
A
função social da posse também está presente no tratamento da desapropriação
judicial por posse trabalho, prevista no art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo
Código Civil, sobre o qual comentaremos a seguir.
Na
verdade, mesmo sendo exteriorização da propriedade, o que também comprova a sua
função social, a posse com ela não se confunde. É cediço que determinada pessoa
pode ter a posse sem ser proprietária do bem, já que ser proprietário é ter o domínio
da coisa. A posse significa apenas ter a disposição da coisa, utilizando-se
dela e tirando-lhe os frutos, com fins sócioeconômicos. Pelo conceito que
consta atualmente no Código Civil, podemos dizer que todo proprietário é
possuidor, mas nem todo possuidor é proprietário (arts. 1.196 + 1.228 do nCC).
Assim,
a propriedade é o direito que a pessoa física ou jurídica tem de usar, gozar,
dispor de um bem ou reavê-lo de quem injustamente o possua ou detenha (art.
1.228, caput, do novo Código Civil). Trata-se do mais completo dos
direitos subjetivos e centro do direito das coisas, devendo ser analisado à luz
da função social consubstanciada na codificação privada e da Constituição
Federal de 1988.
A
idéia de propriedade está, assim, de acordo com o citado comando da
codificação, relacionada com os seguintes direitos ou faculdades dela
decorrentes:
-
Direito de Gozar ou Fruir (jus fruendi) ¾ consiste na retirada dos frutos da
coisa principal, sejam eles frutos naturais, industriais ou civis.
Exemplificamos com o aluguel, rendimento ou fruto civil, retirado de um bem
móvel ou imóvel.
-
Direito de Reivindicar ou Reaver (rei vindicatio) ¾ abrange o poder de mover demanda judicial
para obter o bem de quem injustamente o detenha ou possua, mediante a ação
reivindicatória, principal modalidade da ação petitória, aquela em que se
discute a propriedade e que não pode ser confundida com as ações possessórias.
-
Direito de Usar ou Utilizar (jus utendi) ¾ consiste na faculdade, não mais o poder, que o
dono tem de servir-se da coisa e utilizá-la da maneira que entender mais
conveniente, sem modificação em sua substância e não causando danos a terceiro.
O direito de propriedade não é mais tido como um direito totalmente absoluto,
encontrando o direito de uso limitações previstas na Constituição, no próprio
Código Civil e no Estatuto da Cidade, além de outras normas específicas. Nesse
sentido, veda o § 2º do art. 1.228 os atos emulativos ou abuso no exercício do
direito de propriedade, modalidade de abuso de direito (art. 187 do nCC), a
gerar a responsabilização civil. Assim, "são defesos os atos que não
trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela
intenção de prejudicar outrem".
-
Direito de Dispor ou Alienar (jus abutendi ou jus disponendi) ¾ consiste no poder de se desfazer da coisa a
título oneroso ou gratuito, abrangendo também o poder de consumi-la ou gravá-la
de ônus real (penhor, hipoteca e anticrese).
O
atual Código Civil, no artigo 1.228, § 1º, reafirma a função social da
propriedade acolhida no art. 5º, XXII e XXIII e artigo 170, III, todos da
Constituição Federal de 1988. Na verdade, o novo Código Civil vai mais além,
prevendo ao lado da função social da propriedade a sua função socioambiental
com a previsão de proteção da flora, da fauna, da diversidade ecológica, do
patrimônio cultural e artístico, da águas e do ar, tudo de acordo com o que
prevê o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 e a Lei da Política Nacional
do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81).
Interessante
lembrar que o Bem Ambiental, o meio ambiente natural e artificial, com
proteção constitucional, também encontra guarida no estatuto privado, podendo
ser conceituado como um bem difuso que visa a sadia qualidade de vida da
presente e futuras gerações. [02]
Pois
bem, já vimos que o direito de propriedade não é um direito absoluto,
encontrando limites nos direitos alheios, que devem ser respeitado. No direito
civil moderno, concebido à luz do Texto Maior, cada vez mais vão surgindo
medidas restritivas ao direito de propriedade, impostas pelo Estado em prol da
supremacia dos interesses difusos e coletivos. Assim, o direito de propriedade
esbarra na sua função social e socioambiental, no interesse público, no
princípio da justiça social (art. 3º, III, CF/88) e na proteção do bem comum.
Como
vimos, o artigo 1.228, § 2º, do novo Código Civil, proíbe o abuso de direito ou
ato emulativo no exercício do direito de propriedade, cabendo a análise das
circunstâncias fáticas pelo magistrado, caso a caso, melhor idéia da ontognoselogia
jurídica de Miguel Reale. Esse conceito acaba fundindo direito das coisas e
direito pessoal em um mesmo plano.
Ademais,
prevê o § 3º do mesmo dispositivo legal que o proprietário pode ser privado da
coisa nos casos de desapropriação por necessidade, utilidade pública ou
interesse social, bem como no caso de requisição, em caso de perigo público
iminente.
Em
seguida, o Código Civil atual inova ao trazer, nos parágrafos §§ 4º e 5º do
artigo 1.228, a denominada desapropriação judicial por posse-trabalho,
modalidade de expropriação privada, situação em que um considerável número de
pessoas ocupa uma extensa área, por cinco anos (posse ininterrupta e de
boa-fé), existindo nessa extensa área obras consideradas pelo magistrado de
relevante caráter social e econômico (posse-trabalho). Essa idéia de posse
trabalho, denota, mais uma vez, a função social da posse.
No
caso de uma ação reinvindicatória proposta pelo proprietário, os ocupantes
poderão alegar tal desapropriação como matéria de defesa, desde que paguem (os
ocupantes), uma justa indenização ao reinvindicante (§ 5º). Vale ressaltar,
assim, que a indenização não deverá ser paga pelo Estado, pela natureza privada
da inovação. Esse aliás é o entendimento constante do enunciado nº 84 do
Conselho Superior da Justiça Federal, aprovada na I Jornada de Direito Civil:
"a defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse social
(art. 1.228, §4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser argüida pelos réus na
ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo pagamento da
indenização".
Em
que pese argumento em contrário, esse modalidade aquisitiva de propriedade
móvel é totalmente constitucional (conforme enunciado nº 82 CSJF), não devendo
ser aplicada às ações reivindicatórias propostas pelo Poder Público (enunciado
nº 83 CSJF). Por um questão lógica, quando estiver configura a situação
descrita nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do nCC, não poderão os ocupantes alegar
como matéria de defesa a usucapião, mesmo coletiva, não se aplicando a Súmula
237 do STF, pela qual "o usucapião pode ser argüido em matéria de
defesa", nos casos em que os requisitos da desapropriação privada
estiverem presentes. .
Dessa
forma, o instituto em questão não se confunde com a usucapião coletiva,
prevista nos arts. 9º e 10 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), eis que a
indenização deverá ser paga para que os ocupantes tenham direito à esta
desapropriação privada. Na usucapião, como se sabe, não há pagamento de
qualquer indenização.
Observa-se
que o instituto está relacionado a vários conceitos legais indeterminados, já
que o dispositivo não menciona qual seria esta extensa área, qual o número de
pessoas e, principalmente, quais seriam as obras tidas como de relevante
caráter social. A fixação da justa indenização também dependerá do poder
discricionário do juiz da causa.
Acreditamos
que esta desapropriação judicial está fadada ao insucesso pois não visualizamos
hipótese em que os ocupantes pagarão indenização ao proprietário. Mesmo assim,
não vemos qualquer inconstitucionalidade na inovação, sendo certo que tal
artigo está fundamentado, principalmente, na solidariedade social.
Por
fim, interessante perceber que traz o Código Civil de 2002 regra de direito
intertemporal pela qual, até dois anos após a vigência da atual codificação
(até 11 de janeiro de 2.005), o prazo de 5 cincos para a configuração do
instituto aqui estudado sofrerá acréscimo de mais dois anos (art. 2.030 do
nCC). Desse modo, até 11/01/2005, a alegação de desapropriação judicial por
posse-trabalho só caberá se os ocupantes tiverem na posse do imóvel
reivindicado por 7 anos. Também há regra semelhante para as formas de usucapião
extraordinária e ordinária, por posse-trabalho, (art. 2.029 NCC)
Notas
01
"Por tudo isso, perdeu-se o momento histórico de corrigir um
importantíssimo dispositivo que vem causando confusão entre os jurisdicionados
e, como decorrência de sua aplicação incorreta, inúmeras demandas. Ademais, o
dispositivo mereceria um ajuste em face das teorias sociológicas, tendo-se em
conta que foram elas, em sede possessória, que deram origem à função social da
propriedade. Nesse sentido, vale registrar que foram as teorias sociológicas da
posse, a partir do século XX, na Itália, com Silvio Perozzi; na França com
Raymond Saleilles e, na Espanha , com Antonio Hernandez Gil, que não só
colocaram por terra as célebres teorias objetiva e subjetiva de Jhering e
Savigny como também tornaram-se responsáveis pelo novo conceito desses
importantes institutos no mundo contemporâneo, notadamente a posse, como
exteriorização da propriedade (sua verdadeira ‘função social’)". (FIGUEIRA
JR, Joel Dias. Novo Código Civil Comentado. Coordenador: Ricardo Fiúza. São
Paulo: Editora Saraiva, 2ª Edição, 2003, p. 1.095
02
Cf. Piva, Rui Carvalho. Bem Ambiental. São Paulo: Editora Max Limonad. 2001.
* advogado em São Paulo (SP), mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP, professor do Curso FMB, coordenador e professor dos cursos de pós-graduação da Escola Paulista de Direito (SP)
TARTUCE, Flávio. A função social da posse e da propriedade e o direito civil constitucional . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 900, 20 dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7719>. Acesso em: 14 nov. 2006.