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A MORALIDADE DOS ATOS CIENTÍFICOS

 

Francisco Amaral

 

 

 

A revolução biológica e as questões Éticas e jurídicas que suscita.

O progresso científico do mundo contemporâneo, principalmente na segunda metade deste século, revela duas grandes revoluções, uma no campo da medicina, outra no campo da biologia. A primeira diz respeito aos avanços obtidos na prevenção e tratamento das doenças e na pesquisa clínica. Experiências com novos fármacos, medicamentos e vacinas, transplante de órgãos e enxertos, epidemias, modalidades de tratamento e novos estudos sobre a morte com o progresso técnico na prática da reanimação (eutanásia e distanásia), constituem os seus principais temas e suscitam as suas principais questões. A segunda, de natureza biológica, desenvolveu métodos e procedimentos que levam I) ao controle da reprodução humana, com a prevenção da gravidez, a inseminação artificial, nas suas diversas espécies (homóloga e heteróloga), e fecundação in vitro; 2) ao controle da hereditariedade por meio da engenharia genética, conjunto de técnicas que permitem modificar o "patrimônio" genético do ser humano, com a possibilidade de sanar enfermidades genéticas, mas também de manipular a espécie humana; e 3) ao controle do sistema nervoso, com a utilização dos recursos da psicofarmacologia, da neurobiologia e das pesquisas psicossociológicas e psicológicas .

Tais avanços no campo da ciência podem suscitar conflitos entre direitos ou deveres contraditórios e a ética, em primeiro lugar com sua orientação, e o direito, em segundo, com suas prescrições, são chamados a resolver e cujas soluções se situam entre o ser da ciência e o dever ser da ética ou do direito, procurando-se responder à seguinte questão: tudo o que é tecnicamente possível também o será ética e juridicamente?

Questão preliminar é reconhecer que o progresso científico deve-se orientar para promover a qualidade de vida individual e social, pessoal e ambiental, mas também que tais descobertas podem causar problemas que o direito é chamado a resolver, elaborando estruturas jurídicas de resposta que se legitimem pelo respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.

Todas estas manifestações de progresso científico, de grande repercussão em diversos campos das ciências naturais e humanas, levantam questões éticas. No caso da pesquisa clínica e nas experiências com novos medicamentos, essas questões envolvem os testes em pessoas voluntárias, exigindo-se o consentimento esclarecido do paciente e o respeito à integridade física e à saúde individual. No caso da biologia, destacam-se os problemas da reprodução assistida, compreendendo a inseminação artificial (homóloga e heteróloga), a fecundação in vitro, a transferência de embriões, congelamento, manipulação e experimentação, envolvendo o anonimato do doador, o aluguel do útero de outra mulher que não a mãe, a gratuidade da doação de óvulos e de esperma, o destino dos embriões remanescentes, a transferência de genoma, isto é, do conjunto de genes contidos nos cromossomos, etc. Desenvolve-se a bioética, termo designativo da ética específica das questões biológicas, a traduzir o valor da pessoa humana e também a metodologia multidisciplinar de abordagem dessa mesma problemática, constituindo para o direito um novo campo de atuação, na medida em que este é chamado a criar normas que protejam o ser humano contra o abuso à sua integridade física, moral e intelectual, o que constitui, presentemente, o cerne da proteção universal dos direitos humanos. Urge, consequentemente, precisar o papel do direito em face desses novos desafios, elaborando o instrumental jurídico necessário à garantia dos valores fundamentais da ordem jurídica. Nessa matéria, vale dizer, a dignidade da pessoa humana, a justiça e o bem comum. E seguindo Bachelard, que meditou sobre o novo espírito científico, espera-se do direito e dos juristas que desenvolvam um novo pensamento, apto a elaborar o tipo de resposta jurídica que a sociedade espera para a solução dos problemas advindos do progresso científico, nas áreas da medicina e da biologia, a partir de uma ordem axiológica que tenha a pessoa humana como valor básico da ordem cultural dominante em uma sociedade democrática.

Acrescente-se ainda que, no Brasil, à semelhança do que ocorre na comunidade internacional, desenvolve-se o debate sobre as questões dá bioética e do biodireito, já existindo entre nós, além das regras da Constituição Federal, a Lei 8.974, de 5.1.95, que estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética, e a Lei 9.434, de 4.2.97, que dispõe sobre remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, além de outros dispositivos do Código Civil, do Código Penal e de leis especiais que protegem os direitos inerentes à personalidade humana. Todas essas disposições legais, ordenadas de modo sistemático, podem constituir um novo ramo do direito, o biodireito, cuja função primordial seria a conservação da vida humana, na linha de defesa estabelecida pela moderna concepção e sistema dos direitos humanos.

A bioética e o biodireito: novos campos temáticos

A bioética é a disciplina que examina e discute os aspectos éticos relacionados com o desenvolvimento e as aplicações da biologia e da medicina, indicando os caminhos e os modos de se respeitar o valor da pessoa humana. Pela pluralidade de seu objeto, que compreende um "mosaico de problemas", a bioética é ciência multidisciplinar que tem como limite as prescrições contidas nos direitos humanos. E realizar esses direitos, simultaneamente com a conquista da medicina e da biologia, é tarefa que exige um esforço multidisciplinar. Médicos, biólogos, filósofos, moralistas, teólogos, sociólogos e juristas encontram-se na tarefa comum de estudar essa nova temática, levando à configuração de um novo ramo jurídico, o biodireito, que se estrutura com base na Constituição Federal, que tem como valores básicos a dignidade da pessoa humana e a garantia do direito à vida, à integridade física e à saúde individual e familiar. Pode esse entender-se como o conjunto de princípios, conceitos e regras que concretizam os valores fixados pela ética no campo das ciências da vida, e sua razão de ser está na insuficiência daquela na solução dos conflitos que surgem neste campo. Compreenderia, de modo analítico, as normas jurídicas sobre a engenharia genética, a embriogênese humana, a regulação do aborto, a manutenção da vida, a proibição da pena de morte, da tortura e dos maus tratos.

Com esse entendimento, e atento aos problemas que surgem da revolução biológica, o Conselho Nacional de Saúde aprovou em 9.10.96 as novas diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, elegendo, como campo de atuação, as seguintes áreas temáticas: genética humana; reprodução humana; biossegurança; novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos; novos equipamentos e insumos para a saúde; pesquisas conduzidas do exterior e pesquisas envolvendo populações indígenas.

Têm aqui particular importância os projetos de pesquisa envolvendo seres humanos, de modo ;;S; direto ou indireto, com inegáveis possibilidades de dano à integridade física, moral ou intelectual da pessoa, pelo que é urgente à fixação de limites éticos e jurídicos, tendo como orientação os direitos fundamentais da pessoa humana, aqui usados como sinônimo de direitos da personalidade ou direitos humanos.

Esses limites seriam indispensáveis para configurar a licitude da experimentação humana e, conseqiientemente, tipificar as situações em que se pode verificar a responsabilidade do médico/investigador, determinando o conteúdo dos deveres de diligência, prudência e perícia que ele deve observar no desempenho de sua atividade ,

Essas respostas estão, portanto, no sistema de direitos humanos que a tradição jurídica ocidental vem estabelecendo, como "concreção axiológica da dignidade, da liberdade e da igualdade" ,

O sistema jurídico brasileiro

A matéria dos direitos humanos reúne os princípios e normas que, fundadas no reconhecimento da dignidade e inerentes a todas as pessoas, visam garantir-lhes o respeito universal e efetivo .

Os direitos humanos propriamente ditos são direitos subjetivos que têm como objeto os valores essenciais da pessoa humana, no seu aspecto físico, moral e intelectual. Inseridos no sistema de direito positivo, têm eficácia absoluta em face do Estado, dos indivíduos e dos grupos sociais, que os devem reconhecer e respeitar.

Remontando à tradição filosófica grega e acolhidos pelo direito romano e medieval, foi com o iluminismo que se forjou a sua moderna concepção, expressa nos textos fundamentais da Declaração de Independência Americana de 1776, a Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 e, contemporaneamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas, de 1948. Considerando esta que a liberdade, a justiça e a paz no mundo têm por base o reconhecimento da dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana, estabelece no seu art. 3º que todos os indivíduos têm direito à vida à liberdade e à segurança de sua pessoa.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de valor apenas moral, teve seus princípios incorporados ao direito brasileiro, principalmente em matéria constitucional, civil e penal.

A tutela jurídica dos direitos humanos ou da personalidade desenvolve-se, então, em nível.. constitucional, civil e penal. De modo mais específico, pode-se dizer que essa proteção é I natureza constitucional, no que diz respeito aos princípios fundamentais que regem a matéria que estão na Constituição, e é de natureza civil, penal e administrativa, quando integrante , respectiva legislação ordinária. Essa integração entre o direito civil e o direito público é um d mais significativos aspectos do processo de constitucionalização da sociedade contemporânea complexa e variada .

Em matéria constitucional, o princípio básico é o contido no art. 12 da Constituição Brasileira, que estabelece como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana na seqüência do valor; também fundamental, da igualdade, expresso no preâmbulo como valor superior do ordenamento jurídico, que proíbe qualquer tipo de discriminação. Quer isso dizer que o respeito à pessoa humana é o marco jurídico básico, o suporte inicial que justifica a existência e admite a especificação dos demais direitos, garantida a igualdade de todos perante a lei (igualdade formal) e a igualdade de oportunidades no campo econômico e social (igualdade material).

Outros direitos de natureza constitucional são a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade (CF, art. SQ, caput), o direito de resposta (V), o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (X), o direito de autor (XXVIII), a proteção à participação individual em obras coletivas e à reprodução da imagem e da voz humanas (XXVIII).

No que diz respeito à legislação ordinária:

Código Civil, que é o diploma básico e peculiar aos direitos da personalidade, na medida em que se constitui, historicamente, a sedes materiae da personalidade, continha prescrições sobre o direito à imagem (art. 666, X), ao sigilo da correspondência (art. 671, par. único) ao direito moral do autor (arts. 649, 650, par. único, 651, par. único e 658), à cessão do direito de ligar o nome do autor à sua obra (art. 6 ), matéria hoje deslocada para a Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos autorais. O projeto de Código Civil já contempla, porém, o direito à integridade física. O Código dispõe, expressamente, porém, no tocante à indenização por homicídio, ferimento , ofensa à saúde, à honra e à liberdade pessoal (arts. 1.537 a 1.553).

· Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, no que diz respeito aos direitos fundamentais, Título II, arts. 7 a 69, consagra o direito à vida e à saúde, à liberdade, ao respeito e à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, à profissionalização e à proteção no trabalho.

· Decreto 24.559, de 3 de julho de 1934, dispõe sobre a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas.

· A Lei 9.434, de 04 de janeiro de 1997, e Decreto 2.268, de 30 de junho de 1997, dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, para fins de transplante e tratamento.

· A Lei 7.649, de 25 de janeiro de 1988, dispõe sobre a cessão de produtos biológicos, como o sangue.

· A Lei Orgânica da Saúde, Lei 8.080, de 19.9.90, que dispõe sobre as condições de atenção à saúde, à organização e ao funcionamento dos respectivos serviços.

· A Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, sobre a utilização de técnicas de reprodução assistida.

· A Lei 9.610, de 19 de dezembro de 1998 (art. 21, 25, 52, par. único, 28, 49, sobre a proteção ao direito moral do autor.

· A Lei 8.974, de 5 de janeiro de 1995, que estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética.

· A Lei 8.501, de 30.11.92, que dispõe sobre a utilização do cadáver.

No Código Penal tem-se a seguinte tutela jurídica: a condenação do homicídio (art. 121), a provocação ou auxílio ao suicídio (art. 122), o infanticídio (art. 123) O aborto (art. 124) os crimes de perigo para a vida e a saúde (art. 130 a 136), o crime de lesão corporal (art. 129) os crimes contra a honra (art. 138), a difamação (art. 139), a injúria (art. 146) o seqüestro e cárcere privado (art. 142) a inviolabilidade do domicílio (art. 150) os crimes contra a inviolabilidade de correspondência (arts.-151 e 152) e dos segredos (art. 153 e 154).

O direito à vida e à integridade física

Os direitos humanos civis podem sintetizar-se no direito à integridade física, no direito à integridade intelectual e no direito à integridade moral, conforme representem a proteção jurídica desses bens ou valores.

O direito à integridade física compreende a proteção jurídica à vida, ao próprio corpo, quer na sua totalidade, quer em relação a tecidos, órgãos e artes do corpo humano suscetíveis de separação e individualização, quer no tocante ao corpo sem vida, o cadáver, e ainda, o direito e à liberdade de alguém submeter-se ou não a exame e tratamento médico.

O direito à integridade moral consiste na proteção que a ordem jurídica concede à pessoa no tocante à sua honra, liberdade, intimidade, imagem e nome.

O direito à integridade intelectual é o que protege o direito moral do autor, isto é, o direito de reivindicar a paternidade da obra, e o direito patrimonial que é o direito de dispor da obra, explorá-la e dela dispor.

O direito à vida e à integridade física ocupam posição capital no sistema dos direitos da personalidade. São o ponto de partida, principalmente no que diz respeito aos limites a estabelecer para o poder das ciências biomédicas.

Mais do que um estado, a vida humana é o processo pelo qual um indivíduo nasce, cresce e morre . É bem jurídico fundamental, uma vez que se constitui na origem e suporte dos demais direitos. Sua extinção põe fim à condição de ser humano e a todas as manifestações jurídicas que se apóiam nessa condição. Pontos fundamentais para o direito são o respectivo início, desde a concepção, e o seu termo final, a morte.

Como fenômeno unitário e complexo, a vida humana é uma totalidade unificada de tríplice aspecto: o biológico, o psíquico e o espiritual. Biologicamente, é o processo de atividade orgânica e de transformação permanente do indivíduo, desde a concepção até a morte. Psicologicamente, é a percepção do mundo interno e externo ao indivíduo. Espiritualmente, significa inteligência e vontade.

A proteção jurídica da vida humana e da integridade física tem como causa final a preservação desses bens jurídicos, desde o começo até o término da vida, do que decorre a importância em determinar-se o momento em que ela começa e se extingue, o que marca, aliás, o início e o fim da personalidade jurídica. Quanto ao seu termo inicial, a vida e, consequentemente, a personalidade, começa da concepção , da fusão dos gametas. Quanto ao termo final da existência, prevalece a opinião que define a morte em termos cerebrais .

O valor da vida e da integridade física tornam, por isso, extremamente importante a sua defesa contra os riscos de sua destruição ou de alteração da estrutura ou funcionamento normal do corpo humano, inclusive a simples ameaça contra a saúde.

Têm também grande importância as intervenções ou manifestações destinadas a alterar-lhes as condições normais da existência. Essas intervenções compreendem as práticas científicas próprias da chamada engenharia genética, lato sensu, as ações sobre o ADN humano, (análise molecular do genoma humano e a utilização dos genes humanos), as ações sobre células humanas ou sobre embriões, (processos de fecundação in vitro e congelamento, manipulação e experimentação), e ações sobre os indivíduos, (a transferência de genes, transplante de órgãos humanos, a reprodução assistida, a esterilização e controle da natalidade, e ainda os tratamentos médicos e a eutanásia).

O direito à integridade física compreende, também, a saúde individual, tanto orgânica como mental, mas não se confunde com o direito à saúde (CF, art. 196).

No que particularmente diz respeito aos direitos e deveres no contexto da tecnociência, o direito subjetivo que tem a vida humana como bem jurídico, pressupõe três titulares do dever jurídico de respeitá-lo: a) o próprio indivíduo para consigo mesmo; b) as demais pessoas; e c) o Estado . O próprio indivíduo tem, para consigo, o direito-dever de legítima defesa, que consiste na reação contra agressão injusta, atual, inevitável, não excedendo o necessário à defesa. "Para uma concepção clássica, teria também o dever de não suicidar-se", tendo em vista o interesse social na preservação da vida humana. Relativamente a terceiros, têm estes o dever de não matar, de não contribuir ou ajudar na morte voluntária de alguém. No que diz respeito à pesquisa, têm de respeitar os princípios gerais da bioética, vale dizer, o da autonomia, o da beneficência, o do não prejuízo e o da justiça e eqüidade. Quanto ao Estado, tem este o dever de respeitar a vida dos cidadãos (CF, art. 5º), e o dever de proteger-lhes a vida, com a utilização de todos os meios jurídicos necessários, assim como o dever de punir os autores de quaisquer atentados contra a vida humana, função típica do direito penal. Com essa matéria relaciona-se o direito a uma morte de outra pessoa por motivos humanitários, a pedido do interessado, que sofre de uma doença terminal incurável .

O direito ao corpo, nele incluído os seus tecidos, órgãos e partes separáveis, e o direito ao cadáver, são projeções do princípio da dignidade humana (CF, art 1º, III) e do direito à integridade física.

Considera-se aqui o corpo humano também como um bem jurídico, "uma realidade biológica que o direito reconhece e protege em si mesma", seja o corpo humano nascido, seja o apenas concebido. O corpo humano sem vida é cadáver, o que suscita o problema da personalidade humana post-mortem, de que se tratará a seguir.

A personalidade humana é um todo complexo, unitário, integrado e dinâmico, constituído de bens ou elementos constitutivos (a vida, o corpo e o espírito), de funções (função circulatória, inteligência), de estados (saúde, prazer, tranqüilidade) e por força, potencialidade e capacidade (instintos, sentimentos, vontade, capacidade criadora e de trabalho, poder de iniciativa etc.) . Entre seus elementos constitutivos, o corpo humano é, por si só, objeto de tutela jurídica que se traduz nos dispositivos penais condenatórios das lesões corporais (CP, art. 129) e dos crimes de perigo para a vida e a saúde (CP, art. 30), e ainda no poder de decisão pessoal sobre o tratamento médico-cirúrgico, exame médico e perícia médica. A tutela sobre o cadáver tanto se manifesta na proibição de destruir, subtrair, ocultar ou vilipendiar cadáver (CP, arts. 211 e 212), como na possibilidade de disposição gratuita de próprio corpo; ou parte dele, com objetivo altruístico ou científico para depois da morte.

O direito ao corpo refere-se tanto a este, na sua totalidade, quanto às partes que dele se possam destacar e de se individualizar, e sobre as quais a pessoa exerce o direito de disposição. Consideram-se, assim, coisas (res), de propriedade do titular do respectivo corpo.

Os elementos destacados do corpo deixam de integrá-lo e, consequentemente, de ser objeto dos direitos da personalidade. Em sentido contrário, passam a integrá-lo os "elementos ou produtos, orgânicos ou inorgânicos, que nele se assimilaram ou que nele se incorporaram". Assim enxertos e próteses, implantados e não rejeitados pelo organismo, e não separáveis do corpo sem causar a este um dano simultâneo, são objetos de direitos da personalidade e não de direitos reais . A separação faz-se para salvar a vida ou preservar a saúde do titular ou de terceiros, neste caso, por meio de transplante.

É, assim, permitido à pessoa juridicamente capaz, dispor gratuitamente de tecidos, órgãos 01 partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou de transplantes (Lei 9.434, de 04.02.97, art. 9º) .Só se permite a doação de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não prejudique o organismo do doador, e satisfaça necessidade terapêutica indispensável à pessoa receptora. A disposição desse material pode ser também post-morlem, isto é, para ser eficaz após a morte do doador. Nesse caso, a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para transplante ou tratamento, deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada na forma da lei por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, utilizando-se critérios clínicos e tecnológicos definidos pelo Conselho Nacional de Medicina.

Considera-se transplante a retirada de um órgão, tecido ou parte do corpo humano, vivo ou morto, e sua utilização, com fins terapêuticos, num ser humano. Difere da prótese, que é um processo econômico que utiliza material inerte (válvula), para substituir partes anatômicas. Esse ato subordina-se a dois princípios básicos, a finalidade terapêutica ou científica, e a gratuidade do ato de disposição, princípios esses que informam as normas de organização que disciplinam a respectiva prática.

A questão dos transplantes gira em torno de dois interesses fundamentais e opostos: o interesse coletivo no progresso da ciência médica, que justifica a utilização do corpo humano, vivo ou morto, na pesquisa científica ou no tratamento médico, e o interesse individual, no que diz respeito ao direito subjetivo de proteção à integridade física e à vida humana. Esses interesses podem ser conflitantes, gerando problemas de natureza ética, filosófica e psicológica, que exigem adequadas respostas jurídicas. Tais respostas devem conjugar, por sua vez, o problema do consentimento pessoal na utilização do seu próprio corpo , observados os princípios da indisponibilidade da vida e da saúde, da dignidade humana, do consentimento do sujeito, e da igualdade e liberdade.

Disposição inovadora da lei é o seu art. 4º, segundo o qual "salvo manifestação em contrário, nos termos desta lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica pos-mortem ". Só não serão doadores, portanto, os que em vida manifestarem sua oposição à colheita de elementos orgânicos de seu corpo, gravando a expressão "não-doador" na sua carteira de identidade ou de habilitação para dirigir. Conseql1entemente, nos mortos não identificados, não se poderá fazer a colheita ou retirada de elementos para transplante.

Disso se deduz que, para a utilização de tecidos, órgãos ou partes do cadáver humano, são imprescindíveis o consentimento para a prática do ato e a incontestabilidade da morte, assim como a finalidade terapêutica e a gratuidade da disposição.

No caso da retirada post-mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, a pessoa legítima para concordar ou discordar é o cônjuge sobrevivo ou o parente consangl1íneo mais próximo, titular dos direitos de personalidade do de cujus sobre o seu corpo, agora cadáver. Pode então a lei estabelecer uma presunção de autorização destes (cônjuge ou herdeiros), se não houver manifestação em contrário deles, no prazo exíguo que se estabelecer. Não deve prevalecer, portanto, a meu ver, a presunção legal estabelecida no art. 42 da Lei 9.434/97, de se considerar doador o falecido, sobre a eventual manifestação em contrário expressa por sua família. Não prevalece a presunção legal, simples, de uma vontade já inexistente, em relação a uma vontade existente, contrária. Além disso, dispõe o sistema jurídico brasileiro de meios técnicos adequados para manifestação de última vontade, o testamento e o codicilo utilizáveis pelas pessoas que não quiserem doar, para transplante, seus órgãos.

CONCLUSÃO

Os direitos humanos, ou direitos da personalidade, legitimados pelos valores básicos da dignidade humana, da liberdade e da igualdade, podem constituir-se nos limites à pesquisa envolvendo seres humanos, de modo direto ou indireto, conjugando esses valores com os princípios básicos da ética médica, da autonomia, do não prejuízo, da beneficência e da justiça, que são previstos na Resolução 196/96, do CNS, no seu item III, referente aos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos.

Os diplomas legais supracitados, que protegem especialmente os direitos da pessoa quanto à integridade física e à saúde, demonstram que esses constituem-se em limites jurídicos à experimentação e pesquisa envolvendo seres humanos, observando os valores éticos da dignidade e do respeito à personalidade humana, na seqüência de milenar tradição histórico-filosófica que se constitui em eixo fundamental da civilização ocidental cristã.


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Disponível em: <http://www.dbbm.fiocruz.br/ghente/publicacoes/moralidade/direitos_humanos.htm>. Acesso em: 11 nov. 2006