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A ação direta de
inconstitucionalidade em Santa Catarina
Inconstitucionalidade da retroatividade de
leis (inclusive da LC 105, que autoriza a quebra do sigilo bancário).
Dênerson
Dias Rosa
Os diversos Tribunais Pátrios, inclusive o
Supremo Tribunal Federal, ao tratarem da questão da retroatividade de leis, vem
manifestando entendimento de sua possibilidade jurídica, desde que haja menção
expressa no texto legal e respeite-se o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito ou a coisa julgada. Nesse sentido, transcreve-se Ementa do STF.
“EMENTA. O dispositivo
ora impugnado, ao declarar a ineficácia retroativa da criação do Conselho
Estadual ...também viola, diretamente, o inciso XXXVI do artigo 5º da mesma
Carta Magna, o qual veda a retroatividade que alcance direito adquirido e ato
jurídico perfeito, vedação a que estão sujeitas também as normas
constitucionais estaduais.” (STF, Tribunal Pleno, ADI n.º 596/RJ, Rel. Min.
Moreira Alves, DJ 07.05.1993)
Esse
entendimento é compartilhado por ilustres autores e doutrinadores tais como
José Afonso da Silva, segundo quem “Vale dizer, portanto, que a Constituição
não veda a retroatividade da lei, a não ser da lei penal que não beneficie o
réu. Afora isto, o princípio da irretroatividade da lei não é de Direito
Constitucional, mas princípio geral de Direito. Decorre do princípio de que as
leis são feitas para vigorar e incidir para o futuro. Isto é: são feitas para
reger situações que se apresentem a partir do momento em que entram em vigor.
Só podem surtir efeitos retroativos quando elas próprias o estabeleçam (vedado
em matéria penal, salvo a retroatividade benéfica ao réu), resguardados os
direitos adquiridos e as situações consumadas evidentemente.”
Sobre a
retroatividade legal, Celso Ribeiro Bastos se manifesta no sentido de que
“Salvo a Constituição de 1937, todas as demais Constituições mantiveram-se
fiéis à sacrossanta irretroatividade, respeitada, sempre, a formulação técnica
consistente no resguardo da já clássica trilogia (direito adquirido, ato
jurídico perfeito e coisa julgada).”
Muito embora a
retroatividade de leis não seja tema concernente a Direito Constitucional, tal
como bem o ensinam os doutrinadores citados, nossas diversas constituições,
exceto a de 1937, abordaram e disciplinaram a questão, todavia proibindo-a,
como agora se demonstra.
Da análise do
instituto “lei” em sua essência, fácil constatar-se que não é compatível com a
possibilidade de vigência retroativa. A lei nada mais é do que um retrato da
vontade da sociedade, por conseguinte, enquanto perdura uma lei que disciplina
determinada matéria, pode presumir-se que a vontade da sociedade era de que
aquela normatização fosse a aplicável ao tema tratado. Quando é aprovada nova lei
versando sobre matéria anteriormente disciplinada de forma diversa, pode-se
concluir que a vontade da sociedade é que, somente a partir daquele momento,
recebesse aquele tema nova normatização.
E nem sequer
poderia ser de forma diversa, mesmo porque um dos objetivos do Direito é o de
assegurar a “segurança jurídica”, posto que disciplina as relações humanas de
forma a possibilitar uma certa previsibilidade em relação a circunstâncias
futuras, o que efetivamente não ocorreria caso pudesse uma norma retroagir.
Analisando-se as
diversas constituições brasileiras, verifica-se a evolução do instituto da
irretroatividade. Sob a égide da Constituição de 1824, que dispunha que
“Nenhuma lei será estabelecida sem utilidade publica, e a sua disposição não
terá effeito retroactivo”, a irretroatividade legal encontrava-se estabelecida
em termos absolutos.
A Constituição
de 1891, estabelecendo que
“E’ vedado aos
Estados, como á União prescrever leis retroactivas”, manteve a irretroatividade
nos mesmos termos absolutos. Todavia, com a promulgação da Constituição de
1934, que estabeleceu que “a lei penal só retroagirá quando beneficiar o réu”,
criou-se ao princípio da irretroatividade legal uma restrição que até hoje
vigora, tendo sido repetida em todas as Cartas Constitucionais, exceto a de
1937.
Possíveis dois
entendimentos sobre o dispositivo. O primeiro o de que, com a Constituição de
1934, passou a ser permitida a retroatividade das leis em geral, exceto em
matéria penal, que só poderiam retroagir para beneficiar o réu. O segundo o de
que a irretroatividade continuou como regra, havendo tão-somente a exceção da
lei penal que beneficiasse o réu.
Os defensores de
que a lei pode retroagir, desde que se respeite o direito adquirido, o ato
jurídico perfeito ou a coisa julgada, sendo a irretroatividade direcionada
tão-somente para normas penais que não beneficiarem o réu, lastreiam-se também
no fato de que ambos os institutos tiveram origem simultânea no nosso Direito
Constitucional. A mesma Constituição (1934) que estabeleceu a
“retroatividade” penal benigna, foi a
que estabeleceu a impossibilidade de a lei prejudicar o direito adquirido, o
ato jurídico perfeito ou a coisa julgada.
Todavia, apesar
da origem simultânea, tais institutos são conceitualmente diversos. A Constituição
de 1934, ao tratar de vigência de normas, disciplinou o tema de forma mais
abrangente e consistente. Estabeleceu a possibilidade de retroatividade da lei
que, versando sobre matéria penal, beneficiasse o réu. Estabeleceu também que,
em relação a efeitos futuros, qualquer lei (não só a penal) deveria respeitar o
direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada.
Tanto se
distinguem os dois institutos que, não tendo sido incluídos na Constituição de
1937, foi o segundo (respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e
à coisa julgada) inserido na Lei de Introdução do Código Civil-LICC, de 1942,
sem contudo qualquer nuance de retroatividade de leis.
A LICC dispõe
que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico
perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.” Portanto, segundo a LICC, uma
lei, após promulgada, tem efeito imediato e geral (nunca retroativo), contudo,
deve sempre respeitar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido ou a coisa
julgada.
Há o
entendimento de que a Carta Magna de 1988, por ter expressamente mencionado a
lei penal ao falar em irretroatividade, excetuando a norma penal benigna, e se
omitido em relação às demais normas, implicitamente permitiu que houvesse
retroatividade de normas não penais, desde que respeitados o ato jurídico
perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada .
Caso prosperasse
este entendimento, o de que se omitindo o texto constitucional sobre a matéria,
implicitamente haveria a possibilidade de retroatividade legal, restaria-se o
absurdo de que, sob a égide a Constituição de 1937, e até que fosse promulgada
a Constituição de 1946, como não havia qualquer menção ou restrição
constitucional sobre a matéria, poderia qualquer norma ter eficácia retroativa,
desde que no corpo da própria lei fosse assim literalmente estabelecido.
A retroatividade
é tema de tal excepcionalidade, no Direito Pátrio, que é tratada tão somente em
âmbito constitucional, e a Constituição de 1988 somente a permite em relação à
lei penal que seja mais benigna ao réu.
Portanto, não
havendo possibilidade constitucional de retroatividade, exceto em relação à lei
penal mais benigna, resta a pergunta: Qual a vigência de norma meramente
interpretativa?
Responde-se: Uma
norma interpretativa tem por objetivo aclarar o texto de outra norma. Ao
promulgar-se uma lei interpretativa, age o Legislativo “usurpando” a função do
Judiciário, visto que a competência constitucional de interpretador de normas é
atribuída a este. Mas, do mesmo modo como ocorre quando o Judiciário interpreta
determinada norma e esta interpretação prevalece em relação a todos os fatos
ocorridos desde o momento do início da vigência da lei, o mesmo ocorre quando o
Legislativo decide legislar interpretando outra lei. Esta interpretação
prevalece em relação a todos os atos e fatos ocorridos desde o início da
vigência da lei interpretada, e isso efetivamente não implica em
retroatividade, posto que não se está criando nenhuma nova situação jurídica
para vigorar no passado.
Se a lei
interpretativa inovar em relação à matéria, deixará de ser interpretativa em
relação aos dispositivos inovados, que não terão eficácia “retroativa”, posto
que não cabe, a título de interpretar lei anteriormente promulgada, criar-se ou
alterar-se instituto ou norma jurídica.
Como a
retroatividade é a vigência da lei no passado, pode-se afirmar categoricamente
que nem sequer a lei penal mais benigna é capaz de retroagir, devendo nesse
sentido ser interpretada a menção expressa do texto constitucional.
Uma lei penal
mais benigna produz tão-somente efeitos futuros, alcançando todavia as
situações pendentes. Ou seja, determinada pessoa que tenha efetivamente
cumprido toda a pena à qual foi condenada, em virtude de prática de ato qual
foi posteriormente deixou de ser considerado ilícito, não tem qualquer direito
à indenização, direito que se lhe seria assegurado caso efetivamente fosse retroativa
a lei penal mais benigna.
Retorna-se agora
ao conceito inicial, o de que a lei nada mais é do que um retrato da vontade da
sociedade.
Caso determinada
pessoa se encontre cumprindo pena em virtude de prática que a sociedade
legalmente considerou como indesejável, e como o objetivo da pena é reeducar o
condenado para que possa este voltar a conviver em sociedade, incabível
imaginar-se que deva este ser mantido cumprindo sua pena para que seja
reeducado de modo não mais venha a praticar fato que a sociedade passou a
considerar como não lesivo ou reprovável.
Todavia, apesar
da situação acima descrita, a inexiste no Direito Pátrio qualquer
retroatividade, inclusive no âmbito penal. Às leis penais aplica-se tão somente
o que o STF denomina de “retroatividade mínima”, leis penais mais benignas
produzem efeitos futuros em relação a fatos passados, mas nunca produzem
efeitos pretéritos.
Conseqüentemente
não se reveste de consonância com o ordenamento constitucional vigente qualquer
norma no que prescreva vigência retroativa, excetuando-se a norma penal, cuja
“retroatividade” se dá tão-somente com efeitos futuros, alcançando todavia
fatos ocorridos anteriormente à sua vigência.
Não sendo
cabível a retroatividade de leis mesmo quando houver previsão expressa em seu
corpo, não merece sequer muitos comentários o absurdo praticado pela
fiscalização tributária federal, que vem tentando aplicar retroativamente a Lei
Complementar n.º 105 (que autoriza a quebra do sigilo bancário), apesar de seu
art. 12 no qual expressamente se fez constar a impossibilidade de vigência
retroativa ao prescrever-se que “esta Lei Complementar entra em vigor na data
de sua publicação”.
Há os que
equivocadamente defendem a possibilidade da aplicação da LC 105 a fatos
ocorridos anteriormente à sua vigência, lastreando-se no art. 105, do Código
Tributário Nacional-CTN, que estabelece que a legislação tributária aplica-se
imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes.
A possibilidade
de aplicação de legislação tributária a fatos pendentes somente pode dar-se nas
hipóteses previstas no art. 106 do CTN, que são da lei meramente e
expressamente interpretativa e da lei tributária penal que estabeleça penalidade
mais branda ou deixe de considerar determinado fato como infração.
Ou seja, o
próprio CTN estabelece tão somente como possíveis de vigência retroativa a lei
interpretativa e a lei penal mais benigna, que efetivamente são as únicas
situações nas quais apresenta-se constitucional a “retroatividade”: A primeira
por não se caracterizar essencialmente como tal, como já exposto, e a segunda
por ter sido expressamente prevista no texto constitucional.
O próprio CTN,
em seu artigo 101, de forma inconteste estabelece que se aplicam, às leis
tributárias, as mesmas disposições sobre vigência, no espaço e tempo,
aplicáveis às normas jurídicas em geral, ou seja, por ser o Direito Tributário
um dos ramos do Direito, e não uma ciência autônoma e completamente distinta
deste, deve manter perfeita consonância com os diversos institutos e princípios
basilares jurídicos, dentre os quais os aplicáveis à vigência das normas.
Como a
fiscalização habitualmente se dá em relação fatos pretéritos, raramente no
momento da ocorrência do mesmo, cuidou o CTN, em seu art. 144, de impedir a
possibilidade de conflito intertemporal de normal, ao definir o lançamento
(procedimento administrativo do qual se utilizam os agentes fiscais para
determinar o crédito tributário, art. 142 do CTN) reporta-se à data da ocorrência do fato gerador, e rege-se pela
lei então vigente, mesmo que posteriormente modificada ou revogada.
Por conseguinte,
qualquer lançamento efetuado em relação a fatos ocorridos anteriormente ao
início da vigência da LC 105 deve ser efetuado em conformidade com a legislação
então em vigor, não podendo ser efetuado por meio de utilização de dados
obtidos em virtude da quebra do sigilo bancário do contribuinte, sendo provas
estas inválidas, posto que não autorizadas legalmente, e conseqüentemente impossíveis de serem
utilizadas para determinação de créditos tributários, em conformidade com o
Constituição Federal, art. 5º, LVI, que prescreve que “são inadmissíveis, no
processo, as provas obtidas por meios ilícitos.”
Para finalizar a
questão, analisa-se agora o §1º, do art. 144, do CTN, que estabelece que
“aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à ocorrência do fato
gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de apuração ou processos
de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das autoridades
administrativas...”
Defendem alguns
que a LC 105 possa ser aplicada retroativamente com lastro no art. 144, §1º do
CTN que estabeleceu que se aplica ao lançamento a legislação que, mesmo
posterior à ocorrência do fato gerador, tenha ampliado os poderes de
investigação das autoridades administrativas.
Qualquer
interpretação legal não se pode fazer de forma isolada sob o risco de completo
desvirtuamento do teor da norma. Os antigos já diziam que “um texto fora de
contexto pode servir de pretexto para qualquer coisa.”
O §1º do art.
144 não dispõe sob forma alguma de retroatividade de normas, o que nos parece
claro, posto que se este dispositivo disciplinasse vigência de normas no tempo
e espaço, não estaria inserido no Capítulo “Constituição do Crédito
Tributário”, mas sim no Capítulo “Vigência da Legislação Tributária”, mesmo
porque um parágrafo deve ser interpretado em consonância com o tema abordado no
caput do artigo, e o do art. 144 não dispõe nem direta nem indiretamente sobre
vigência de normas, mas sim sobre procedimentos para lançamento do crédito
tributário.
Não dispondo o
art. 144 do CTN, e conseqüentemente seu §1º, sobre vigência de normas, qual é o
tema efetivamente abordado por seu §1º?
De fácil
resposta essa pergunta. Trata esse dispositivo tão somente de procedimentos
meramente administrativos concernentes ao lançamento. Exemplifica-se. Vamos nos
utilizar da situação em que determinado Ente de Direito Público tenha constitua
sua fiscalização tributária dividindo seu quadro funcional em mais de um cargo,
por exemplo Fiscais e Técnicos, incumbindo aos primeiros a fiscalização de
empresas de maior porte e aos segundos empresas de menor porte. Caso efetue,
este Ente de Direito Público, alteração na normatização destes cargos,
ampliando os poderes de investigação das autoridades administrativas ocupantes
do cargo de Técnico, de modo possam fiscalizar empresas outras que não de
pequeno porte, não há empecilho legal a que os Técnicos fiscalizem fatos
geradores ocorridos anteriormente à norma que lhes atribuiu competência para
tanto.
Não se trata
portanto de retroatividade, mas simplesmente de organização de procedimentos
meramente administrativos.
Retornando ao
conceito original de lei. A promulgação da LC 105 foi uma manifestação da
sociedade que desejou que as autoridades fiscais, no exercício de suas
atribuições, passassem a ter poderes para quebrar o sigilo bancário de
contribuintes. Anteriormente à LC 105, repulsava a sociedade esta idéia, mesmo
porque, se assim não fosse, tal norma já teria sido anteriormente aprovada.
Portanto, como democraticamente a vontade do povo é sempre soberana e querendo
este que somente a partir da promulgação da LC 105 pudesse a fiscalização
tributária ter acesso a dados bancários de contribuintes, e tão somente em
relação a fatos ocorridos posteriormente à sua vigência, não é possível a
interpretação da LC 105 de modo a revesti-la de poderes de retroatividade,
mesmo porque, além de que se ferir o ordenamento jurídico pátrio,
desrespeita-se a soberana vontade popular.
BIBLIOGRAFIA:
SILVA, José
Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, 15ª
edição, 1998, São Paulo.
BASTOS, Celso
Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 17ª edição, 1996,
São Paulo.
Dênerson Dias
Rosa é Consultor Tributário da Tibúrcio, Peña & Associados S/C e ex-Auditor
Fiscal da Secretaria da Fazenda de Goiás.
ROSA, Dênerson Dias. A ação direta de inconstitucionalidade em Santa Catarina. Disponível em: < http://www.tj.sc.gov.br/cejur/doutrina/inconstitucionalidade.rtf>. Acesso em: 11 nov 2006.