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Fundamentos teóricos e filosóficos do novo
Direito Constitucional brasileiro
Luís
Roberto Barroso*
Sumário: Capítulo I: Pré-compreensão do tema. I. A
pós-modernidade e o Direito. II. A busca da razão possível. Capítulo II:
Algumas bases teóricas. I. A dogmática jurídica tradicional e sua superação.
II. A teoria crítica do Direito. Capítulo III: Algumas bases filosóficas. I.
Ascensão e decadência do jusnaturalismo. II. Ascensão e decadência do
positivismo jurídico. III. Pós-positivismo e a normatividade dos princípios.
Capítulo IV: Conclusão. I. A ascensão científica e política do direito
constitucional no Brasil. II. Síntese das idéias desenvolvidas.
Capítulo
I: Pré-compreensão do tema
I.
A PÓS-MODERNIDADE E O DIREITO (1)
Planeta
Terra. Início do século XXI. Ainda sem contato com outros mundos habitados.
Entre luz e sombra, descortina-se a pós-modernidade. O rótulo genérico
abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto da razão, o
desprestígio do Estado. A era da velocidade. A imagem acima do conteúdo. O
efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial. Vive-se a
angústia do que não pôde ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras.
Uma época aparentemente pós-tudo: pós-marxista, pós-kelseniana,
pós-freudiana (2).
Brasil.
2001. Ano 13 da Constituição de 1988. Sem superstições. O constitucionalismo
vive um momento sem precedentes, de vertiginosa ascensão científica e política.
O estudo que se vai desenvolver procura investigar os antecedentes teóricos e
filosóficos desse novo direito constitucional, identificar seus principais
adversários e acenar com algumas idéias para o presente e para o futuro. Antes
de avançar, traçam-se algumas notas introdutórias para situar o leitor. A
interpretação dos fenômenos políticos e jurídicos não é um exercício abstrato
de busca de verdades universais e atemporais. Toda interpretação é produto de
uma época, de um momento histórico, e envolve os fatos a serem enquadrados, o
sistema jurídico, as circunstâncias do intérprete e o imaginário de cada um. A
identificação do cenário, dos atores, das forças materiais atuantes e da
posição do sujeito da interpretação constitui o que se denomina de pré-compreensão
(3).
A
paisagem é complexa e fragmentada. No plano internacional, vive-se a
decadência do conceito tradicional de soberania. As fronteiras rígidas cederam
à formação de grandes blocos políticos e econômicos, à intensificação do
movimento de pessoas e mercadorias e, mais recentemente, ao fetiche da
circulação de capitais. A globalização, como conceito e como símbolo, é a
manchete que anuncia a chegada do novo século. A desigualdade ofusca as
conquistas da civilização e é potencializada por uma ordem mundial fundada no
desequilíbrio das relações de poder político e econômico e no controle
absoluto, pelos países ricos, dos órgãos multilaterais de finanças e comércio.
No
campo econômico e social, tem-se assistido ao avanço vertiginoso da
ciência e da tecnologia, com a expansão dos domínios da informática e da rede
mundial de computadores e com as promessas e questionamentos éticos da
engenharia genética (4). A obsessão da eficiência tem elevado a
exigência de escolaridade, especialização e produtividade, acirrando a competição
no mercado de trabalho e ampliando a exclusão social dos que não são
competitivos porque não podem ser. O Estado já não cuida de miudezas como
pessoas, seus projetos e sonhos, e abandonou o discurso igualitário ou
emancipatório. O desemprego, o sub-emprego e a informalidade tornam as ruas
lugares tristes e inseguros.
Na
política, consuma-se a desconstrução do Estado tradicional, duramente
questionado na sua capacidade de agente do progresso e da justiça social. As
causas se acumularam impressentidas, uma conspiração: a onda conservadora nos
Estados Unidos (Reagan, Bush) e na Europa (Thatcher) na década de 80; o colapso
da experiência socialista, um sonho desfeito em autoritarismo, burocracia e
pobreza; e o fiasco das ditaduras sul-americanas, com seu modelo estatizante e
violento, devastado pelo insucesso e pela crise social. Quando a noite baixou,
o espaço privado invadira o espaço público, o público dissociara-se do estatal
e a desestatização virara um dogma. O Estado passou a ser o guardião do lucro e
da competitividade.
No
direito, a temática já não é a liberdade individual e seus limites, como
no Estado liberal; ou a intervenção estatal e seus limites, como no welfare
state. Liberdade e igualdade já não são os ícones da temporada. A própria
lei caiu no desprestígio. No direito público, a nova onda é a governabilidade.
Fala-se em desconstitucionalização, delegificação, desregulamentação. No
direito privado, o código civil perde sua centralidade, superado por múltiplos
microssistemas. Nas relações comerciais revive-se a lex mercatoria
(5). A segurança jurídica – e seus conceitos essenciais, como o direito
adquirido – sofre o sobressalto da velocidade, do imediatismo e das
interpretações pragmáticas, embaladas pela ameaça do horror econômico. As
fórmulas abstratas da lei e a discrição judicial já não trazem todas as
respostas. O paradigma jurídico, que já passara, na modernidade, da lei para o
juiz, transfere-se agora para o caso concreto, para a melhor solução, singular
ao problema a ser resolvido.
Seria
possível seguir adiante, indefinidamente, identificando outras singularidades
dos tempos atuais. Mas o objeto específico do presente estudo, assim como
circunstâncias de tempo e de espaço, recomendam não prosseguir com a
apresentação analítica das complexidades e perplexidades desse início de era.
Cumpre dar desfecho a este tópico (6).
O
discurso acerca do Estado atravessou, ao longo do século XX, três fases
distintas: a pré-modernidade (ou Estado liberal), a modernidade (ou Estado
social) e a pós-modernidade (ou Estado neo-liberal). A constatação invevitável,
desconcertante, é que o Brasil chega à pós-modernidade sem ter conseguido ser
liberal nem moderno. Herdeiros de uma tradição autoritária e populista,
elitizada e excludente, seletiva entre amigos e inimigos – e não entre certo e
errado, justo ou injusto –, mansa com os ricos e dura com os pobres, chegamos
ao terceiro milênio atrasados e com pressa.
II.
A BUSCA DA RAZÃO POSSÍVEL (7)
Os
gregos inventaram a idéia ocidental de razão como um pensamento que
segue princípios e regras de valor universal. Ela é o traço distintivo da
condição humana, juntamente com a capacidade de acumular conhecimento e
transmiti-lo pela linguagem. Traz em si a superação dos mitos, dos
preconceitos, das aparências, das opiniões sem fundamento. Representa, também,
a percepção do outro, do próximo, em sua humanidade e direitos. Idealmente, a
razão é o caminho da justiça, o domínio da inteligência sobre os instintos,
interesses e paixões.
Sem
enveredar por um debate filosófico feito de sutilezas e complexidades, a
verdade é que a crença iluminista no poder quase absoluto da razão tem sido
intensamente revisitada e terá sofrido pelo menos dois grandes abalos. O
primeiro, ainda no século XIX, provocado por Marx, e o segundo, já no século
XX, causado por Freud. Marx, no desenvolvimento do conceito essencial à sua
teoria – o materialismo histórico – assentou que as crenças religiosas,
filosóficas, políticas e morais dependiam da posição social do indivíduo, das
relações de produção e de trabalho, na forma como estas se constituem em cada
fase da história econômica. Vale dizer: a razão não é fruto de um exercício da
liberdade de ser, pensar e criar, mas prisioneira da ideologia,
um conjunto de valores introjetados e imperceptíveis que condicionam o
pensamento, independentemente da vontade.
O
segundo abalo veio com Freud. Em passagem clássica, ele identifica três
momentos nos quais o homem teria sofrido duros golpes na percepção de si mesmo
e do mundo à sua volta, todos desferidos pela mão da ciência. Inicialmente com
Copérnico e a revelação de que a Terra não era o centro do universo, mas um
minúsculo fragmento de um sistema cósmico de vastidão inimaginável. O segundo
com Darwin, que através da pesquisa biológica destruiu o suposto lugar
privilegiado que o homem ocuparia no âmbito da criação e provou sua
incontestável natureza animal. O último desses golpes – que é o que aqui se
deseja enfatizar – veio com o próprio Freud: a descoberta de que o homem não é
senhor absoluto sequer da própria vontade, de seus desejos, de seus instintos.
O que ele fala e cala, o que pensa, sente e deseja é fruto de um poder
invisível que controla o seu psiquismo: o inconsciente (8) (9).
É
possível, aqui, enunciar uma conclusão parcial: os processos políticos, sociais
e psíquicos movem-se por caminhos muitas vezes ocultos e imperceptíveis
racionalmente. Os estudos de ambos os pensadores acima – sem embargo de
amplamente questionados ao longo e, especialmente, ao final do século XX –
operaram uma mudança profunda na compreensão do mundo. Admita-se, assim, que a
razão divida o palco da existência humana pelo menos com esses dois outros
fatores: a ideologia e o inconsciente. O esforço para superar cada um deles,
pela auto-crítica e pelo auto-conhecimento, não é vão, mas é limitado. Nem por
isso a razão se torna menos importante. A despeito de seus eventuais limites,
ela conserva dois conteúdos de especial valia para o espírito humano: (i) o ideal
de conhecimento, a busca do sentido para a realidade, para o mundo natural
e cultural e para as pessoas, suas ações e obras; (ii) o potencial da
transformação, o instrumento crítico para compreender as condições em que
vivem os seres humanos e a energia para interferir na realidade, alterando-a
quando necessário (10).
As
reflexões acima incidem diretamente sobre dois conceitos que integram o
imaginário do conhecimento científico: a neutralidade e a objetividade. Ao
menos no domínio das ciências humanas e, especialmente no campo do Direito, a
realização plena de qualquer um deles é impossível. A neutralidade,
entendida como um distanciamento absoluto da questão a ser apreciada, pressupõe
um operador jurídico isento não somente das complexidades da subjetividade
pessoal, mas também das influências sociais. Isto é: sem história, sem memória,
sem desejos. Uma ficção. O que é possível e desejável é produzir um intérprete
consciente de suas circunstâncias: que tenha percepção da sua postura
ideológica (auto-crítica) e, na medida do possível, de suas neuroses e
frustrações (auto-conhecimento). E, assim, sua atuação não consistirá na
manutenção inconsciente da distribuição de poder e riquezas na sociedade nem na
projeção narcísica de seus desejos ocultos, complexos e culpas.
A
objetividade se realizaria na existência de princípios, regras e
conceitos de validade geral, independentemente do ponto de observação e da
vontade do observador. O certo, contudo, é que o conhecimento, qualquer
conhecimento, não é uma foto, um flagrante incontestável da realidade. Todos os
objetos estão sujeitos à interpretação. Isto é especialmente válido para
o Direito, cuja matéria prima é feita de normas, palavras, significantes e
significados. A moderna dogmática jurídica já superou a idéia de que as leis
possam ter, sempre e sempre, sentido unívoco, produzindo uma única solução
adequada para cada caso. A objetividade possível do Direito reside no conjunto
de possibilidades interpretativas que o relato da norma oferece.
Tais
possibilidades interpretativas podem decorrer, por exemplo, (i) da
discricionariedade atribuída pela norma ao intérprete, (ii) da pluralidade de
significados das palavras ou (iii) da existência de normas contrapostas,
exigindo a ponderação de interesses à vista do caso concreto. Daí a constatação
inafastável de que a aplicação do Direito não é apenas um ato de conhecimento –
revelação do sentido de uma norma pré-existente –, mas também um ato de vontade
– escolha de uma possibilidade dentre as diversas que se apresentam (11).
O direito constitucional define a moldura dentro da qual o intérprete exercerá
sua criatividade e seu senso de justiça, sem conceder-lhe, contudo, um mandato
para voluntarismos de matizes variados. De fato, a Constituição institui um
conjunto de normas que deverão orientar sua escolha entre as alternativas
possíveis: princípios, fins públicos, programas de ação.
O
constitucionalismo chega vitorioso ao início do milênio, consagrado pelas
revoluções liberais e após haver disputado com inúmeras outras propostas
alternativas de construção de uma sociedade justa e de um Estado democrático
(12). A razão de seu sucesso está em ter conseguido oferecer ou, ao
menos, incluir no imaginário das pessoas: (i) legitimidade – soberania
popular na formação da vontade nacional, por meio do poder constituinte; (ii) limitação
do poder – repartição de competências, processos adequados de tomada de
decisão, respeito aos direitos individuais, inclusive das minorias; (iii) valores
– incorporação à Constituição material das conquistas sociais, políticas e
éticas acumuladas no patrimônio da humanidade.
Antes
de encerrar este tópico, é de proveito confrontar estas idéias – reconfortantes
e apaziguadoras – com o mundo real à volta, com a história e seus descaminhos.
A injustiça passeia impunemente pelas ruas; a violência social e institucional
é o símbolo das grandes cidades; a desigualdade entre pessoas e países salta
entre os continentes; a intolerância política, racial, tribal, religiosa povoa
ambos os hemisférios. Nada assegura que as conclusões alinhavadas nos
parágrafos acima sejam produto inequívoco de um conhecimento racional. Podem
expressar apenas a ideologia ou o desejo. Um esforço de estabilização,
segurança e paz onde talvez preferissem luta os dois terços da população
mundial sem acesso ao frutos do progresso, ao consumo e mesmo à alimentação.
A
crença na Constituição e no constitucionalismo não deixa de ser uma espécie de
fé: exige que se acredite em coisas que não são direta e imediatamente
apreendidas pelos sentidos. Como nas religiões semíticas – judaísmo,
cristianismo e islamismo –, tem seu marco zero, seus profetas e acena com o
paraíso: vida civilizada, justiça e talvez até felicidade. Como se percebe, o
projeto da modernidade não se consumou. Por isso não pode ceder passagem. Não
no direito constitucional. A pós-modernidade, na porção em que apreendida pelo
pensamento neoliberal, é descrente do constitucionalismo em geral, e o vê como
um entrave ao desmonte do Estado social (13). Nesses tempos de
tantas variações esotéricas, se lhe fosse dada a escolha, provavelmente
substituiria a Constituição por um mapa astral.
Capítulo
II: Algumas bases teóricas
I.
A DOGMÁTICA JURÍDICA TRADICIONAL E SUA SUPERAÇÃO (14)
O
Direito é uma invenção humana, um fenômeno histórico e cultural, concebido como
técnica de solução de conflitos e instrumento de pacificação social. A família
jurídica romano-germânica surge e desenvolve-se em torno das relações privadas,
com o direito civil no centro do sistema. Seus institutos, conceitos e idéias
fizeram a história de povos diversos e atravessaram os tempos. O Estado moderno
surge no século XVI, ao final da Idade Média, sobre as ruínas do feudalismo e
fundado no direito divino dos reis. Na passagem do Estado absolutista para o
Estado liberal, o Direito incorpora o jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII
e XVIII, matéria prima das revoluções francesa e americana. O Direito moderno,
em suas categorias principais, consolida-se no século XIX, já arrebatado pela
onda positivista, com status e ambição de ciência.
Surgem
os mitos. A lei passa a ser vista como expressão superior da razão. A ciência
do Direito – ou, também, teoria geral do Direito, dogmática jurídica – é o
domínio asséptico da segurança e da justiça. O Estado é a fonte única do poder
e do Direito. O sistema jurídico é completo e auto-suficiente: lacunas
eventuais são resolvidas internamente, pelo costume, pela analogia, pelos
princípios gerais. Separado da filosofia do direito por incisão profunda, a
dogmática jurídica volta seu conhecimento apenas para a lei e o ordenamento
positivo, sem qualquer reflexão sobre seu próprio saber e seus fundamentos de
legitimidade.
Na
aplicação desse direito puro e idealizado, pontifica o Estado como árbitro
imparcial. A interpretação jurídica é um processo silogístico de subsunção dos
fatos à norma. O juiz – la bouche qui prononce les paroles de la loi
(15) – é um revelador de verdades abrigadas no comando geral e
abstrato da lei. Refém da separação de Poderes, não lhe cabe qualquer papel
criativo. Em síntese simplificadora, estas algumas das principais
características do Direito na perspectiva clássica: a) caráter científico; b)
emprego da lógica formal; c) pretensão de completude; d) pureza científica; e)
racionalidade da lei e neutralidade do intérprete. Tudo regido por um ritual
solene, que abandonou a peruca, mas conservou a tradição e o formalismo. Têmis,
vendada, balança na mão, é o símbolo maior, musa de muitas gerações: o Direito
produz ordem e justiça, com equilíbrio e igualdade.
Ou
talvez não seja bem assim.
II.
A TEORIA CRÍTICA DO DIREITO (16)
Sob
a designação genérica de teoria crítica do direito, abriga-se um conjunto de
movimentos e de idéias que questionam o saber jurídico tradicional na maior
parte de suas premissas: cientificidade, objetividade, neutralidade,
estatalidade, completude. Funda-se na constatação de que o Direito não lida com
fenômenos que se ordenem independentemente da atuação do sujeito, seja o
legislador, o juiz ou o jurista. Este engajamento entre sujeito e objeto
compromete a pretensão científica do Direito e, como conseqüência, seu ideal de
objetividade, de um conhecimento que não seja contaminado por opiniões,
preferências, interesses e preconceitos.
A
teoria crítica, portanto, enfatiza o caráter ideológico do Direito,
equiparando-o à política, a um discurso de legitimação do poder. O Direito
surge, em todas as sociedades organizadas, como a institucionalização dos
interesses dominantes, o acessório normativo da hegemonia de classe. Em nome da
racionalidade, da ordem, da justiça, encobre-se a dominação, disfarçada por uma
linguagem que a faz parecer natural e neutra. A teoria crítica preconiza,
ainda, a atuação concreta, a militância do operador jurídico, à vista da
concepção de que o papel do conhecimento não é somente a interpretação do
mundo, mas também a sua transformação (17).
Uma
das teses fundamentais do pensamento crítico é a admissão de que o Direito
possa não estar integralmente contido na lei, tendo condição de existir
independentemente da bênção estatal, da positivação, do reconhecimento expresso
pela estrutura de poder. O intérprete deve buscar a justiça, ainda quando não a
encontre na lei. A teoria crítica resiste, também, à idéia de completude, de
auto-suficiência e de pureza, condenando a cisão do discurso jurídico,
que dele afasta os outros conhecimentos teóricos. O estudo do sistema normativo
(dogmática jurídica) não pode insular-se da realidade (sociologia do direito) e
das bases de legitimidade que devem inspirá-lo e possibilitar a sua própria
crítica (filosofia do direito) (18). A interdisciplinariedade, que
colhe elementos em outras áreas do saber – inclusive os menos óbvios, como a
psicanálise ou a lingüística – tem uma fecunda colaboração a prestar ao
universo jurídico.
O
pensamento crítico teve expressão na produção acadêmica de diversos países,
notadamente nas décadas de 70 e 80. Na França, a Critique du Droit,
influenciada por Althusser, procurou atribuir caráter científico ao Direito,
mas uma ciência de base marxista, que seria a única ciência verdadeira
(19). Nos Estados Unidos, os Critical Legal Studies, também sob
influência marxista – embora menos explícita –, difundiram os fundamentos de
sua crença de que law is politics, convocando os operadores jurídicos a
recompor a ordem legal e social com base em princípios humanísticos e
comunitários (20). Anteriormente, na Alemanha, a denominada Escola
de Frankfurt lançara algumas das bases da teoria crítica, questionando o
postulado positivista da separação entre ciência e ética, completando a
elaboração de duas categorias nucleares – a ideologia e a práxis (21)
–, bem como identificando a existência de duas modalidades de razão: a
instrumental e a crítica (22). A produção filosófica de pensadores
como Horkheimer, Marcuse, Adorno e, mais recentemente, Jürgen Habermas, terá
sido a principal influência pós-marxista da teoria crítica.
No
Brasil, a teoria crítica do direito compartilhou dos mesmos fundamentos
filosóficos que a inspiraram em sua matriz européia, tendo se manifestado em
diferentes vertentes de pensamento: epistemológico, sociológico, semiológico
(23), psicanalítico (24) e teoria crítica da sociedade
(25). Todas elas tinham como ponto comum a denúncia do Direito como
instância de poder e instrumento de dominação de classe, enfatizando o papel da
ideologia na ocultação e legitimação dessas relações. O pensamento crítico no
país alçou vôos de qualidade e prestou inestimável contribuição científica. Mas
não foi um sucesso de público.
Nem
poderia ter sido diferente. O embate para ampliar o grau de conscientização dos
operadores jurídicos foi desigual. Além da hegemonia quase absoluta da
dogmática convencional – beneficiária da tradição e da inércia –, a teoria
crítica conviveu, também, com um inimigo poderoso: a ditadura militar e seu
arsenal de violência institucional, censura e dissimulação. A atitude
filosófica em relação à ordem jurídica era afetada pela existência de uma legalidade
paralela – dos atos institucionais e da segurança nacional – que,
freqüentemente, desbordava para um Estado de fato. Não eram tempos amenos para
o pensamento de esquerda e para o questionamento das estruturas de poder
político e de opressão social.
Na
visão de curto prazo, o trabalho de desconstrução desenvolvido pela
teoria crítica, voltado para a desmistificação do conhecimento jurídico
convencional, trouxe algumas conseqüências problemáticas (26),
dentre as quais: a) o abandono do Direito como espaço de atuação das forças
progressistas; b) o desperdício das potencialidades interpretativas das normas
em vigor. Disso resultou que o mundo jurídico tornou-se feudo do pensamento
conservador ou, no mínimo, tradicional. E que não se exploraram as
potencialidades da aplicação de normas de elevado cunho social, algumas
inscritas na própria Constituição outorgada pelo regime militar.
Porém,
dentro de uma visão histórica mais ampla, é impossível desconsiderar a
influência decisiva que a teoria crítica teve no surgimento de uma geração
menos dogmática, mais permeável a outros conhecimentos teóricos e sem os mesmos
compromissos com o status quo. A teoria crítica deve ser vista, nesse
início de século, na mesma perspectiva que a teoria marxista: apesar de seu
refluxo na quadra atual, sobretudo após os eventos desencadeados a partir de
1989, conserva as honras de ter modificado e elevado o patamar do conhecimento
convencional.
A
redemocratização no Brasil impulsionou uma volta ao Direito (27). É
certo que já não se alimenta a crença de que a lei seja "a expressão da
vontade geral institucionalizada" (28) e se reconhece que,
freqüentemente, estará a serviço de interesses, e não da razão. Mas ainda assim
ela significa um avanço histórico: fruto do debate político, ela representa a
despersonalização do poder e a institucionalização da vontade política. O tempo
das negações absolutas passou. Não existe compromisso com o outro sem a lei
(29). É preciso, portanto, explorar as potencialidades positivas da
dogmática jurídica, investir na interpretação principiológica, fundada em
valores, na ética e na razão possível. A liberdade de que o pensamento
intelectual desfruta hoje impõe compromissos tanto com a legalidade democrática
como com a conscientização e a emancipação. Não há, no particular, nem
incompatibilidade nem exclusão.
Capítulo
III : Algumas bases filosóficas (30)
I.
ASCENSÃO E DECADÊNCIA DO JUSNATURALISMO
O
termo jusnaturalismo identifica uma das principais correntes filosóficas que
tem acompanhado o Direito ao longo dos séculos, fundada na existência de um direito
natural. Sua idéia básica consiste no reconhecimento de que há, na
sociedade, um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas que não
decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado, isto é, independem do direito
positivo. Esse direito natural tem validade em si, legitimado por uma ética
superior, e estabelece limites à própria norma estatal. Tal crença contrapõe-se
a outra corrente filosófica de influência marcante, o positivismo jurídico, que
será examinado mais à frente.
O
rótulo genérico do jusnaturalismo tem sido aplicado a fases históricas
diversas e a conteúdos heterogêneos, que remontam à antigüidade clássica
(31) e chegam aos dias de hoje, passando por densa e complexa elaboração
ao longo da Idade Média (32). A despeito das múltiplas variantes, o
direito natural apresenta-se, fundamentalmente, em duas versões: a) a de uma
lei estabelecida pela vontade de Deus; b) a de uma lei ditada pela razão. O
direito natural moderno começa a formar-se a partir do século XVI, procurando
superar o dogmatismo medieval e escapar do ambiente teológico em que se
desenvolveu. A ênfase na natureza e na razão humanas, e não mais na origem
divina, é um dos marcos da Idade Moderna e base de uma nova cultura laica,
consolidada a partir do século XVII (33).
A
modernidade, que se iniciara no século XVI, com a reforma protestante, a
formação dos Estados nacionais e a chegada dos europeus à América,
desenvolve-se em um ambiente cultural não mais submisso à teologia cristã.
Cresce o ideal de conhecimento, fundado na razão, e o de liberdade, no início
de seu confronto com o absolutismo. O jusnaturalismo passa a ser a filosofia
natural do Direito e associa-se ao iluminismo (34) na crítica à
tradição anterior, dando substrato jurídico-filosófico às duas grandes
conquistas do mundo moderno: a tolerância religiosa e a limitação ao poder do
Estado. A burguesia articula sua chegada ao poder.
A
crença de que o homem possui direitos naturais, vale dizer, um espaço de
integridade e de liberdade a ser preservado e respeitado pelo próprio Estado,
foi o combustível das revoluções liberais e fundamento das doutrinas políticas
de cunho individualista que enfrentaram a monarquia absoluta. A Revolução Francesa
e sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) (35) e,
anteriormente, a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776)
(36), estão impregnados de idéias jusnaturalistas, sob a influência
marcante de John Locke (37), autor emblemático dessa corrente
filosófica e do pensamento contratualista, no qual foi antecedido por Hobbes
(38) e sucedido por Rousseau (39). Sem embargo da precedência
histórica dos ingleses, cuja Revolução Gloriosa foi concluída em 1689, o
Estado liberal ficou associado a esses eventos e a essa fase da história da
humanidade (40). O constitucionalismo moderno inicia sua trajetória.
O
jusnaturalismo racionalista esteve uma vez mais ao lado do iluminismo no
movimento de codificação do Direito, no século XVIII, cuja maior realização foi
o Código Civil francês – o Código de Napoleão –, que entrou em vigor em 1804.
Em busca de clareza, unidade e simplificação, incorporou-se à tradição jurídica
romano-germânica a elaboração de códigos, isto é, documentos legislativos que
agrupam e organizam sistematicamente as normas em torno de determinado objeto.
Completada a revolução burguesa, o direito natural viu-se "domesticado e
ensinado dogmaticamente" (41). A técnica de codificação tende a
promover a identificação entre direito e lei. A Escola da Exegese, por sua vez,
irá impor o apego ao texto e à interpretação gramatical e histórica, cerceando
a atuação criativa do juiz em nome de uma interpretação pretensamente objetiva
e neutra (42).
O
advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos
escritos e o êxito do movimento de codificação simbolizaram a vitória do
direito natural, o seu apogeu. Paradoxalmente, representaram, também, a sua
superação histórica (43). No início do século XIX, os direitos
naturais, cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois milênios, haviam
se incorporado de forma generalizada aos ordenamentos positivos (44).
Já não traziam a revolução, mas a conservação. Considerado metafísico e
anti-científico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela
onipotência positivista do século XIX.
II.
ASCENSÃO E DECADÊNCIA DO POSITIVISMO JURÍDICO
O
positivismo filosófico foi fruto de uma idealização do conhecimento científico,
uma crença romântica e onipotente de que os múltiplos domínios da indagação e
da atividade intelectual pudessem ser regidos por leis naturais, invariáveis,
independentes da vontade e da ação humana. O homem chegara à sua maioridade
racional e tudo passara a ser ciência: o único conhecimento válido, a única
moral, até mesmo a única religião. O universo, conforme divulgado por Galileu,
teria uma linguagem matemática, integrando-se a um sistema de leis a serem
descobertas, e os métodos válidos nas ciências da natureza deviam ser
estendidos às ciências sociais (45).
As
teses fundamentais do positivismo filosófico, em síntese simplificadora, podem
ser assim expressas:
(i)
a ciência é o único conhecimento verdadeiro, depurado de indagações teológicas
ou metafísicas, que especulam acerca de causas e princípios abstratos,
insuscetíveis de demonstração;
(ii)
o conhecimento científico é objetivo. Funda-se na distinção entre sujeito e
objeto e no método descritivo, para que seja preservado de opiniões,
preferências ou preconceitos;
(iii)
o método científico empregado nas ciências naturais, baseado na observação e na
experimentação, deve ser estendido a todos os campos de conhecimento, inclusive
às ciências sociais.
O
positivismo jurídico foi a importação do positivismo filosófico para o mundo do
Direito, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com
características análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade
científica, com ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica,
apartou o Direito da moral e dos valores transcendentes. Direito é norma, ato
emanado do Estado com caráter imperativo e força coativa. A ciência do Direito,
como todas as demais, deve fundar-se em juízos de fato, que visam ao
conhecimento da realidade, e não em juízos de valor, que representam uma
tomada de posição diante da realidade (46). Não é no âmbito do
Direito que se deve travar a discussão acerca de questões como legitimidade e
justiça.
O
positivismo comportou algumas variações (47) e teve seu ponto
culminante no normativismo de Hans Kelsen (48). Correndo o risco das
simplificações redutoras, é possível apontar algumas características essenciais
do positivismo jurídico:
(i)
a aproximação quase plena entre Direito e norma;
(ii)
a afirmação da estatalidade do Direito: a ordem jurídica é una e emana do
Estado;
(iii)
a completude do ordenamento jurídico, que contém conceitos e instrumentos
suficientes e adequados para solução de qualquer caso, inexistindo lacunas;
(iv)
o formalismo: a validade da norma decorre do procedimento seguido para a sua
criação, independendo do conteúdo. Também aqui se insere o dogma da subsunção
(49), herdado do formalismo alemão.
O
positivismo tornou-se, nas primeiras décadas do século XX, a filosofia dos
juristas. A teoria jurídica empenhava-se no desenvolvimento de idéias e de
conceitos dogmáticos, em busca da cientificidade anunciada. O Direito reduzia-se
ao conjunto de normas em vigor, considerava-se um sistema perfeito e, como todo
dogma, não precisava de qualquer justificação além da própria existência
(50). Com o tempo, o positivismo sujeitou-se à crítica crescente e
severa, vinda de diversas procedências, até sofrer dramática derrota histórica.
A troca do ideal racionalista de justiça pela ambição positivista de certeza
jurídica custou caro à humanidade.
Conceitualmente,
jamais foi possível a transposição totalmente satisfatória dos métodos das
ciências naturais para a área de humanidades. O Direito, ao contrário de outros
domínios, não tem nem pode ter uma postura puramente descritiva da realidade,
voltada para relatar o que existe. Cabe-lhe prescrever um dever-ser e
fazê-lo valer nas situações concretas. O Direito tem a pretensão de atuar sobre
a realidade, conformando-a e transformando-a. Ele não é um dado, mas uma
criação. A relação entre o sujeito do conhecimento e seu objeto de
estudo – isto é, entre o intérprete, a norma e a realidade – é tensa e intensa.
O ideal positivista de objetividade e neutralidade é insuscetível de
realizar-se.
O
positivismo pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso
assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de
fato. Mas resultou sendo uma ideologia, movida por juízos de valor, por
ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer
o Direito (51). O fetiche da lei e o legalismo acrítico,
subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos
de matizes variados. A idéia de que o debate acerca da justiça se encerrava
quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem
estabelecida. Qualquer ordem.
Sem
embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras
décadas do século (52), a decadência do positivismo é
emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na
Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do
quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os
principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência
a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a
idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como um
estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha
mais aceitação no pensamento esclarecido.
A
superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo
abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do
Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a
designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a
definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova
hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais (53).
III.
PÓS-POSITIVISMO E A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS (54)
O
Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no
positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e sua
rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo
civilizatório e às ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade. Por outro
lado, o discurso científico impregnara o Direito. Seus operadores não desejavam
o retorno puro e simples ao jusnaturalismo, aos fundamentos vagos, abstratos ou
metafísicos de uma razão subjetiva. Nesse contexto, o pós-positivismo não surge
com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento
convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao
ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e
legitimidade.
O
constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma
reaproximação entre ética e Direito (55). Para poderem beneficiar-se
do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico,
esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar,
materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição,
explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a
liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução de seus significados. Outros,
conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a
separação dos Poderes e o Estado democrático de direito. Houve, ainda,
princípios que se incorporaram mais recentemente ou, ao menos, passaram a ter
uma nova dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da
solidariedade e da reserva de justiça.
A
novidade das últimas décadas não está, propriamente, na existência de
princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica. Os princípios,
vindos dos textos religiosos, filosóficos ou jusnaturalistas, de longa data
permeiam a realidade e o imaginário do Direito, de forma direta ou indireta. Na
tradição judaico-cristã, colhe-se o mandamento de respeito ao próximo,
princípio magno que atravessa os séculos e inspira um conjunto amplo de normas.
Da filosofia grega origina-se o princípio da não-contradição, formulado por
Aristóteles, que se tornou uma das leis fundamentais do pensamento: "Nada
pode ser e não ser simultaneamente", preceito subjacente à idéia de que o
Direito não tolera antinomias. No direito romano pretendeu-se enunciar a
síntese dos princípios básicos do Direito: "Viver honestamente, não lesar
a outrem e dar a cada um o que é seu" (56). Os princípios, como
se percebe, vêm de longe e desempenham papéis variados. O que há de singular na
dogmática jurídica da quadra histórica atual é o reconhecimento de sua normatividade.
Os
princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não (57), passam
a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a
ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão
unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando
tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja
atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema
apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à
formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis
desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao
sistema; c) condicionar a atividade do intérprete.
Na
trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram de
conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam
uma dimensão puramente axiológica (58), ética, sem eficácia jurídica
ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento
de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular,
enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras.
Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às
situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de
abstração e uma finalidade mais destacada no sistema. Inexiste hierarquia entre
ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Isto não
impede que princípios e regras desempenhem funções distintas dentro do
ordenamento.
A
distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares da moderna
dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo
legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a
ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores
jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos
direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma
nessa matéria deve especial tributo à sistematização de Ronald Dworkin
(59). Sua elaboração acerca dos diferentes papéis desempenhados por
regras e princípios ganhou curso universal e passou a constituir o conhecimento
convencional na matéria.
Regras
são proposições normativas aplicáveis sob a forma de tudo ou nada ("all
or nothing"). Se os fatos nela previstos ocorrerem, a regra deve
incidir, de modo direto e automático, produzindo seus efeitos. Por exemplo: a
cláusula constitucional que estabelece a aposentadoria compulsória por idade é
uma regra. Quando o servidor completa setenta anos, deve passar à inatividade,
sem que a aplicação do preceito comporte maior especulação. O mesmo se passa
com a norma constitucional que prevê que a criação de uma autarquia depende de
lei específica. O comando é objetivo e não dá margem a elaborações mais
sofisticadas acerca de sua incidência. Uma regra somente deixará de incidir
sobre a hipótese de fato que contempla se for inválida, se houver outra mais
específica ou se não estiver em vigor. Sua aplicação se dá, predominantemente,
mediante subsunção.
Princípios
contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma
decisão política relevante, e indicam uma determinada direção a seguir. Ocorre
que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões,
valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de
princípios, portanto, não só é possível, como faz parte da lógica do sistema,
que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo
ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma
dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos do caso concreto, o
intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com
antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e
o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito
de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá,
predominantemente, mediante ponderação (60).
Nesse
contexto, impõe-se um breve aprofundamento da questão dos conflitos normativos.
O Direito, como se sabe, é um sistema de normas harmonicamente articuladas. Uma
situação não pode ser regida simultaneamente por duas disposições legais que se
contraponham. Para solucionar essas hipóteses de conflito de leis, o ordenamento
jurídico se serve de três critérios tradicionais: o da hierarquia – pelo
qual a lei superior prevalece sobre a inferior –, o cronológico – onde a
lei posterior prevalece sobre a anterior – e o da especialização – em
que a lei específica prevalece sobre a lei geral (61). Estes
critérios, todavia, não são adequados ou plenamente satisfatórios quando a
colisão se dá entre normas constitucionais, especialmente entre os princípios
constitucionais, categoria na qual devem ser situados os conflitos entre
direitos fundamentais (62). Relembre-se: enquanto as regras são
aplicadas na plenitude da sua força normativa – ou, então, são violadas –, os
princípios são ponderados.
A
denominada ponderação de valores ou ponderação de interesses é a
técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos
princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha a
supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer
concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável,
sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em
oposição. O legislador não pode, arbitrarimente, escolher um dos interesses em
jogo e anular o outro, sob pena de violar o texto constitucional. Seus
balizamentos devem ser o princípio da razoabilidade (v. infra) e a
preservação, tanto quanto possível, do núcleo mínimo do valor que esteja
cedendo passo (63). Não há, aqui, superioridade formal de nenhum dos
princípios em tensão, mas a simples determinação da solução que melhor atende o
ideário constitucional na situação apreciada (64).
Cabe assinalar, antes de
encerrar a discussão acerca da distinção qualitativa entre regra e princípio,
que ela nem sempre é singela. As dificuldades decorrem de fatores diversos,
como as vicissitudes da técnica legislativa, a natureza das coisas e os limites
da linguagem. Por vezes, uma regra conterá termo ou locução de conteúdo
indeterminado, aberto ou flexível, como, por exemplo, ordem pública, justa
indenização, relevante interesse coletivo, melhor interesse do menor (65).
Em hipóteses como essas, a regra desempenhará papel semelhante ao dos
princípios, permitindo ao intérprete integrar com sua subjetividade o comando
normativo e formular a decisão concreta que melhor irá reger a situação de fato
apreciada. Em algumas situações, uma regra excepcionará a aplicação de um
princípio. Em outras, um princípio poderá paralisar a incidência de uma regra.
Enfim, há um conjunto amplo de possibilidades nessa matéria. Esta não é,
todavia, a instância própria para desenvolvê-las.
A
perspectiva pós-positivista e principiológica do Direito influenciou
decisivamente a formação de uma moderna hermenêutica constitucional. Assim, ao
lado dos princípios materiais envolvidos, desenvolveu-se um catálogo de
princípios instrumentais e específicos de interpretação constitucional
(66). Do ponto de vista metodológico, o problema concreto a ser resolvido
passou a disputar com o sistema normativo a primazia na formulação da solução
adequada (67), solução que deve fundar-se em uma linha de
argumentação apta a conquistar racionalmente os interlocutores (68),
sendo certo que o processo interpretativo não tem como personagens apenas os
juristas, mas a comunidade como um todo (69).
O
novo século se inicia fundado na percepção de que o Direito é um sistema aberto
de valores. A Constituição, por sua vez, é um conjunto de princípios e regras
destinados a realizá-los, a despeito de se reconhecer nos valores uma dimensão
suprapositiva. A idéia de abertura se comunica com a Constituição e
traduz a sua permeabilidade a elementos externos e a renúncia à pretensão de
disciplinar, por meio de regras específicas, o infinito conjunto de
possibilidades apresentadas pelo mundo real (70). Por ser o
principal canal de comunicação entre o sistema de valores e o sistema jurídico,
os princípios não comportam enumeração taxativa. Mas, naturalmente, existe um
amplo espaço de consenso, onde têm lugar alguns dos protagonistas da discussão
política, filosófica e jurídica do século que se encerrou: Estado de direito
democrático, liberdade, igualdade, justiça.
Há
dois outros princípios que despontaram no Brasil nos últimos anos: o da
razoabilidade e o da dignidade da pessoa humana. O primeiro percorreu longa
trajetória no direito anglo-saxão – notadamente nos Estados Unidos (71)
– e chegou ao debate nacional amadurecido pela experiência alemã, que o vestiu
com o figurino da argumentação romano-germânica e batizou-o de princípio da
proporcionalidade (72). O segundo – a dignidade da pessoa humana –
ainda vive, no Brasil e no mundo, um momento de elaboração doutrinária e de
busca de maior densidade jurídica. Procura-se estabelecer os contornos de uma
objetividade possível, que permita ao princípio transitar de sua dimensão ética
e abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais.
O
princípio da razoabilidade (73) é um mecanismo para controlar a
discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário
invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação
entre o fim perseguido e o meio empregado; (b) a medida não seja exigível ou
necessária, havendo caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado com
menor ônus a um direito individual; (c) não haja proporcionalidade em sentido
estrito, ou seja, o que se perde com a medida tem maior relevo do que aquilo
que se ganha. O princípio, com certeza, não liberta o juiz dos limites e
possibilidades oferecidos pelo ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata.
A razoabilidade, contudo, abre ao Judiciário uma estratégia de ação construtiva
para produzir o melhor resultado, ainda quando não seja o único possível ¾ ou mesmo aquele que, de maneira mais óbvia,
resultaria da aplicação acrítica da lei. A jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal tem se valido do princípio para invalidar discriminações infundadas,
exigências absurdas e mesmo vantagens indevidas.
O
princípio da dignidade da pessoa humana (74) identifica um espaço de
integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no
mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à
sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do
espírito como com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a este
princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua
afirmação um símbolo do novo tempo (75). Ele representa a superação
da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da
incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de
ser, pensar e criar.
Dignidade
da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao
patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos
direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos
e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial
(76), locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para
a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém
daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco de
prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão
subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui:
renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento
instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e
efetivação dos direitos (77).
Aos
poucos se vai formando uma massa crítica de jurisprudência acerca do princípio,
tendo como referência emblemática a decisão do Conselho de Estado francês, no
curioso caso Morsang-sur-Orge (78). No Brasil, o princípio
tem sido fundamento de decisões importantes, superadoras do legalismo estrito,
como a proferida pelo Superior Tribunal de Justiça ao autorizar o levantamento
do FGTS por mãe de pessoa portadora do vírus da AIDS, para ajudá-la no
tratamento da doença, independentemente do fato de esta hipótese estar ou não
tipificada na lei como causa para o saque do fundo (79). Em outro
acórdão, de elevada inspiração, o Tribunal deferiu habeas corpus em caso
de prisão civil em alienação fiduciária, após constatar, dentre outros fatores,
que o aumento absurdo da dívida por força de juros altíssimos comprometia a
sobrevida digna do impetrante (80). No Supremo Tribunal Federal, a
preservação da dignidade da pessoa humana foi um dos fundamentos invocados para
liberar réu em ação de investigação de paternidade da condução forçada para
submeter-se a exame de DNA (81). A demonstrar a dificuldade na
definição do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, além dos
votos vencidos proferidos neste caso, parte da doutrina sustentou que, ao
contrário da tese central do acórdão, a preservação da dignidade da pessoa
humana estava em assegurar o direito do autor da ação de ter confirmada a sua
filiação, como elemento integrante da sua identidade pessoal (82).
Encerra-se
esse tópico com uma síntese das principais idéias nele expostas. O
pós-positivismo é uma superação do legalismo, não com recurso a idéias
metafísicas ou abstratas, mas pelo reconhecimento de valores compartilhados por
toda a comunidade. Estes valores integram o sistema jurídico, mesmo que não
positivados em um texto normativo específico. Os princípios expressam os
valores fundamentais do sistema, dando-lhe unidade e condicionando a atividade
do intérprete. Em um ordenamento jurídico pluralista e dialético, princípios
podem entrar em rota de colisão. Em tais situações, o intérprete, à luz dos
elementos do caso concreto, da proporcionalidade e da preservação do núcleo
fundamental de cada princípio e dos direitos fundamentais, procede a uma
ponderação de interesses. Sua decisão deverá levar em conta a norma e os fatos,
em uma interação não formalista, apta a produzir a solução justa para o caso
concreto, por fundamentos acolhidos pela comunidade jurídica e pela sociedade
em geral. Além dos princípios tradicionais como Estado de direito democrático,
igualdade e liberdade, a quadra atual vive a consolidação do princípio da
razoabilidade e o desenvolvimento do princípio da dignidade da pessoa humana.
Capítulo
Final: Conclusão
I.
A ASCENSÃO CIENTÍFICA E POLÍTICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL NO BRASIL
O
direito constitucional brasileiro vive um momento virtuoso. Do ponto de vista
de sua elaboração científica e da prática jurisprudencial, duas mudanças de
paradigma deram-lhe nova dimensão: a) o compromisso com a efetividade de suas
normas (83); e b) o desenvolvimento de uma dogmática da interpretação
constitucional (84). Passou a ser premissa do estudo da Constituição
o reconhecimento de sua força normativa (85), do caráter vinculativo
e obrigatório de suas disposições, superada a fase em que era tratada como um
conjunto de aspirações políticas e uma convocação à atuação dos Poderes
Públicos. De outra parte, embora se insira no âmbito da interpretação jurídica,
a especificidade das normas constitucionais, com seu conteúdo próprio, sua
abertura e superioridade jurídica, exigiram o desenvolvimento de novos métodos
hermenêuticos e de princípios específicos de interpretação constitucional.
Essas
transformações redefiniram a posição da Constituição na ordem jurídica
brasileira. De fato, nas últimas décadas, o Código Civil foi perdendo sua
posição de preeminência, mesmo no âmbito das relações privadas, onde se
formaram diversos microssistemas (consumidor, criança e adolescente, locações,
direito de família). Progressivamente, foi se consumando no Brasil um fenômeno
anteriormente verificado na Alemanha, após a Segunda Guerra: a passagem da Lei
Fundamental para o centro do sistema. À supremacia até então meramente formal,
agregou-se uma valia material e axiológica à Constituição, potencializada pela
abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios (86).
A
Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si – com a sua ordem,
unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais
ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem
constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e
apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela
consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional não
identifica apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros
domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica
constitucional (87).
A
ascensão científica e política do direito constitucional brasileiro é
contemporânea da reconstitucionalização do país com a Carta de 1988, em uma
intensa relação de causa e efeito. A Assembléia Constituinte foi cenário de
ampla participação da sociedade civil, que permanecera alijada do processo
político por mais de duas décadas. O produto final de seu trabalho foi
heterogêneo. De um lado, avanços como a inclusão de uma generosa carta de
direitos, a recuperação das prerrogativas dos Poderes Legislativo e Judiciário,
a redefinição da Federação. De outro, no entanto, o texto casuístico, prolixo,
corporativo, incapaz de superar a perene superposição entre o espaço público e
o espaço privado no país. A Constituição de 1988 não é a Carta da nossa
maturidade institucional, mas das nossas circunstâncias. Não se deve, contudo,
subestimar o papel que tem desempenhado na restauração democrática brasileira.
Sob sua vigência vem se desenrolando o mais longo período de estabilidade
institucional da história do país, com a absorção de graves crises políticas
dentro do quadro da legalidade constitucional. É nossa primeira Constituição
verdadeiramente normativa e, a despeito da compulsão reformadora que abala a
integridade de seu texto, vem consolidando um inédito sentimento constitucional
(88).
O
constitucionalismo, por si só, não é capaz de derrotar algumas das vicissitudes
que têm adiado a plena democratização da sociedade brasileira. (O Direito tem
seus limites e possibilidades, não sendo o único e nem sequer o melhor
instrumento de ação social). Tais desvios envolvem, em primeiro lugar, a ideologia
da desigualdade. Desigualdade econômica, que se materializa no
abismo entre os que têm e os que não têm, com a conseqüente dificuldade de se
estabelecer um projeto comum de sociedade. Desigualdade política, que
faz com que importantes opções de políticas públicas atendam prioritariamente
aos setores que detêm força eleitoral e parlamentar, mesmo quando já sejam os
mais favorecidos. Desigualdade filosófica: o vício nacional de buscar o
privilégio em vez do direito, aliado à incapacidade de perceber o outro, o
próximo (89).
Em
segundo lugar, enfraquece e adia o projeto da democratização mais profunda da
sociedade brasileira a corrupção disseminada e institucionalizada. Nem
sempre a do dinheiro, mas também a do favor político e a da amizade. No sistema
eleitoral, a maldição dos financiamentos eleitorais e as relações
promíscuas que engendram. No sistema orçamentário, o estigma insuperado
do fisiologismo e das negociações de balcão nas votações no âmbito do
Congresso. No sistema tributário, a cultura da sonegação, estimulada
pela voracidade fiscal e por esquemas quase formais de extorsão e composição.
No sistema de segurança pública, profissionais mal pagos, mal treinados,
vizinhos de porta daqueles a quem deviam policiar, envolvem-se endemicamente
com a criminalidade e a venda de proteção. A exemplificação é extensa e
desanimadora.
A
superação dos ciclos do atraso e o amadurecimento dos povos inserem-se em um
processo de longo prazo, que exige engajamento e ideal. O novo direito
constitucional brasileiro tem sido um aliado valioso e eficaz na busca desses
desideratos. Mas o aprofundamento democrático impõe, também, o resgate de
valores éticos, o exercício da cidadania e um projeto de país inclusivo de toda
a gente. Um bom programa para o próximo milênio.
II.
SÍNTESE DAS IDÉIAS DESENVOLVIDAS
Ao
final desta exposição, que procurou reconstituir alguns dos antecedentes
teóricos e filosóficos do direito constitucional brasileiro, é possível
compendiar de forma sumária as idéias expostas, nas proposições seguintes:
1.
O constitucionalismo foi o projeto político vitorioso ao final do milênio. A
proposta do minimalismo constitucional, que procura destituir a Lei Maior de
sua dimensão política e axiológica, para reservar-lhe um papel puramente
procedimental, não é compatível com as conquistas do processo civilizatório. O
ideal democrático realiza-se não apenas pelo princípio majoritário, mas também
pelo compromisso na efetivação dos direitos fundamentais.
2.
A dogmática jurídica tradicional desenvolveu-se sob o mito da objetividade do
Direito e o da neutralidade do intérprete. Coube à teoria crítica desfazer
muitas das ilusões positivistas do Direito, enfatizando seu caráter ideológico
e o papel que desempenha como instrumento de dominação econômica e social,
disfarçada por uma linguagem que a faz parecer natural e justa. Sua
contribuição renovou a percepção do conhecimento jurídico convencional, sem,
todavia, substituí-lo por outro. Passada a fase da desconstrução, a perspectiva
crítica veio associar-se à boa doutrina para dar ao Direito uma dimensão
transformadora e emancipatória, mas sem desprezo às potencialidades da
legalidade democrática.
3.
O pós-positivismo identifica um conjunto de idéias difusas que ultrapassam o
legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias da
razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a ascensão dos valores, o reconhecimento
da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais.
Com ele, a discussão ética volta ao Direito. O pluralismo político e jurídico,
a nova hermenêutica e a ponderação de interesses são componentes dessa
reelaboração teórica, filosófica e prática que fez a travessia de um milênio
para o outro.
4.
O novo direito constitucional brasileiro, cujo desenvolvimento coincide com o
processo de redemocratização e reconstitucionalização do país, foi fruto de
duas mudanças de paradigma: a) a busca da efetividade das normas
constitucionais, fundada na premissa da força normativa da Constituição; b) o
desenvolvimento de uma dogmática da interpretação constitucional, baseada em
novos métodos hermenêuticos e na sistematização de princípios específicos de
interpretação constitucional. A ascensão política e científica do direito
constitucional brasileiro conduziram-no ao centro do sistema jurídico, onde
desempenha uma função de filtragem constitucional de todo o direito
infraconstitucional, significando a interpretação e leitura de seus institutos
à luz da Constituição.
5.
O direito constitucional, como o direito em geral, tem possibilidades e
limites. A correção de vicissitudes crônicas da vida nacional, como a ideologia
da desigualdade e a corrupção institucional, depende antes da superação
histórica e política dos ciclos do atraso, do que de normas jurídicas. O
aprofundamento democrático no Brasil está subordinado ao resgate de valores
éticos, ao exercício da cidadania e a um projeto generoso e inclusivo de país.
Notas
1.
Zygmunt Bauman, A globalização: as conseqüências humanas, 1999; Ignacio
Ramonet, O pensamento único e os regimes globalitários, in Globalização: o
fato e o mito, 1998; André-Jean Arnaud, O direito entre modernidade e
globalização, 1999; Boaventura de Souza Santos, Uma cartografia
simbólica das representações sociais: prolegômenos a uma concepção pós-moderna
do direito, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 1996; José Eduardo
Faria, Globalização, autonomia decisória e política, in Margarida
Maria Lacombe Camargo (org.), 1988-1998: uma década de Constituição,
1999; Daniel Sarmento, Constituição e globalização: a crise dos paradigmas
do direito constitucional, Revista de Direito Administrativo 215/19, 1999;
Marilena Chauí, Público, privado, despotismo, in Adauto Novaes
(org.), Ética, 1992; Antônio Junqueira de Azevedo, O direito
pós-moderno e a codificação, in Anais da XVII Conferência Nacional da
Ordem dos Advogados do Brasil, v. I, 2000; Wilson Ramos Filho, Direito
pós-moderno: caos criativo e neoliberalismo, in Direito e neoliberalismo,
1996; Ted Honderich (editor), The Oxford Companion to Philosophy, 1995;
Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, 1998; Norbert Reich, Intervenção
do Estado na economia (reflexões sobre a pós-modernidade na teoria jurídica),
Revista de Direito Público 94/265.
2.
Cláudia Lima Marques, A crise científica do direito na pós-modernidade e
seus reflexos na pesquisa, in Cidadania e Justiça, n. 6, 1999:
"(Pós-modernidade) é uma tentativa de descrever o grande ceticismo, o fim
do racionalismo, o vazio teórico, a insegurança jurídica que se observam
efetivamente na sociedade, no modelo de Estado, nas formas de economia, na
ciência, nos princípios e nos valores de nossos povos nos dias atuais. Os
pensadores europeus estão a denominar este momento de rompimento (Umbruch),
de fim de uma era e de início de algo novo, ainda não identificado".
3. Sobre o tema da pré-compreensão,
vejam-se Karl Larenz, Metodología da ciencia do direito, 1997, p. 285
ss.; e Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, 1983, p. 44:
"El intérprete no puede captar el contenido da la norma desde un punto
cuasi arquimédico situado fuera de la existencia histórica sino únicamente
desde la concreta situación histórica en la que se encuentra, cuya plasmación
ha conformado sus hábitos mentales, condicionando sus conocimientos y sus
pre-juicios".
4.
Sobre esta temática, vejam-se Vicente de Paulo Barretto, Bioética,
biodireito e direitos humanos, in Ricardo Lobo Torres (org.), Teoria
dos direitos fundamentais, 1999; Luiz Edson Fachin, Bioética e
tecnologia, in Elementos críticos de direito de família, 1999; Maria
Helena Diniz, O estado atual do biodireito, 2001; e Heloísa Helena
Barboza e Vicente de Paula Barretto (orgs.), Temas de biodireito e bioética,
2001, onde se averbou: "As técnicas de reprodução humana assistida, o
mapeamento do genoma, o prolongamento da vida mediante transplantes, as
técnicas para alteração do sexo, a clonagem e a engenharia genética descortinam
de forma acelerada um cenário desconhecido e imprevisível, no qual o ser humano
é simultaneamente ator e espectador" (Heloísa Helena Barboza, Bioética
x biodireito: insuficiência dos conceitos jurídicos, p. 2).
5.
Como o comércio internacional não tem fronteiras, tende a ser regulado por
regras de fontes não nacionais, denominadas lex mercatoria, que
consagram o primado dos usos no comércio internacional e se materializam também
por meio dos contratos e cláusulas-tipo, jurisprudência arbitral,
regulamentações profissionais elaboradas por suas associações representativas e
princípios gerais comuns às legislações dos países.
6.
Nada obstante, não resisto à transcrição de trecho de José Carlos Barbosa
Moreira acerca da influência da globalização sobre a cultura e a linguagem no
Brasil (A subserviência cultural, in Temas de direito processual,
Sétima Série, 2001): "Às vezes me assalta a tentação de dizer, à guisa de
imagem, que a língua portuguesa, entre nós, está sendo repetidamente estuprada.
A imagem, contudo, não é boa: o estupro importa violência do sujeito ativo
sobre o passivo. Ora, não costuma partir dos norte-americanos, que se saiba,
pressão alguma no sentido de batizarmos com nomes ingleses condomínios e
clínicas, nem de exclamarmos ‘uau’ quando nos sentimos agradavelmente
surpreendidos. O que se passa é que muitos gostam de entregar-se ainda na
ausência de qualquer compulsão. Isso acontece com o corpo, e já é algo lamentável.
Mas também acontece com a alma, e aí só se pode falar de desgraça".
7.
Marilena Chaui, Convite à filosofia, 1999; Giorgio Del Vecchio, Filosofia
del derecho, 1997; Miguel Reale, Filosofia do Direito, 2000; Gustav
Radbruch, Filosofia do direito, 1997; Maria Lúcia de Arruda Aranha e
Maria Helena Pires Martins, Filosofando: introdução à filosofia, 1986;
H. Japiassu, O mito da neutralidade científica, 1975; Sigmund Freud, Pensamento
vivo, 1985; John Rickman (editor), A general selection from the works of
Sigmund Freud, 1989; Maria Rita Kehl, A psicanálise e o domínio das
paixões, in Adauto Novaes (org.), Os sentidos da paixão,
1991; Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979; Bruce Ackerman, The
rise of world constitutionalism, 1997; Charles van Doren, A history of
knowlegde, 1991.
8.
Sigmund Freud, Pensamento vivo, 1985, p. 59: "Mas a megalomania
humana terá sofrido o seu terceiro e mais contundente golpe da parte da
pesquisa psicológica atual, que procura provar ao ego que nem mesmo em sua
própria casa é ele quem dá as ordens, mas que deve contentar-se com as escassas
informações do que se passa inconscientemente em sua mente".
9.
Em uma crônica densa e espirituosa (A quarta virada, Revista de Domingo,
Jornal do Brasil), após comentar as transformações advindas com Copérnico,
Darwin e Freud, escreveu Luís Fernando Veríssimo: "Mas houve outra virada
no pensamento humano. A de Marx, que nos permitiu pensar num homem
predestinado, não pelas estrelas ou pelos seus instintos, mas pela história.
Mesmo sem a orientação divina, estaríamos destinados a ser justos, pois a
história, no fim, é moral. Em vez da escatologia cristã, Marx propôs uma
redenção final cientificamente inescapável, e, se ninguém mais acredita em
materialismo histórico na prática, a compulsão solidária persiste, como uma fé
religiosa que o desmentido dos fatos só reforça. Talvez porque seja a fé
secular que reste para muita gente. Ficamos órfãos de todas as melhores ilusões
a nosso respeito (inclusive as marxistas) e nem assim nos resignamos à idéia de
que aquilo que vemos no espelho é apenas um bípede egoísta, em breve e
descompromissada passagem por um dos planetas menores. Quando esta fé acabar,
aí sim estaremos prontos para os magos e as seitas. Tenho ouvido falar numa que
adora a Alcachofra Mística e ainda ensina como aplicar na bolsa. Vou
investigar".
10.
Marilena Chauí, Convite à filosofia, 1999, p. 85-7.
11.
Tal conclusão tem a adesão do próprio Hans Kelsen, que intentou desenvolver uma
teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de
todos os elementos de ciência natural, considerando que o problema da justiça,
enquanto problema valorativo, situa-se fora da teoria do direito. Em sua celebrada
Teoria pura do direito – uma das obras de maior significação no século
que se encerrou – escreveu ele (trad. João Baptista Machado, Armênio Amado,
Coimbra, 1979, p. 466-70): "A teoria usual da interpretação quer fazer
crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as
hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada) e que a ‘justeza’
(correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. (...) A
interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução
como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida
em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que
apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito.
(...) Na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação
cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar
combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma
escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação
cognoscitiva".
12.
V. Luís Roberto Barroso, Doze anos da Constituição brasileira de 1988, in
Temas de Direito Constitucional, 2001: "O constitucionalismo
tem se mostrado como a melhor opção de limitação do poder, respeito aos
direitos e promoção do progresso. Nada parecido com o fim da história,
porque valorizar e prestigiar a Constituição não suprime a questão política de
definir o que vai dentro dela. Mas o fato é que as outras vias de institucionalização
do poder praticadas ao longo do tempo não se provaram mais atraentes".
Vejam-se algumas outras propostas que tiveram relevância ao longo do século. O
marxismo-leninismo colocava no centro do sistema, não a Constituição, mas o
Partido. Os militarismo anti-comunista gravitava em torno das Forças Armadas. O
fundamentalismo islâmico tem como peça central o Corão. Nenhuma dessas
propostas foi mais bem sucedida.
13.
José Eduardo Faria, in Prefácio ao livro de Gisele Cittadino, Pluralismo,
direito e justiça distributiva, 1999: "No limiar do século XXI,
contudo, a idéia de constituição cada vez mais é apontada como entrave ao
funcionamento do mercado, como freio da competitividade dos agentes econômicos
e como obstáculo à expansão da economia". Insere-se nessa discussão a
idéia de Constituição meramente procedimental, que estabeleceria apenas as
regras do processo político, sem fazer opções por valores ideologicamente
engajados. Sobre o tema, v. Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos
princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana,
2001, p. 20.
14.
Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979; Norberto Bobbio, Teoria
do ordenamento jurídico, 1990; Karl Engisch, Introdução ao pensamento
jurídico, 1996; Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito,
1997; René David, Os grandes sistemas jurídicos, 1978; Miguel
Reale, Lições preliminares de direito, 1990; Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento
sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 1996; Tércio
Sampaio Ferraz, Função social da dogmática jurídica, 1998; José Reinaldo
de Lima Lopes, O direito na história, 2000; José de Oliveira Ascensão, O
direito: introdução e teoria geral, 1993.
15.
Montesquieu, De l’esprit des lois, livre XI, chap. 6, 1748. No texto em
português (O espírito das leis, Saraiva, 1987, p. 176): "Mas os
Juízes da Nação, como dissemos, são apenas a boca que pronuncia as palavras da
lei; seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força, nem o rigor".
16.
Marx e Engels, Obras escolhidas, 2 vs., 1961; Luiz Fernando Coelho, Teoria
crítica do direito, 1991; Óscar Correas, Crítica da ideologia jurídica,
1995; Michel Miaille, Introdução crítica ao direito, 1989; Luis Alberto
Warat, Introdução geral ao direito, 2 vs., 1994-5; Plauto Faraco de
Azevedo, Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, 1989; Antonio
Carlos Wolkmer, Introdução ao pensamento crítico, 1995; Luis Alberto
Warat, O outro lado da dogmática jurídica, in Leonel Severo da
Rocha (org.), Teoria do direito e do Estado, 1994; Robert Hayman e Nancy
Levit, Jurisprudence: contemporary readings, problems, and narratives,
1994; Enrique Marí et al., Materiales para una teoria critica del derecho,
1991; Carlos María Cárcova, A opacidade do direito, 1998; Óscar Correas,
El neoliberalismo en el imaginario juridico, in Direito e
neoliberalismo: elementos para uma leitura interdisciplinar, 1996;
Clèmerson Merlin Clève, A teoria constitucional e o direito alternativo
(para uma dogmática constitucional emancipatória), in Direito
Alternativo – Seminário nacional sobre o uso alternativo do direito,
Instituto dos Advogados Brasileiros, 1993; Luiz Edson Fachin, Teoria crítica
do direito civil, 2000; Paulo Ricardo Schier, Filtragem constitucional,
1999; Leonel Severo Rocha, Da teoria do direito à teoria da sociedade, in
Teoria do direito e do Estado, 1994; Ted Honderich (editor), The Oxford
Companion to Philosophy, 1995; Marilena Chauí, Convite à filosofia,
1999; Marcus Vinicius Martins Antunes, Engels e o direito, in Fios de
Ariadne: ensaios de interpretação marxista, 1999.
17.
Proposição inspirada por uma passagem de Marx, na XI Tese sobre Feuerbach: os
filósofos apenas interpretaram de diversos modos o mundo; o que importa é
transformá-lo.
18.
Elías Díaz, Sociologia y filosofia del derecho, 1976, p. 54, apud Plauto
Faraco de Azevedo, Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, 1989, p.
36.
19.
Óscar Correas, Crítica da ideologia jurídica, 1995, p. 126-32. Michel
Miaille, Introdução crítica ao direito, 1989, p. 327: "Esta
experiência crítica do direito abre campo a uma nova maneira de tratar o
direito. (...) É o sentido profundo do marxismo, deslocar o terreno do
conhecimento do real, oferecendo uma passagem libertadora: o trabalho teórico
liberta e emancipa condições clássicas da investigação intelectual pelo fato
deicisivo de o pensamento marxista refletir, ao mesmo tempo, sobre as condições
da sua existência e sobre as condições da sua interseção na vida social".
20. Robert L. Hayman e Nancy Levit, Jurisprudence:
contemporary readings, problems, and narratives, 1994, p. 215. Uma
das lideranças do movimento foi o professor de Harvard, de nacionalidade
brasileira, Roberto Mangabeira Unger, que produziu um dos textos mais
difundidos sobre esta corrente de pensamento: The critical legal studies
movement, 1986. Para uma história do movimento, v. Mark Tushnet, Critical
legal studies: a political history, 100 Yale Law Journal 1515, 1991. Para
uma crítica da teoria crítica, v. Owen Fiss, The death of the law, 72
Cornell Law Review 1, 1986.
21.
Luiz Fernando Coelho, Teoria crítica do direito, 1991, p. 398: "As
categorias críticas exsurgidas dessa dialética são a práxis, que se manifesta
como teoria crítica, como atividade produtiva e como ação política, e a
ideologia, vista como processo de substituição do real pelo imaginário e de
legitimação da ordem social real em função do imaginário".
22.
Marilena Chauí, Convite à filosofia, 1999: "Os filósofos da Teoria
Crítica consideram que existem, na verdade, duas modalidades da razão: a razão
instrumental ou razão técnico-científica, que está a serviço da exploração
e da dominação, da opressão e da violência, e a razão crítica ou filosófica,
que reflete sobre as contradições e os conflitos sociais e políticos e se
apresenta como uma força libertadora".
23.
Para um alentado estudo da interpretação jurídica sob esta perspectiva, v.
Lenio Luiz Streck, Hermenêutica jurídica em crise, 1999.
24.
Sobre esta temática, vejam-se dois trabalhos publicados na obra coletiva Direito
e neoliberalismo, 1996: Agustinho Ramalho, Subsídios para pensar a
possibilidade de articular direito e psicanálise; Jacinto de Miranda
Coutinho, Jurisdição, psicanálise e o mundo neoliberal.
25.
Luiz Fernando Coelho, ob. cit., p. 396-7.
26.
Paulo Schier, Filtragem constitucional, 1999, p. 34: "Essas
teorias, de certa forma, acabaram por desencadear algumas conseqüências problemáticas,
dentre as quais (...): (i) a impossibilidade de se vislumbrar a dogmática
jurídica como instrumento de emancipação dos homens em sociedade e (ii) o
esvaziamento da dignidade normativa da ordem jurídica".
27.
Pessoalmente, fiz a travessia do pensamento crítico para a utilização
construtiva da dogmática jurídica em um trabalho escrito em 1986 – A
efetividade das normas constitucionais (Por que não uma Constituição para
valer?), apresentado no VIII Congresso Brasileiro de Direito Constitucional,
Porto Alegre, 1987. Esse texto foi a base de minha tese de livre-docência,
concluída em 1988, e que se converteu no livro O direito constitucional e a
efetividade de suas normas (2001).
28.
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, art. 6° : "A lei é a expressão da vontade
geral institucionalizada".
29.
Luis Alberto Warat, O outro lado da dogmática jurídica, in Teoria do
direito e do Estado (org. Leonel Severo Rocha), 1994, p. 83-5.
30.
Norberto Bobbio, O positivismo jurídico, 1995; Bobbio, Matteucci e
Pasquino, Dicionário de Política, 1986; Nicola Abbagnano, Dicionário
de filosofia, 1998; Giorgio Del Vecchio, Filosofia del derecho,
1991; José Reinaldo de Lima Lopes, O direito na história, 2000; Antonio
M. Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, 1977;
Nelson Saldanha, Filosofia do direito, 1998; Paulo Nader, Introdução
ao estudo do direito, 1995; Cicero, Da república, s.d.; René David, Os
grandes sistemas do direito contemporâneo, 1978; Bertrand Russell, História
do pensamento ocidental, 2001; Vladímir Tumánov, O pensamento jurídico
burguês contemporâneo, 1984; Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica
e argumentação, 1999; Ana Paula de Barcellos, As relações da filosofia
do direito com a experiência jurídica. Uma visão dos séculos XVIII, XIX e XX.
Algumas questões atuais, Revista Forense 351/3.
31.
O jusnaturalismo tem sua origem associada à cultura grega, onde Platão já se
referia a uma justiça inata, universal e necessária. Coube a Cícero sua
divulgação em Roma, em passagem célebre de seu De republica, que teve
forte influência no pensamento cristão e na doutrina medieval: "A razão
reta, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja
voz ensina e prescreve o bem (...). Essa lei não pode ser contestada, nem
derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento
pelo povo nem pelo senado (...). Não é uma lei em Roma e outra em Atenas, – uma
antes e outra depois, mas uma, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em
todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu
inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem
renegar a si mesmo..." (Cicero, Da república, Ediouro, s.d., p.
100).
32.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274) desenvolveu o mais influente sistema
filosófico e teológico da Idade Média, o tomismo, demarcando fronteiras entre a
fé e a razão. Pregando ser a lei um ato de razão e não de vontade, distinguiu
quatro espécies de leis: uma lei eterna, uma lei natural, uma lei positiva
humana e uma lei positiva divina. Sua principal obra foi a Summa teologica.
Sobre o contexto histórico de Tomás de Aquino, v. José Reinaldo de Lima Lopes, O
direito na história, 2000, p. 144 ss.
33.
O surgimento do jusnaturalismo moderno é usualmente associado à doutrina de
Hugo Grócio (1583-1645), exposta em sua obra clássica De iure belli ac pacis,
de 1625, considerada, também, precursora do direito internacional. Ao difundir
a idéia de direito natural como aquele que poderia ser reconhecido como válido
por todos os povos, porque fundado na razão, Grócio desvincula-o não só da
vontade de Deus, como de sua própria existência. Vejam-se: Bobbio,
Matteucci e Pasquino, Dicionário de política, 1986, p. 657; e Ana Paula
de Barcellos, As relações da filosofia do direito com a experiência
jurídica. Uma visão dos séculos XVIII, XIX e XX. Algumas questões atuais,
Revista Forense 351/3, p. 8-9.
34.
Iluminismo designa a revolução intelectual que se operou na Europa,
especialmente na França, no século XVIII. O movimento representou o ápice das
transformações iniciadas no século XIV, com o Renascimento. O antropocentrismo
e o individualismo renascentistas, ao incentivarem a investigação científica,
levaram à gradativa separação entre o campo da fé (religião) e o da razão
(ciência), determinando profundas transformações no modo de pensar e de agir do
homem. Para os iluministas, somente através da razão o homem poderia alcançar o
conhecimento, a convivência harmoniosa em sociedade, a liberdade individual e a
felicidade. Ao propor a reorganização da sociedade com uma política centrada no
homem, sobretudo no sentido de garantir-lhe a liberdade, a filosofia iluminista
defendia a causa burguesa contra o Antigo Regime. Alguns nomes que merecem
destaque na filosofia e na ciência política: Descartes, Locke, Montesquieu,
Voltaire e Rousseau.
35.
O Preâmbulo da Declaração afirma que ela contém os direitos naturais,
inalienáveis e sagrados do Homem, tendo o art. 2° a seguinte dicção: "Artigo 2° . O fim de toda a associação política é a conservação dos
direitos naturais e imprescindíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão".
36.
Da Declaração, redigida por Thomas Jefferson, constam referências às leis da
natureza e ao Deus da natureza e a seguinte passagem:
"Sustentamos que estas verdades são evidentes, que todos os homens foram
criados iguais, que foram dotados por seu Criador de certos Direitos
inalienáveis, que entre eles estão a Vida, a Liberdade e a Busca da
Felicidade".
37.
Autor dos Dois tratados sobre o governo civil, 1689-90 e do Ensaio
sobre o entendimento humano, 1690. Vejam-se John Locke, Second treatise
of government, Indianapolis-Cambridge, Hacket Publishing Co, 1980; e John
Locke, Ensaio acerca do entendimento humano, Coleção Os Pensadores, São
Paulo, Nova Cultural, 1990.
38.
Thomas Hobbes, Leviathan, Londres, Penguin Books, 1985 (a primeira
edição da obra é de 1651). Há edição em português na Coleção Os Pensadores, São
Paulo, Nova Cultural, 1999.
39.
Jean-Jacques Rousseau, O contrato social, Edições de Ouro, s.d. (a
primeira edição de Du contrat social é de 1762).
40.
Em seu magnífico estudo On revolution, Londres, Penguin Books, 1987 (1ª
edição em 1963), Hannah Arendt comenta o fato intrigante de que a foi a
Revolução Francesa, e não a Inglesa ou a Americana, que correu mundo e
simbolizou a divisão da história da humanidade em antes e depois. Escreveu ela:
"A ‘Revolução Gloriosa’, evento pelo qual o termo (revolução),
paradoxalmente, encontrou seu lugar definitivo na linguagem política e
histórica, não foi vista como uma revolução, mas como uma restauração do poder
monárquico aos seus direitos pretéritos e à sua glória. (...) Foi a Revolução
Francesa e não a Americana que colocou fogo no mundo. (...) A triste verdade na
matéria é que a Revolução Francesa, que terminou em desastre, entrou para a
história do mundo, enquanto a Revolução Americana, com seu triunfante sucesso,
permaneceu como um evento de importância pouco mais que local" (p. 43,
55-6).
41.
José Reinaldo de Lima Lopes, O direito na história, 2000, p. 188.
42.
Sobre codificação, Escola da Exegese e fetichismo da lei, vejam-se:
Gustavo Tepedino, O Código Civil, os chamados microssistemas e a
Constituição: premissas para uma reforma legislativa, in Gustavo
Tepedino (org.), Problemas de direito civil-constituiconal, 2000; Maria
Celina Bodin de Moraes, Constituição e direito civil: tendências, in
Anais da XVII Conferência Nacional dos Advogados, Rio de Janeiro, 1999.
43.
Bobbio, Matteucci e Pasquino, Dicionário de política, 1986, p. 659:
"Com a promulgação dos códigos, principalmente do napoleônico, o
Jusnaturalismo exauria a sua função no momento mesmo em que celebrava o seu
triunfo. Transposto o direito racional para o código, não se via nem admitia
outro direito senão este. O recurso a princípios ou normas extrínsecos ao
sistema do direito positivo foi considerado ilegítimo".
44.
Ana Paula de Barcellos, As relações da filosofia do direito com a
experiência jurídica. Uma visão dos séculos XVIII, XIX e XX. Algumas questões
atuais, Revista Forense 351/3, p. 10: "Em fins do século XVIII e
início do século XIX, com a instalação do Estado Liberal e todo o seu aparato
jurídico (constituição escrita, igualdade formal, princípio da legalidade
etc.), o direito natural conheceria seu momento áureo na história
moderna do direito. As idéias desenvolvidas no âmbito da filosofia ocidental
haviam se incorporado de uma forma sem precedentes à realidade jurídica. Talvez
por isso mesmo, tendo absorvido os elementos propostos pela reflexão
filosófica, o direito haja presumido demais de si mesmo, considerando que podia
agora prescindir dela. De fato, curiosamente, a seqüência histórica reservaria
para o pensamento jusfilosófico não apenas um novo nome – filosofia do direito
– como também mais de um século de ostracismo".
45.
Em sentido amplo, o termo positivismo designa a crença ambiciosa na ciência e
nos seus métodos. Em sentido estrito, identifica o pensamento de Auguste Comte,
que em seu Curso de filosofia positiva (seis volumes escritos entre 1830
e 1842), desenvolveu a denominada lei dos três estados, segundo a qual o
conhecimento humano havia atravessado três estágios históricos: o teológico, o
metafísico e ingressara no estágio positivo ou científico.
46. Norberto Bobbio, Positivismo
jurídico, 1995, p. 135, onde se acrescenta: "A ciência exclui do
próprio âmbito os juízos de valor, porque ela deseja ser um conhecimento
puramente objetivo da realidade, enquanto os juízos em questão são
sempre subjetivos (ou pessoais) e conseqüentemente contrários à
exigência da objetividade". Pouco mais à frente, o grande mestre italiano,
defensor do que denominou de "positivismo moderado", desenvolve a
distinção, de matriz kelseniana, entre validade e valor do
Direito.
47.
Antonio M. Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia,
1977, p. 174-5: "(...) As várias escolas entenderam de forma diversa o que
fossem ‘coisas positivas’. Para uns, positiva era apenas a lei (positivismo
legalista). Para outros, positivo era o direito plasmado na vida, nas
instituições ou num espírito do povo (positivismo histórico). Positivo era
também o seu estudo de acordo com as regras das novas ciências da sociedade,
surgidas na segunda metade do século XIX (positivismo sociológico,
naturalismo). Finalmente, para outros, positivos eram os conceitos jurídicos
genéricos e abstratos, rigorosamente construídos e concatenados, válidos
independentemente da variabilidade da legislação positiva (positivismo
conceitual)".
48.
A obra prima de Kelsen foi a Teoria pura do direito, cuja primeira
edição data de 1934 – embora seus primeiros trabalhos remontassem a 1911 –,
havendo sido publicada uma segunda edição em 1960, incorporando alguns
conceitos novos.
49.
A aplicação do Direito consistiria em um processo lógico-dedutivo de submissão
à lei (premissa maior) da relação de fato (premissa menor), produzindo uma
conclusão natural e óbvia, meramente declarada pelo intérprete, que não
desempenharia qualquer papel criativo. Como visto anteriormente, esta concepção
não tem a adesão de Hans Kelsen.
50.
Vladímir Tumánov, O pensamento jurídico burguês contemporâneo, 1984, p.
141.
51.
Norberto Bobbio, O positivismo jurídico, 1995, p. 223-4. V. também
Michael Löwy, Ideologias e ciência social – elementos para uma análise
marxista, 1996, p. 40: "O positivismo, que se apresenta como ciência
livre de juízos de valor, neutra, rigorosamente científica, (...) acaba tendo
uma função política e ideológica".
52.
Como por exemplo, a jurisprudência dos interesses, iniciada por Ihering,
e o movimento pelo direito livre, no qual se destacou Ehrlich.
53.
Sobre o tema, vejam-se: Antônio Augusto Cançado Trindade, A proteção
internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos
básicos, 1991; Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos
fundamentais, 1998; Flávia Piovesan, Temas de direitos humanos,
1998; Ricardo Lobo Torres (org.), Teoria dos direitos fundamentais,
1999; Willis Santiago Guerra Filho, Processo constitucional e direitos
fundamentais, 1999; e Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e
Paulo Gustavo Gonet Branco, Hermenêutica constitucional e direitos
fundamentais, 2000.
54.
Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997; Robert Alexy, Teoria
de los derechos fundamentales, 1997; J. J. Gomes Canotilho, Direito
constitucional e teoria da Constituição, 1998; Paulo Bonavides, Curso de
direito constitucional, 2000; Jürgen Habermas, Direito e democracia:
entre facticidade e validade, 1997; Jacob Dolinger, Evolution of
principles for resolving conflicts in the field of contracts and torts,
Recueil des Cours, v. 283, p. 203 ss, Hague Academy of International Law;
Miguel Reale, Filosofia do direito, 2000; Nicola Abbagnano, Dicionario
de filosofia, 1998; Paulo Nader, Filosofia do direito, 2000; Giorgio
del Vecchio, Filosofia del derecho, 1997; Marilena Chauí, Convite à
filosofia, 1999; Ricardo Lobo Torres, O orçamento na Constituição,
2000; Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988,
1996; Juarez de Freitas, Tendências atuais e perspectivas da hermenêutica
constitucional, Ajuris 76/397; Ruy Samuel Espíndola, Conceito de
princípios constitucionais, 1998; Daniel Sarmento, A ponderação de
interesses na Constituição Federal, 2000; Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica
e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, 1999; Oscar Vilhena
Vieira, A Constituição e sua reserva de justiça, 1999; Marcos Antonio
Maselli de Pinheiro Gouvêa, A sindicabilidade dos direitos prestacionais à
luz de conceitos-chave contemporâneos, 2001; Ana Paula de Barcellos, A
eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da
pessoa humana, 2001.
55.
Esse fenômeno é referido por autores alemães como "virada kantiana".
V. a respeito, Ricardo Lobo Torres, em remissão a Otfried Höffe, Kategorische
Rechtsprinzipien. Ein Kontrapunkt der Moderne (O orçamento na
Constituição, 1995, p. 90).
56. Ulpiano, Digesto 1.1.10.1:
"Honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere".
V. Paulo Nader, Filosofia do Direito, 2000, p. 82; e Jacob Dolinger, Evolution
of principles for resolving conflicts in the field of contracts and torts,
Recueil des Cours, v. 283, p. 203 ss, Hague Academy of International Law.
57.
Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição,
"Os grandes princípios de um sistema jurídico são normalmente enunciados
em algum texto de direito positivo. Não obstante, (...) tem-se, aqui, como fora
de dúvida que esses bens sociais supremos existem fora e acima da letra
expressa das normas legais, e nelas não se esgotam, até porque não têm caráter
absoluto e estão em permanente mutação". Em decisão do Tribunal
Constitucional Federal alemão: "O direito não se identifica com a
totalidade das leis escritas. Em certas circunstâncias, pode haver um ‘mais’ de
direito em relação aos estatutos positivos do poder do Estado, que tem a sua
fonte na ordem jurídica constitucional como uma totalidade de sentido e que
pode servir de corretivo para a lei escrita; é tarefa da jurisdição encontrá-lo
e realizá-lo em suas decisões". BVerGE 34, 269, apud Jürgen
Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, v. 1, 1997,
p. 303.
58.
A axiologia está no centro da filosofia e é também referida como teoria
dos valores, por consistir, precisamente, na atribuição de valores às coisas da
vida. V. Miguel Reale, Filosofia do direito, 2000, p. 37 ss.
59.
Ronald Dworikin, Taking rights seriously, 1997 (a primeira edição é de
1977).
60.
O tema foi retomado, substancialmente sobre as mesmas premissas, pelo autor
alemão Robert Alexy (Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 81
ss), cujas idéias centrais na matéria são resumidas a seguir. As regras
veiculam mandados de definição, ao passo que os princípios são mandados
de otimização. Por essas expressões se quer significar que as regras (mandados
de definição) têm natureza biunívoca, isto é, só admitem duas espécies de
situação, dado seu substrato fático típico: ou são válidas e se aplicam ou não
se aplicam por inválidas. Uma regra vale ou não vale juridicamente. Não são
admitidas gradações. A exceção da regra ou é outra regra, que invalida a primeira,
ou é a sua violação.
Os
princípios se comportam de maneira diversa. Como mandados de otimização,
pretendem eles ser realizados da forma mais ampla possível, admitindo,
entretanto, aplicação mais ou menos intensa de acordo com as possibilidades
jurídicas existentes, sem que isso comprometa sua validade. Esses limites
jurídicos, capazes de restringir a otimização do princípio, são (i) regras que
o excepcionam em algum ponto e (ii) outros princípios de mesma estatura e
opostos que procuram igualmente maximizar-se, impondo a necessidade eventual de
ponderação.
61.
Sobre antinomias e critérios para solucioná-las, v. Norberto Bobbio, Teoria
do ordenamento jurídico, 1990, p. 81 e ss.
62.
Robert Alexy, Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática
dos direitos fundamentais, mimeografado, palestra proferida na Fundação
Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 11.12.98, p. 10: "As colisões
dos direitos fundamentais acima mencionados devem ser consideradas, segundo a
teoria dos princípios, como uma colisão de princípios".
63.
Juarez de Freitas, Tendências atuais e perspectivas da hermenêutica
constitucional, Ajuris 76/397, resgata um bom exemplo: "Caso
emblemático no Direito Comparado é o do prisioneiro que faz greve de fome. Após
acesa polêmica, a solução encontrada foi a de fazer valer o direito à vida
sobre a liberdade de expressão, contudo o soro somente foi aplicado quando o grevista
caiu inconsciente, uma vez que, neste estado, não haveria sentido falar
propriamente em liberdade de expressão".
64.
Sobre o tema, na doutrina alemã, Robert Alexy, Colisão e ponderação como
problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, mimeografado,
palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em
11.12.98; Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1997, p. 164
ss; Klaus Stern, Derecho del Estado de la Republica Federal alemana,
1987, p. 295. Na doutrina nacional, vejam-se Luís Roberto Barroso, Interpretação
e aplicação da Constituição, 1999, p. 192; e Ricardo Lobo Torres, Da
ponderação de interesses ao princípio da ponderação, 2001, mimeografado. E,
ainda, as dissertações de mestrado de Daniel Sarmento, A ponderação de
interesses na Consituição Federal, 2000, e de Marcos Antonio Maselli de
Pinheiro Gouvêa, A sindicabilidade dos direitos prestacionais, 2001,
mimeografado, onde averbou: "No mais das vezes, contudo, a aplicação da norma
constitucional ou legal não pode ser efetuada de modo meramente subsuntivo,
dada a existência de princípios colidentes com o preceito que se pretende
materializar (...) À luz do conceito-chave da proporcionalidade, desenvolveu-se
o método de ponderação pelo qual o magistrado, considerando-se a importância
que os bens jurídicos cotejados têm em tese mas também as peculiaridades do
caso concreto, poderá prover ao direito postulado, fundamentando-se na
precedência condicionada deste sobre os princípios contrapostos" (p. 381).
65.
V. José Carlos Barbosa Moreira, Regras de experiência e conceitos jurídicos
indeterminados, in Temas de direito processual, Segunda Série, 1980,
p. 61 ss.
66.
Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 1999,
identifica o seguinte catálogo de princípios de interpretação especificamente
constitucional: supremacia da Constituição, presunção de constitucionalidade
das leis e dos atos emanados do Poder Público, interpretação conforme a Constituição,
unidade da Constituição, razoabilidade e efetividade. Para uma sistematização
sob perspectiva diversa, v. Juarez de Freitas, Tendências atuais e
perspectivas da hermenêutica constitucional, Ajuris 76/397.
67.
O método tópico aplicado ao problema funda-se em um modo de raciocínio voltado
para o problema e não para a norma. A decisão a ser produzida deve basear-se no
exame de um conjunto de elementos, de topoi (pontos de vista) relevantes
para o caso – além da norma, os fatos, as conseqüências, os valores –, que
dialeticamente ponderados, permitem a solução justa para a situação concreta
examinada. O trabalho clássico no tema é de Theodor Viehweg, Tópica e
jurisprudência, 1979 (1ª edição do original Topik und
Jurisprudenz é de 1953).
68.
A obra fundamental da denominada teoria da argumentação é do belga Chaim
Perelman, em parceria com Lucie Olbrechts-Tyteca:Tratado da Argumentação: a
nova retórica, 1996 (1ª edição do original Traité de
l’argumentation: la nouvelle rhetorique, 1958). Vejam-se, também, Antônio
Carlos Cavalcanti Maia, Notas sobre direito, argumentação e democracia, in
Margarida Maria Lacombe Camargo (org.), 1988-1998: uma década de
Constituição, 1999; e Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na
Constituição Federal, p. 89-90, onde averbou: "No campo das relações
humanas, as discussões se dão em torno de argumentos, prevalecendo aquele que
tiver maiores condições de convencer os interlocutores. Não há verdades
apodíticas, mas escolhas razoáveis, que são aquelas que podem ser racionalmente
justificadas, logrando a adesão do auditório".
69.
Peter Häberle, Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos
intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e
procedimental da Constituição, 1997 (1ª edição do original Die
offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein Beitrag zur pluralistischen
und "prozessualen" Verfassungsinterpretation, 1975), p. 13:
"Propõe-se, pois, a seguinte tese: no processo de interpretação
constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas
as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível
estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de
intérpretes da Constituição".
70.
V. Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na
ciência do direito, 1996, p. 281: "(O sistema jurídico) não é fechado,
mas antes aberto. Isto vale tanto para o sistema de proposições
doutrinárias ou ‘sistema científico’, como para o próprio sistema da ordem
jurídica, o ‘sistema objetivo’. A propósito do primeiro, a abertura significa a
incompletude do conhecimento científico, e a propósito do último, a
mutabilidade dos valores jurídicos fundamentais".
71.
Para uma breve análise da evolução histórica da razoabilidade no direito
norte-americano, a partir da cláusula do devido processo legal, v. Luís Roberto
Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 1999, p. 209 ss. V.
também, Marcos Antonio Maselli de Pinheiro Gouvêa, O princípio da
razoabilidade na jurisprudência contemporânea das cortes norte-americanas,
Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de
Janeiro, vol. V, 2000.
72.
Guardada a circunstância de que suas origens reconduzem a sistemas diversos –
ao americano em um caso e ao alemão em outro – razoabilidade e
proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem
intercambiáveis. Cabe a observação, contudo, de que a trajetória do princípio
da razoabilidade fluiu mais ligada ao controle dos atos normativos, ao passo
que o princípio da proporcionalidade surgiu ligado ao direito administrativo e
ao controle dos atos dessa natureza. Vale dizer: em suas matrizes,
razoabilidade era mecanismo de controle dos atos de criação do direito, ao
passo que proporcionalidade era critério de aferição dos atos de concretização.
Em linha de divergência com a equiparação aqui sustentada, v. Humberto Bergmann
Ávila, A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade, Revista de Direito Administrativo 215/151, 1999.
73.
Sobre o tema, vejam-se alguns trabalhos monográficos produzidos nos últimos
anos: Raquel Denize Stumm, Princípio da proporcionalidade no direito
constitucional brasileiro, 1995; Suzana Toledo de Barros, O princípio da
proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de
direitos fundamentais, 1996; Paulo Armínio Tavares Buechele, O princípio
da proporcionalidade e a interpretação da Constituição, 1999. Também em
língua portuguesa, com tradução de Ingo Wolfgang Sarlet, Heinrich Scholler, O
princípio da proporcionalidade no direito constitucional e administrativo da
Alemanha, Interesse Público 2/93, 1999.
74.
Alguns trabalhos monográficos recentes sobre o tema: José Afonso da Silva, Dignidade
da pessoa humana como valor supremo da democracia, Revista de Direito
Administrativo 212/89; Carmen Lúcia Antunes Rocha, O princípio da dignidade
da pessoa humana e a exclusão social, Anais da XVII Conferência Nacional da
Ordem dos Advogados do Brasil, 1999; Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da
pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988,
2001; Cleber Francisco Alves, O princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana, 2001; Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos
princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana,
2001. Em texto escrito no início da década de 90, quando algumas decisões do
Supremo Tribunal Federal ameaçavam a efetividade e a força normativa da
Constituição, manifestei ceticismo em relação à utilidade do princípio da
dignidade da pessoa humana na concretização dos direitos fundamentais, devido à
sua baixa densidade jurídica (Princípios constitucionais brasileiros ou de
como o papel aceita tudo, Revista Trimestral de Direito Público, v. 1).
Essa manifestação foi datada e representava uma reação à repetição de
erros passados. A Carta de 1988, todavia, impôs-se como uma Constituição
normativa, dando ao princípio, hoje, uma potencialidade que nele não se
vislumbrava há dez anos.
75.
O Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pelas
Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, inicia-se com as seguintes
constatações: "Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a
todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o
desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros
que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que
os homens gozem da liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a
salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do
homem comum (...)".
76.
Sobre o tema, v. Ricardo Lobo Torres, A cidadania multidimensional na era
dos direitos, in Teoria dos direitos fundamentais (org. Ricardo Lobo
Torres), 1999. Veja-se, também, para uma interessante variação em torno dessa
questão, Luiz Edson Fachin, Estatuto jurídico do patrimônio mínimo,
2001, Nota Prévia: "A presente tese defende a existência de uma garantia
patrimonial mínima inerente a toda pessoa humana, integrante da respectiva
esfera jurídica individual ao lado dos atributos pertinentes à própria condição
humana. Trata-se de um patrimônio mínimo indispensável a uma vida digna do
qual, em hipótese alguma, pode ser desapossada, cuja proteção está acima dos
interesses dos credores".
77.
Ana Paula de Barcellos, em preciosa dissertação de mestrado – A eficácia
jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa
humana –, assim consignou seu entendimento: "Uma proposta de
concretização do mínimo existencial, tendo em conta a ordem constitucional
brasileira, deverá incluir os direitos à educação fundamental, à saúde básica,
à assistência no caso de necessidade e ao acesso à justiça".
78.
O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a atividade conhecida como lancer
de nain (arremesso de anão), atração existente em algumas casas noturnas da
região metropolitana de Paris. Consistia ela em transformar um anão em
projétil, sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca. A casa
noturna, tendo como litisconsorte o próprio deficiente físico, recorreu da
decisão para o tribunal administrativo, que anulou o ato do Prefeito, por
"excès de pouvoir". O Conselho de Estado, todavia, na sua qualidade
de mais alta instância administrativa francesa, reformou a decisão, assentando:
"Que le respect de la dignité de la personne humaine est une des
composantes de l’ordre public; que l’autorité investie du pouvoir de police
municipale peut, même en l’absence de circonstances locales particulières,
interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la dignité de la
personne humaine" (Que o respeito à dignidade da pessoa humana é um
dos componentes da ordem pública; que a autoridade investida do poder de
polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais
particulares, interditar uma atração atentatória à dignidade da pessoa humana).
V. Long, Wil, Braibant,
Devolvé e Genevois, Le grands arrêts de la jurisprudence administrative,
1996, p. 790 ss. Veja-se, em língua portuguesa, o comentário à decisão
elaborado por Joaquim B. Barbosa Gomes, O poder de polícia e o princípio da
dignidade da pessoa humana na jurisprudência francesa, in Seleções
Jurídicas ADV n. 12, 1996, p. 17 ss.
79.
STJ, REsp. 249026/PR, Rel. Min. José Delgado, DJU 26.06.2000, p. 138:
"FGTS. LEVANTAMENTO, TRATAMENTODE FAMILIAR PORTADOR DO VÍRUS HIV.
POSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. É possível o levantamento do
FGTS para fins de tratamento de portador do vírus HIV, ainda que tal moléstia
não se encontre elencada no art. 20, XI, da Lei 8036/90, pois não se pode
apegar, de forma rígida, à letra fria da lei, e sim considerá-la com
temperamentos, tendo-se em vista a intenção do legislador, mormente perante o
preceito maior insculpido na Constituição Federal garantidor do direito à
saúde, à vida e a dignidade humana e, levando-se em conta o caráter social do
Fundo, que é, justamente, assegurar ao trabalhador o atendimento de suas
necessidades básicas e de seus familiares".
80. STJ, HC 12.547-DF, Rel. Min.
Ruy Rosado de Aguiar, DJU 12.02.2001, onde se consignou: "A decisão
judicial que atende a contrato de financiamento bancário com alienação
fiduciária em garantia e ordena a prisão de devedora por dívida que se elevou,
após alguns meses, de R$ 18.700,00 para 86.858,24, fere o princípio da
dignidade da pessoa humana, dá validade a uma relação negocial sem nenhuma
equivalência, priva por quatro meses o devedor de seu maior valor, que é a
liberdade, consagra o abuso de uma exigência que submete uma das partes a
perder o resto provável de vida que não seja o de cumprir com a exigência do
credor. Houve ali ofensa ao princípio da dignidade da pessoa, que pode ser
aplicado diretamente para o reconhecimento da invalidade do decreto de
prisão".
81.
STF, RTJ 165/902, HC 71.373–RS, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j.
10.11.94: "Investigação de paternidade – Exame DNA – Condução do réu
‘debaixo de vara’. Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais
implícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade
do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de
obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de
paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao
laboratório, ‘debaixo de vara’, para coleta do material indispensável à feitura
do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas
a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões
ligadas à prova dos fatos". Ficaram vencidos os Ministros Francisco Rezek,
Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence.
82.
Vejam-se, em linha crítica da decisão, Maria Celina Bodin de Moraes, Recusa
à realização do exame de DNA na investigação da paternidade e direitos da
personalidade, Revista dos Tribunais /85; e Maria Christina de Almeida, Investigação
de paternidade e DNA, 2001.
83.
Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a
efetividade de suas normas, 2001.
84.
Para um levantamento da doutrina nacional e estrangeira acerca do tema, v. Luís
Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2001.
85. V. Konrad Hesse, La
fuerza normativa de la Constitución, in Escritos de derecho
constitucional, 1983 e Eduardo García de Enterría, La Constitución como
norma y el Tribunal Constitucional, 1985.
86.
V. Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 6: "O
Código Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do
sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto
naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais
incisiva pelo Texto Constitucional". Vejam-se, também: Maria Celina B. M.
Tepedino, A caminho de um direito civil constitucional, Revista de
Direito Civil 65/21 e Gustavo Tepedino, O Código Civil, os chamados
microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa, in
Gustavo Tepedino (org.), Problemas de direito civil-constitucional,
2001.
87.
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição,
1991, p. 45: "A principal manifestação da preeminência normativa da
Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela
e passada pelo seu crivo". V. também, Paulo Ricardo Schier, Filtragem
constitucional, 1999.
88.
V. Luís Roberto Barroso, Doze anos da Constituição brasileira de 1988, in
Temas de Direito Constitucional, 2001. Para um denso estudo acerca da
expansão da jurisdição constitucional no Brasil, veja-se Gustavo Binenbojm, A
nova jurisdição constitucional brasileira, 2001.
89. Sobre o tema, v. o ensaio de Umberto Eco, Quando o outro entra em cena, nasce a ética, in Umberto Eco e Carlo Maria Martini, Em que crêem os que não crêem?, 2001, p. 83: "A dimensão ética começa quando entra em cena o outro. Toda lei, moral ou jurídica, regula relações interpessoais, inclusive aquelas com um Outro que a impõe".
* Procurador do Estado, advogado no Rio de Janeiro, professor de
Direito Constitucional da UERJ, mestre em Direito pela Universidade de Yale.
Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208
>. Acesso em: 24/10/06.