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A noção de ato normativo para fins de fiscalização da constitucionalidade em sede abstrata: um estudo comparativo entre Brasil e Portugal





Marcelo Ribeiro de Oliveira*





Introdução:

             O presente ensaio apresentará, sucintamente, em uma análise comparativa, como o Tribunal Constitucional português e o Supremo Tribunal Federal posicionam-se diante dos atos que lhes são submetido à fiscalização em abstrato da constitucionalidade.

            Tal questão desvela-se de grande importância para que se possa perceber os distintos posicionamentos das Cortes e o modo em que elas legitimam suas escolhas. Ao longo do trabalho, ficará evidente a tensão entre a ampla efetividade das disposições constitucionais, que dispõem sobre a jurisdição constitucional, até mesmo em razão do amplo acesso ao Poder Judiciário e a própria viabilidade do Tribunal, na medida em que a ampla provocação à jurisdição constitucional, caso extremada, poderia levar as Cortes a um número de ações tão elevado que simplesmente obstaria ao seu trabalho.

            Esse estudo, por razões de didática, de organização e de apresentação será apresentado em três partes: na primeira falar-se-á da noção de ato normativo na fiscalização da constitucionalidade em abstrato no Brasil, esta restringida, no presente ensaio, tão somente, à fiscalização realizada pelo Supremo Tribunal Federal, dos legitimados à instauração desse controle, coligindo farta jurisprudência e comentários doutrinários acerca do tema.

            É de se observar nas referências bibliográficas encontrar-se-ão muito mais precedentes jurisprudenciais do que obras doutrinárias, o que acaba tão somente por destacar a atividade criativa dos Tribunais, efetivamente criando a teoria da jurisdição constitucional por meio de seus julgados.

            A segunda parte cuidará de examinar a noção de ato normativo na visão do Tribunal Constitucional Português. Para tanto, será mostrada a jurisprudência daquela corte e como a doutrina lusitana vislumbra a posição desse Tribunal.

            Na terceira e última parte, far-se-á o que se espera de um estudo de direito comparado, ou seja, um cotejo analítico entre os entendimentos daqueles tribunais, mostrar vantagens e desvantagens de cada posicionamento, questionar, hipoteticamente, a inversão dessas posições e, sobretudo, como o estudo trata-se de tema afeito ao controle de constitucionalidade, aferir, caso haja, qual a melhor orientação no sentido de proteger o interesse do cidadão, sem nunca perder de vista a facticidade ou a viabilidade do Tribunal, diante de tal posicionamento.


A noção de ato normativo para fins de fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro

            O estudo sobre a noção de ato normativo será em muito guiado pelos ensinamentos do professor CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, que tratou com muita clareza sobre os objeto da fiscalização abstrata a constitucionalidade em obra que lhe concedeu a livre docência na Universidade Federal do Paraná (1).

            Pode parecer desnecessário, mas há de ser ressaltado que somente atos do Poder Público devem ser levados à fiscalização abstrata da constitucionalidade (2). Atos de natureza privada contrários à Constituição podem ser impugnados pela via judicial (controle difuso), mas não na via política do controle abstrato de constitucionalidade. Esse é correto entendimento que pode ser verificado em decisões do STF (3).

            No caso da Ação Declaratória de Constitucionalidade, a própria emenda constitucional que a introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, a EC 03/93, delimitou o objeto a tão somente leis ou atos normativos federais. Dessa asserção, não parece existir, em princípio, problema algum. Basta haver controvérsia acerca da constitucionalidade da mesma que o ajuizamento revelar-se-á possível.

            Os próprios conceitos de lei, de norma, de ato normativo, de um modo geral, todavia, trazem complicações, sendo necessário aferir-se qual a sinalização que o STF dá para tal questão.

            De início, faz-se necessário, ainda que, sucintamente, definir o que são leis formais e leis materiais. Lei material é o qualificador reputado ao ato normativo dotado de atributos de generalidade, de abstração e de impessoalidade, ao passo que lei formal é aquela, independente de seu conteúdo, que for emanada, segundo os critérios preconizados pela Constituição e por outras normas competentes (4), podendo, obviamente, possuir a lei ambos atributos.

            A jurisprudência do STF vem admitindo, para efeitos de admissão de instauração do processo de fiscalização abstrata da constitucionalidade, seja por lei, ou qualquer outro ato normativo que seja lei material, ou seja, que esse ato normativo possua os requisitos da abstração da generalidade e da impessoalidade (5), não se sujeitando, por via de conseqüência, os atos normativos de efeitos concretos.

            Além da gama de precedentes já mencionados, outros julgados do STF, todos de relatoria do Ministro Celso de Mello, ante à clareza quanto ao tema merecem serem trazidos à colação de modo pormenorizado: Na ADIn n.º 643, o Ministro relator pontificou:

            "O controle concentrado de constitucionalidade (...) tem uma só finalidade: propiciar o julgamento em tese, da validade de um ato estatal, de conteúdo normativo, em face da Constituição, viabilizando, assim, a defesa objetiva da ordem constitucional.

            O conteúdo normativo do ato estatal, desse modo, constitui pressuposto essencial do controle concentrado, cuja instauração – decorrente de adequada utilização da ação direta – tem por objetivo essa abstrata fiscalização de sua constitucionalidade.

            No controle abstrato de normas, em cujo âmbito instauram-se relações processuais objetivas, visa-se, portanto, a uma só finalidade: a tutela da ordem constitucional, sem vinculações quaisquer a situações jurídicas de caráter individual ou concreto.

            Não se tipificam como normativos os atos estatais desvestidos de abstração, generalidade e impessoalidade

            (...)

            O ato questionado, não obstante formalmente legislativo, atua como instrumento concretizador da translação dominial dos bens móveis que enuncia, definindo, em sua extensão subjetiva, o único destinatário desse gesto de liberdade estatal: uma entidade de classe revestida de personalidade de direito privado" (6).

            Nesse acórdão, o Ministro Celso de Mello destaca os elementos da abstração, generalidade e impessoalidade como requisitos para a apreciação da constitucionalidade em sede abstrata, rechaçando o cabimento de tal instauração na hipótese de uma lei formal não preencher esses requisitos. Tal observação é ainda mais explícita no julgado da ADIn n.º 842:

            "Objeto do controle normativo abstrato, perante a Suprema Corte, são, em nosso sistema de direito positivo, exclusivamente, os atos normativos federais, distritais ou estaduais. Refogem a essa jurisdição excepcional de controle os atos materialmente administrativos, ainda que incorporados ao texto de lei formal.

            Dentro desse contexto, portanto, não se revela lícita a utilização da ação direta de inconstitucionalidade como sucedâneo da ação popular constitucional, destinada, esta sim, a preservar, em função de seu amplo espectro de atuação jurídico-processual, a intangibilidade do patrimônio público e a integridade do princípio da moralidade administrativo [sic]. (CF, art. 5º, LXXIII)" (7). (Grifos no original).

            Finalizando essas considerações, repise-se a inadmissibilidade de atos de efeitos concretos, refutando-se cabalmente que a ação direta de inconstitucionalidade, assim como a ADC, não se prestam ao exame de decisões dos Tribunais no exercício de suas atividades administrativas :

            "Todos sabemos que os atos estatais de efeitos concretos não são passíveis de fiscalização, em tese, quanto à sua legitimidade constitucional; no controle abstrato de normas visa-se, tão somente, à tutela de ordem constitucional, sem vinculações quaisquer a situações jurídicas de caráter individual ou concreto.

            Dái decorre não ser possível admitir, em sede jurisdicional abstrata, a impugnação de decisão casuística de Tribunal de Justiça proferida no âmbito de sua atuação administrativa, ainda que o conteúdo da deliberação revele-se flagrantemente incompatível com a interpretação dada, pelo Supremo Tribunal Federal, a norma de índole constitucional." (8) (Destaque no original).

            Por conta desse posicionamento jurisprudencial, a Alta Corte brasileira não admite a fiscalização em sede abstrata das leis instituidoras de sociedades anônimas, tampouco das leis de diretrizes orçamentárias. De modo contraditório, todavia, o STF fiscaliza na mesma sede leis estaduais, portanto, não em sede de ADC, que criam, anexam ou desmembram municípios, atos formalmente legislativos, que, efetivamente, são atos concretos, não possuindo os requisitos antes exigíveis, em princípio, sobretudo o da abstração (9).

            Tal postura acaba por acarretar críticas veementes de doutrina autorizada, iniciando-se as considerações pelo professor CLÈMERSON MERLIN CLÈVE:

            "A propósito das leis meramente formais, o raciocínio desenvolvido nem sempre de modo coerente pelo STF pode ser contestado quando se leva em conta que os pressupostos de abstração e generalidade só estão presentes nas normas de conduta, sendo dispensados nas de estrutura. Assim, quando o Direito impõe comportamentos a um número indeterminado de pessoas, abarcando os requisitos de generalidade e abstração, os quais, somados ao de imperatividade, permitem reconhecer que se trata de um ato normativo. Por outro lado, quando o Direito fixa a competência dos vários órgãos do Estado, inclusive regulando-lhes a criação, tais atos jurídicos, nada obstante serem, aparentemente, individuais e concretos, trazem tamanhas conseqüências ao ordenamento jurídico, pela sucessão de efeitos que produzem..." (10)

            O professor GILMAR FERREIRA MENDES, a seu turno pondera a questão da seguinte forma:

            "A extensão dessa jurisprudência, desenvolvida para afastar do controle abstrato de normas os atos administrativos de efeito concreto, às chamadas leis formais suscita sem dúvida, alguma insegurança, porque coloca a salvo do controle de constitucionalidade um sem-número de leis.

            Não se discute que os atos do Poder Público sem o caráter de generalidade não se prestam ao controle abstrato de normas, porquanto a própria Constituição elegeu como objeto desse processo os atos tipicamente normativos, entendidos como aqueles dotados de um mínimo de generalidade e abstração.

            Ademais, não fosse assim, haveria uma superposição entre a típica jurisdição constitucional e a jurisdição ordinária.

            Outra há de ser, todavia, a interpretação se se cuida de atos editados sob a forma de lei. Nesse caso, houve por bem o constituinte não distinguir entre leis dotadas de generalidade e aqueloutras, conformadas sem o atributo da generalidade e abstração. Essas leis formais decorrem da vontade do legislador ou da vontade do próprio constituinte, que exige que determinados atos, ainda que de efeito concreto, sejam editados sob a forma de lei (v. g., lei de orçamento, lei que institui empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia e fundação pública).

            Ora, se a Constituição submete a lei ao processo de controle abstrato, até por ser este o meio próprio de inovação na ordem jurídica e o instrumento adequado de concretização da ordem constitucional, não parece admissível que o intérprete debilite essa garantia da Constituição, isentando um número elevado de atos aprovados sob a forma de lei do controle abstrato de normas e, muito provavelmente, de qualquer forma de controle. É que muitos desses atos, por não envolverem situações subjetivas, dificilmente poderão ser submetidos a um controle de legitimidade no âmbito da jurisdição extraordinária.

            Ressalte-se que não se vislumbram razões de índole lógica ou jurídica contra a aferição da legitimidade das leis formais no controle abstrato de normas, até porque abstrato – isto é, não vinculado ao caso concreto – há de ser o processo e não o ato legislativo submetido ao controle de constitucionalidade.

            Por derradeiro, cumpre observar que o entendimento do Supremo Tribunal Federal acima referido acaba, em muitos casos, por emprestar significado substancial a elementos muitas vezes acidentais, a suposta generalidade, impessoalidade e abstração ou a pretensa concretude e singularidade do ato do Poder Público.

            Os estudos e análises no plano da Teoria do Direito indicam que tanto se afigura possível formular uma lei de efeito concreto – lei casuística – de forma genérica e abstrata, quanto seria admissível apresentar como lei de efeito concreto uma regulação abrangente de um complexo mais ou menos amplo de situações.

            Todas essas considerações parecem demonstrar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não andou bem ao considerar as leis de efeito concreto como inidôneas para o controle abstrato de normas. (11)

            Outro problema que se apresenta é a definição desses conceitos de abstração e de generalidade serem dados pelo Tribunal, que pode cometer o equívoco de reputar de efeito concreto e negando seguimento ao processo de fiscalização abstrata de ato manifestamente possuidor dos atributos exigidos pela Corte.

            Em outras palavras, fica ao inteiro talante do Tribunal a aferição da presença, em um ato normativo levado à fiscalização abstrata da constitucionalidade, dos requisitos necessários à instalação dessa fiscalização.

            Tal apreciação, eminentemente subjetiva, acaba por não possuir nenhum critério efetivo, o que pode gerar equívocos, conforme mencionado, e até mesmo insegurança jurídica, sendo esse estado incerteza completamente avesso às diretrizes, até mesmo legitimadoras, do controle abstrato de constitucionalidade.

            Exemplo casuístico em que essa circunstância pode ser observada na ADInMC n.º 2415, em que o Ministro relator viu o ato normativo impugnado como possuidor de efeitos meramente concretos, com destinatários certos e determináveis.

            Uma exegese, ainda que perfunctória do ato em exame, todavia, deixa evidenciado que o entendimento atual é totalmente canhestro, sendo o ato evidentemente genérico e abstrato, sujeitando-se mesmo no contraditório entendimento do STF como ato passível de ser levado à fiscalização abstrata de constitucionalidade.

            Os três primeiros artigos do ato impugnado, um provimento do Tribunal de Justiça, reputado inconstitucional por "legislar", em matéria reservada à Lei, de iniciativa do Poder Executivo, têm a seguinte redação:

            "Art. 1º - As delegações de registro e de notas do interior do Estado de São Paulo são reorganizadas, mediante a acumulação e desacumulação de serviços, extinção e criação de unidades, na forma do anexo que integra este provimento.

            Art. 2º - Serão observadas, visando à implantação da nova organização, as seguintes normas de transição:

            I. Caso esteja prevista a acumulação de determinada especialidade a outra, ela ocorrerá, automaticamente, apenas quando vagas as delegações correspondentes, subsistindo, portanto, a delegação já outorgada, até o advento da vacância.

            II. Se efetivada a extinção de uma ou mais delegações de uma certa especialidade, a extinção sempre se operará com relação à delegação cuja vacância for mais antiga, assim considerada a que tenha ocorrido há mais tempo.

            III. Caso seja determinada, sem criação de novas delegações, a desacumulação e acumulação seqüencial de uma dada especialidade, a unidade que receber o respectivo serviço iniciará sua prestação desde logo, continuando também a fazê-lo, até a sua vacância, a unidade que o perdeu.

            IV. Quando uma delegação perder uma de suas atribuições, relativa a uma dada especialidade, desde que não haja criação de novas delegações, a extinção de tais atribuições só se consumará quando do advento da vacância.

            V. Se a desacumulação ou perda de atribuições vier acompanhada da criação de nova unidade, será concedido direito de opção ao delegado afetado, mas tais operações jurídicas serão feitas imediatamente.

            VI. Nos casos de desmembramento de circunscrições territoriais, a operação também será feita imediatamente, concedido direito de opção.

            VII. Caso persista o exercício conflitante de dois direitos de opção, prevalecerá sempre aquele manifestado pelo delegado mais antigo, ou seja, que tenha se tornado registrador ou notário há mais tempo.

            VIII. As delegações de registro de imóveis, que passem a acumular atribuições relativas ao registro civil das pessoas naturais, respeitada, para a acumulação, a divisão das circunscrições imobiliárias, deverão, em seus limites, se instalar. Nesta hipótese, a 1ª Circunscrição Imobiliária de uma comarca identificar-se-á com o 1º Subdistrito da sede da mesma comarca e a 2ª Circunscrição com o 2º Subdistrito, devendo o registrador manter a prestação do serviço público delegado, obrigatoriamente, em tais limites territoriais.

            Art. 3º - Quando em decorrência do presente provimento for necessária a remoção de acervos ou a assunção de novas funções, tais alterações serão realizadas no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias."

            Há normas de transição, prescrições de possíveis situações futuras impassíveis de serem vistas a um destinatário específico. Observe-se o artigo 2º do provimento atacado naquela ação: destacaram-se os termos: "caso", "se", "quando", "as delegações que passem...", "nos casos".

            Ora, inequivocamente, tratam-se de disposições abstratas, meras prescrições, caracterizadas pelo próprio provimento (caput do art. 2º) como normas de transição.

            No ato normativo, são fixadas diretrizes, hipóteses, aplicáveis a qualquer serviço notarial ou de registro. Está clara, evidente, insofismável a presença de generalidade, impessoalidade (corolário da primeira característica) e abstração. Até o momento, todavia, a despeito da clareza da feição normativa do ato, o STF não vê, conhecendo da ação que o ataca (12).

            Dessas ponderações, não é dificultoso concluir que no desempenho da atividade política da fiscalização abstrata da constitucionalidade, o STF limitou substancialmente a noção de ato normativo para fins desse controle, por meio dos requisitos extremamente fluidos da abstração, generalidade e impessoalidade.

            Esses conceitos, por vezes, mesmo havendo exegese contrária do Tribunal, são, apesar da fluidez, muita vez verificados ao mais simples lanço de olhos. Caso, o Tribunal assim não entenda, uma ação atacando esse ato não será conhecida. Disso deflui que a inexistência de parâmetros para aferição dos graus de abstração, generalidade e impessoalidade acaba por gerar insegurança jurídica.

            Somente a corroborar o aduzido, rememora-se a ampla admissão da fiscalização abstrata da constitucionalidade das leis estaduais que criam municípios, verdadeiras leis de efeitos concretos.

            Efetivamente, o rol de atos normativos possui inequívoca limitação, sendo oportuno examinar essa auto-contenção do STF em relação a Portugal. Antes, ainda que em brevíssimas considerações, deve-se ser destacada que a postura tímida do STF em relação à noção de atos normativos não é a única medida de "self restraint" da Corte brasileira nessa espécie de fiscalização da constitucionalidade.

            O STF, após 1988, em julgamentos de ação direta de inconstitucionalidade reavivou o entendimento firmado no período constitucional em vigor, no sentido de não se permitir fiscalização abstrata de constitucionalidade de atos normativos anteriores à Constituição e tampouco de atos normativos municipais.

            A primeira restrição mostra-se de perfeição técnica na medida em que efetivamente norma anterior à constitucional não padece de inconstitucionalidade superveniente. Se a suposta inconstitucionalidade fosse formal, ela estaria "convalidada", em outras palavras, estaria admitida no ordenamento jurídico pós constitucional, na forma em que seja válida, v.g., o Código Tributário Nacional. Se a "inconstitucionalidade" fosse material, estar-se-ia diante efetivamente de revogação e não de "inconstitucionalização".

            A despeito dessa constatação, caso o Tribunal quisesse em sede de ação direta constatar essa incompatibilidade, não haveria amarra alguma tolhendo-o. O que o refreou foi a sua própria determinação. No mesmo sentido deu-se o tratamento com os atos normativos municipais, não conhecidos em sede de controle abstrata.

            Por fim, é de se comentar ainda a criação da chamada pertinência temática por parte do STF. Segundo a criação do STF, evidenciando faceta legislativa sua, introduziu-se o requisito processual para instauração desse controle denominado pertinência temática, que se aproxima do interesse de agir visto no processo civil comum.

            Por meio de tal requisito as associações não podem intentar ações diretas de inconstitucionalidade sobre temas que estejam foram de suas metas institucionais, incluindo-se, dentro dessas metas, a defesa do interesse de seus associados.

            Tal requisito, vislumbrado em remansosa jurisprudência do STF, acaba por criar duas classes de legitimados para a instauração do controle abstrato de constitucionalidade: a classe especial, que pode ajuizar ação contra qualquer ato normativo e a dos legitimados de "segunda classe", que possuem o vínculo da pertinência temática.

            Como exemplo desse pacífico entendimento do STF, traz-se à colação o seguinte precedente:

            LEGITIMAÇÃO - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE -ENTIDADE SINDICAL. Somente as confederações possuem legitimidade para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade. O fato de a federação atuar no âmbito nacional e, portanto, de forma abrangente, não a legitima. Diante da dualidade contemplada no inciso IX do artigo 103 da Constituição Federal, tampouco cabe enquadrá-la, na espécie, como entidade de classe de âmbito nacional.

            LEGITIMAÇÃO - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE -ENTIDADE SINDICAL - PERTINÊNCIA TEMÁTICA. Em se tratando quer de confederação sindical, quer de entidade de classe de âmbito nacional, cumpre, para definição da legitimidade ativa na ação direta de inconstitucionalidade, examinar a pertinência temática, tendo em vista o objetivo social, previsto no estatuto, e o alcance da norma atacada. Isso não ocorre quando a entidade sindical de trabalhadores impugna diploma legal, como é a Lei nº 2.470/95, do Rio de Janeiro, regedor da privatização. A pertinência temática há de fazer-se na via direta (13).

            Não se discute no presente momento a correção da criação de tal óbice processual, só se questiona em que medida pode-se falar em processo objetivo, quando se cria um requisito eminentemente subjetivo para a sua instauração.

            Para que se possa fazer uma análise sobre as conseqüências dessa postura jurisprudencial do STF, promover-se-á um cotejo com a realidade em matéria de normas sujeitas ao controle abstrato de constitucionalidade em Portugal.


A noção de ato normativo para fins de fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito português

            A fiscalização abstrata de constitucionalidade portuguesa, realizada pelo Tribunal Constitucional, adota posicionamento bastante diferenciado ao do STF, admitindo, para a instauração do controle, normas no sentido formal, excluindo-se, tão somente, atos de natureza privada (14) e atos administrativos propriamente ditos.

            Nos termos do art. 223º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional é "o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional".

            Na dicção do art. 224º "o Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, sendo dez designados pela Assembléia da República e três cooptados por estes. Seis de entre os juízes designados pela Assembléia da República ou cooptados são obrigatoriamente escolhidos de entre juízes dos restantes tribunais e os demais de entre juristas. Os juízes do Tribunal Constitucional são designados por seis anos. O Presidente do Tribunal Constitucional é eleito pelos respectivos juízes."

            Tamanha é amplitude da aceitação à sua provocação, que o Tribunal Constitucional admite até mesmo, quando relevante, algo impensável pelo STF, a fiscalização abstrata de normas já revogadas, pautando-se o Tribunal na importância e no interesse social de sua manifestação sobre o ato normativo posto em exame (15).

            A noção de norma na jurisprudência do Tribunal Constitucional português, como será visto, envolve qualquer ato de poder normativo do Estado, ainda que não preenchidos os critérios da abstração, da generalidade e da impessoalidade. Ou seja, atos individuais e concretos, desde que emanados do Estado, são sujeitos à fiscalização abstrata da constitucionalidade.

            Em outras palavras, em Portugal todo ato estatal possuidor de um mandamento, de uma prescrição, de um "dever-ser", de uma regra de conduta é passível de aferição em sede de fiscalização abstrata da constitucionalidade.

            Essa constatação, acerca da amplitude do conceito de norma para efeitos de controle abstrato em Portugal, notada pela doutrina local (16), é facilmente aferida pelos julgados abaixo:

            "I - O conceito de norma para o efeito dos procedimentos específicos de controle da constitucionalidade há de ser um conceito "funcional", ou seja, "funcionalmente adequado" ao sistema de fiscalização da constitucionalidade instituído pela lei fundamental e consonante com a sua justificação e sentido.

            II - Na noção de "norma" entra assim qualquer acto de um "poder normativo" do Estado (lato sensu), ainda que de conteúdo individual e concreto, ficando excluídos os actos que se traduzem apenas na aplicação ou execução de normas jurídicas, tais como as decisões judiciais, os actos da Administração sem carácter normativo (ou actos administrativos propriamente ditos) e os "actos políticos" ou "actos de governo", em sentido estrito.

            III - Não releva objectar que, incorporando-se actos administrativos em preceitos legislativos concretos não devem estes estar sujeitos aos específicos procedimentos de controle da constitucionalidade por já estar contra eles aberta a garantia do recurso contencioso, pois se trata de meios processuais que não se confundem nem se excluem." (17)

            "Constitui jurisprudência constante do Tribunal Constitucional na seqüência do anteriormente sufragado pela Comissão Constitucional que o conceito de norma para o efeito de fiscalização da constitucionalidade, corresponde a um conceito funcional e formal de "norma", pelo que não abrange apenas os preceitos de natureza geral e abstracta, mas inclui todo e qualquer acto do poder publico que contiver uma "regra de conduta" para os particulares ou para a Administração, um "critério de decisão" para esta ultima ou para o juiz ou, em geral, um "padrão de valoração de comportamento"" (18).

            É de se observar que, ao contrário do verificado na atuação do Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Constitucional português refuta veementemente o atrelamento, para fins de se proceder ao controle abstrato de constitucionalidade, aos princípios de generalidade e abstração, sob pena de não realizar o mandamento constitucional que dispõe sobre o tema. Confira-se:

            "I - 1. Para integrar o conceito de "norma" constante dos artigos 278 a 282 da Constituição e para efeitos de fiscalização da constitucionalidade, não se poderá partir do conceito clássico e aprioristicamente fixado de norma, nomeadamente aquele a que se ligam as características de generalidade e abstracção; torna-se necessário buscar um conceito de norma funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade instituído na Constituição e que seja consonante com a sua justificação e sentido.

            2. No entanto, o conceito funcional de "norma" não se devera inteiramente e desde logo desligar de um conceito formal, sendo que o sistema de fiscalização de constitucionalidade e um sistema que intenta controlar os actos do poder normativo publico, o que inculca, antes do mais, a sua edição mediante a forma adequada ao exercício de um poder normativo.

            3. Neste sentido, o "regulamento" que fixa as normas necessárias ao funcionamento e organização da Assembléia da Republica, inserido na sua competência interna de harmonia com o comando constante do artigo 178; a) da Constituição preenche as características de norma para efeitos da sua apreciação pelo Tribunal Constitucional, sendo certo que e questionável que o Regimento em causa seja puro regulamento interno - e, sim, um acto normativo especifico "su generis" ( embora não um acto legislativo), expressão de autonomia normativa interna." (19)

            Inequivocamente, a gama de atos normativos desvela-se muito maior, cabendo coligir, na visão de J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, quais seriam, em linhas gerais, os atos sujeitos à fiscalização abstrata da constitucionalidade:

            "III.Importa discriminar o elenco dos actos normativos sujeitos a fiscalização da constitucionalidade. São eles:

            - as leis de revisão constitucional, pois são normas constitucionais derivadas, emergentes do poder de revisão, que têm carácter constitucionalmente subordinado e condicionado, sendo por isso susceptíveis de fiscalização de constitucional idade;

            - os instrumentos de direito internacional, nomeadamente as convenções internacionais (cfr. art. 278º-1), sendo improvável qualquer incompatibilidade entre o direito internacional geral e a lei fundamental - independentemente da sua natureza (<<tratados normativos>> ou <<tratados-contrato>>), da sua forma (tratados solenes ou acordos em forma simplificada), ou da sua incidência (eficácia apenas nas relações externas ou também efeitos normativos internos);

            - as normas emitidas por organizações internacionais de que Portugal faça parte (incluindo o direito comunitário da CEE), pois estão indubitavelmente abrangidas no conceito de normas utilizado nesta área pela Constituição (art. 8º-3), não estando prevista nenhuma excepção para esse direito ( e de resto não deixaria de ser chocante, sob o ponto de vista do próprio princípio do Estado de direito - que há de começar por ser Estado de direito constitucional -, admitir a imunidade constitucional de quaisquer normas vigentes na ordem jurídica portuguesa);

            - os actos normativos do PR, pois se, em princípio, o PR. não tem competência constitucional para emitir normas, parece existir, porém, uma excepção, consubstanciada no decreto de declaração do estado-sítio ou do estado-de-emergência, pois esse decreto deve, entre outras coisas, inserir o regime de restrição dos direitos, liberdades e garantias durante o estado de excepção, o que assume evidente natureza normativa, podendo o decreto do PR ser inconstitucional não apenas por infracção dos pertinentes requisitos e limites materiais da CRP mas também por ter ultrapassado os termos da autorização da AR, constantes da respectiva lei;

            - os actos legislativos em geral, ou seja, as leis da AR, os decretos-leis do Governo e os decretos legislativos das regiões autônomas (art. 1152- 1), independentemente do seu conteúdo, pois não há na Constituição qualquer apoio para uma definição material da lei (como acto normativo geral e abstracto de carácter <(primário>>);

            - as resoluções normativas de AR e das assembleias regionais, pois, para além das leis, elas aprovam os seus próprios regimentos, bem como outras resoluções (cfr. art. 169º-5), que podem ter carácter normativo, como sucede com as resoluções da AR que recusem a ratificação de decretos-leis ou de decretos legislativos regionais, ou que suspendam a sua vigência (art. 17211), sem falar nas resoluções da AR que aprovam convenções internacionais (em que o acto normativo é o próprio tratado);

            - os actos normativos da Administração, ou seja, as normas jurídicas que os órgãos administrativos editam no desempenho da função administrativa e que têm a designação genérica de regulamentos, qualquer que seja a entidade de que emanem - Estado, regiões autônomas, autarquias locais (e respectivas administrações indirectas), outras administrações autônomas (associações públicas, etc.), os demais órgãos do Estado dotados de poderes administrativos (v. g., o CSDN), e ainda as entidades privadas legalmente dotadas de poderes regulamentares públicos - e qualquer que seja a sua forma e a sua designação (desde o decreto regulamentar à postura municipal, passando pelas resoluções, portarias, despachos, etc.);

            - os regimentos das assembléias (e de outros órgãos colegiais públicos), pois está hoje superada a doutrina clássica, que considerava os regimentos insindicáveis (por serem actos interna corporis), visto que eles regulam o procedimento de formação dos actos desses órgãos, além de freqüentemente concretizarem os direitos das minorias;

            - os referendos locais, pois diferentemente do que sucede com os referendos nacionais (art. 118º), a Constituição parece não excluir (art. 242º-3) e, nesse caso, a lei pode admitir que eles possam decidir directamente sobre a aprovação de normas (no estrito campo das atribuições normativas das autarquias, bem entendido) e, apesar de tais normas caberem necessariamente no gênero regulamentar (v. art. 2422), sempre se trata de um acto normativo sui generis;

            - os contratos e acordos colectivos de trabalho, pois embora a Constituição remeta para a lei a determinação da sua eficácia (art. 56º-4), é entendimento corrente de que eles possuem natureza normativa (é a própria Constituição que na disposição mencionada fala em ç<normas>>), com valor pelo menos idêntico ao das portarias de regulamentação de trabalho (que, como regulamentos que são, estão indubitavelmente sujeitos a fiscalização da constitucional idade);

            - as normas consuetudinárias, nos domínios onde estas normas são admitidas como fonte de direito interno (cfr., v. g., Cód. Civil, art. 3º-I), sendo de excluir à partida a probabilidade de conflito entre o direito internacional comum consuetudinário (que, nos termos do art. 82, faz parte integrante do direito português) e a Constituição, adquirindo assim, ele mesmo, carácter constitucional;

            - os assentos dos tribunais superiores (na medida em que não são eles mesmos excluídos pela Constituição: efr. art. 115º-5 e respectiva anotação), pois, dada a sua indiscutida natureza normativa, as respectivas normas não podem estar isentas do controle de constitucionalidade;

            - as cláusulas compromissórias e os compromissos arbitrais (cfr. Cód. de Proc. Civil, arts. 1500º e 15132), pois, como normas ou padrões de comportamento dos árbitros e do desenvolvimento do processo, devem por isso estar também sujeitos a controlo da constitucionalidade como qualquer outra norma (o mesmo vale para as normas processuais adoptadas pelos próprios tribunais arbitrais: cfr. AcTC nº 150186);

            - os estatutos e regulamentos das associações públicas (cfr. art. 2672-1 e 3), sendo inquestionável a sua natureza de normas de carácter público (o estatuto da associação só assume autonomia nesta sede quando ele seja aprovado pela próprio associação, visto que, quando aprovado mediante acto normativo do Estado, revestirá necessariamente a forma de lei ou regulamento);

            - as normas produzidas por entidades privadas por devolução de entidades públicas (regulamentos emitidos pelos concessionários de obras públicas ou de serviços públicos), sendo caso duvidoso o dos regulamentos de entidades privadas legalmente sujeitos a aprovação ou homologação pública (v. g., os regulamentos de fábrica)." (20)


Considerações finais: um cotejo entre a visão brasileira e a portuguesa

            A orientação jurisprudencial portuguesa colacionada mostra que o Tribunal Constitucional Português além de se estribar, para admitir ato normativo para proceder à fiscalização abstrata da constitucionalidade, em lei no sentido formal, abrir-se para realizar à fiscalização qualquer ato do poder público com cunho decisório ou que implique um "dever ser" para o cidadão.

            Tal postura é elogiada expressamente pelo professor CLÈMERSON MERLIN CLÈVE (21), que defende, em síntese, "que toda e qualquer norma sob forma de lei possa desafiar o controle abstrato" (22).

            Entende-se que tal posição há de ser ponderada. Apesar de observar que a intervenção do Tribunal Constitucional português é mais enérgica, até mesmo mais ajustada ao papel de órgão máximo do Poder Judiciário, há de serem lembradas especificidades locais, que acabam por justificar uma postura mais restritiva do STF:

            A dimensão territorial – o número de "normas" na intelecção do Tribunal português que poderiam ser trazidos ao crivo do STF, ante à extensão territorial, ao número de Estados Federados, impossibilitaria faticamente essa apreciação;

            O rol de legitimados – Portugal, em sua Consituição, prevê no art. 281º uma lista considerável de legitimados, mas nada que se possa comparar à infinidade de legitimados à instauração da fiscalização abstrata que ocorre no Brasil. Somente para efeitos comparativos, destaca-se a atuação dos partidos políticos, em especial dos representantes eleitos.

           Em Portugal, por previsão do art. 281º. 2. f, de sua Constituição é legitimado para a instauração da fiscalização abstrata o correspondente a um décimo da Assembléia da República, o que, pela composição prevista no art. 151º, equivale a 23 deputados (23).

            No Brasil, para se ingressar, basta que o partido político tenha um representante no Congresso Nacional, o que acaba por permitir que as "unorias", equivalentes a tão somente 1/600 do Congresso Nacional proponham deliberadamente ações diretas, sendo efetivamente muito mais "legislador" junto ao STF do que junto a uma das casas do Congresso Nacional.

            Essa prodigalidade de ações acabou levando o STF a adotar a postura restritiva da pertinência temática, que conforme salientado não parece ser a opção mais afinada com os interesses sociais, mostrando-se mais oportuno, se necessária (como efetivamente se mostra) uma seleção do que será julgado, que se fizesse pragmaticamente, politicamente por critérios de relevância.

            Volume de processos e competência dos tribunais – a carga de trabalho atribuída ao STF é humanamente inadmissível. Não se tem dados estatísticos quanto aos casos que chegam anualmente ao Tribunal Constitucional português, todavia, não parece existir dúvida de que o número é infinitamente menor do que os quase 90 mil processos que chegaram ao STF em 2000.

            Somente a título de comparação, pede-se que se coteje a conhecida e amplíssima competência do STF, com a reduzidíssima competência do Tribunal Constitucional português, abaixo aduzida, prevista no art. 225º da Constituição daquele País. Fica evidente não poder o STF ter uma postura muito ampliativa no que toca ao alargamento de sua já alargada competência, sobretudo se comparadas suas atribuições com as do Tribunal Constitucional lusitano:

            Art. 225º - (Competência)

            Compete ao Tribunal Constitucional apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade, nos termos dos artigos 277º e seguintes.

            Compete também ao Tribunal Constitucional:

            Verificar a morte e declarar a impossibilidade física permanente do Presidente da República, bem como verificar os impedimentos temporários do exercício das suas funções;

            Verificar a perda do cargo de Presidente da República, nos casos previstos no nº 3 do artigo 132º e no nº 3 do artigo 133º;

            Julgar em última instância a regularidade e a validade dos actos de processo eleitoral, nos termos da lei;

            Verificar a morte e declarar a incapacidade para o exercício da função presidencial de qualquer candidato a Presidente da República, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 127º;

            Verificar a legalidade da constituição de partidos políticos e suas coligações, bem como apreciar a legalidade das suas denominações, siglas e símbolos, e ordenar a respectiva extinção, nos termos da Constituição e da lei;

            Verificar previamente a constitucionalidade e a legalidade dos referendos e das consultas directas aos eleitores a nível local.

            Compete ainda no Tribunal Constitucional exercer as demais funções que lhe sejam atribuídas pela Constituição e pela lei.

            Não se está a justificar a postura defensiva do STF e nem que ela não possa nem deva ser modificada. Talvez não da melhor forma, mas a restrição jurisprudencial do STF mostra-se, inequivocamente, medida para se evitar o colapso, a inviabilidade (partindo-se da duvidosa premissa que ela ainda não é experimentada) do Tribunal brasileiro.

            Reitera-se que uma postura pragmática do STF em que somente seja admitido para fins de fiscalização abstrata da constitucionalidade normas que sejam relevantes daria grande poder à Corte e afinaria com o seu desiderato de guardião da Constituição. A efetiva guarda da Constituição, dentro de um contexto fático, não é plenamente alcançável. Evidentemente, sempre haverá tensão entre interesses e entre princípios.

            Talvez a medida adotada pelo STF em restringir bruscamente ao acesso das associações de classe à instauração do controle e restringir o rol de "atos normativos" que sujeitam-se à sua cognição, enfraquecem os dispositivos constitucionais que asseguram a fruição, o acesso à jurisdição constitucional. Por outro lado, em que medida não se estaria aniquilando a Constituição se fosse permitida a ampla instauração do controle abstrato de normas, inviabilizando o guardião da Constituição?

            Mais uma vez, teoricamente, defende-se que, na condição de Corte política, a melhor medida a ser tomada pelo STF era a adoção de uma postura pragmática, que não generalizasse a inviabilidade de ações contra leis meramente formais, ou de associações que, em princípio, não teriam pertinência temática para cuidar da questão. O critério da relevância, além de não inviabilizar o Tribunal, seria mais consentâneo com a sua atividade de guarda da Constituição.

            No que toca à noção de ato normativo no direito português, pouco merece ser debatido. Evidentemente, a postura do Tribunal Constitucional Português mostra-se mais afinada com a maior efetividade das normas constitucionais e com o a maior eficácia do controle de constitucionalidade.

            É de se ressaltar, todavia, que isto só é possível em face de questões circunstanciais, como a diminuta extensão territorial, anteriormente aludida e, principalmente, em razão da opção do legislador em fazer um leque considerável de legitimados, sem a abertura excessiva, ao contrário do constituinte brasileiro, que, em razão da amplitude da previsão constitucional, não permite sequer que se saiba quantos são os legitimados para a instauração da fiscalização abstrata.

            Em sucintas considerações, à toda evidência, os tribunais examinados, lapidaram a noção de ato normativo para fins de fiscalização abstrata da constitucionalidade nos limites em que as suas respectivas Constituições possibilitaram, sendo a noção portuguesa mais técnica e mais afinada com a maior abrangência do controle de sua Constituição, pelos motivos ora apresentados.

            Saliente-se que as diferentes noções de ato normativo dos dois países, além dos diversos aspectos abordados, são também, em última análise, reflexo da qualidade das disposições constitucionais atinentes às competências e aos procedimentos de acesso aos seus órgãos de cúpula no Judiciário.


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            BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1262, Relator: Ministro Sydney Sanches, vencido Ministro Marco Aurélio. RTJ 158/34.

            BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1434 Relator: Ministro Celso de Mello. Publicado no D.J.U em 22.11.1996.

            BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1508, Relator: Min. Marco Aurélio. Decisão Publicada no DJ em 29.11.1996.

            BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1640. Relator: Ministro Sydney Sanches. Publicado no D.J.U em 3.4.1998.

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            BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1712. Relator: Ministro Moreira Alves. Publicado no D.J.U em 27.4.2001.

            BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1716. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Publicado no D.J.U em 27.3.1998.

            BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1789. Relator: Ministro Néri da Silveira. Publicado no D.J.U em 12.6.1998

            BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1827 Relator: Ministro Néri da Silveira. Publicado no D.J.U em 17.12.1999.

            BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1881. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgado em 3.9.1998.

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            CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3a. edição. Coimbra. Livraria Almedina, 1999.

            CANOTILHO, J. J. Gomes. VITAL MOREIRA. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3 ed. rev. Coimbra : Coimbra Editora. 1993.

            CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2.ed rev. e ampl. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2000.

            MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 3ed. São Paulo : Saraiva, 1999.

            PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. ACTC 1473. Relator: Ministro Cardoso da Costa – declaração de voto do Ministro Vital Moreira. Julgado em 7.7.1988. Publicado no Diário da República em 26.7.1988.

            PORTUGAL TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. ACTC 2655. Relator : Ministro Bravo Serra. Publicado no Diário da República em 19.3.91.

            PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ACTC 4726 Relator: Ministro Alves Correia Publicado no Diário da República em 22.4.1994

            PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. ACTC 5802 Relator: Ministro Nunes de Almeida. [s/d]

            PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Processo n.º 85.0054. Relator: Ministro Costa Mesquita. Publicado no Diário da República em 27.5.1986.

            PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. ACTC 5447 Relator. Ministro Vitor Nunes de Almeida. Publicado no Diário da República em 3.5.1995.

            PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. ACTC 5952 Relator: Ministro Guilherme da Fonseca. Publicado no Diário da República em 14.12.1995.


Notas

            1. Faz-se referência a CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2.ed rev. e ampl. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2000A despeito de a 2ª edição da obra ter sido publicada após o advento da Lei n.º 9.882/99, o professor não teceu grandes considerações sobre o instituto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, tendo a pesquisa voltado-se mais aos atos normativos que possam ser submetidos ao controle de constitucionalidade em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) e em Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC)..

            2. CLÈVE, op. cit., p. 183.

            3. Nesse sentido, vejam-se: BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1434 Relator: Ministro Celso de Mello. Publicado no D.J.U em 22.11.1996 e BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1254. Relator: Ministro Celso de Mello. Publicado no D.J.U em 19.9.1997.

            4. Observe-se que o parágrafo único do art. 59 da Constituição menciona que Lei Complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação de leis.

            5. Nesse sentido, vejam-se: ADIn n.º 50 (GALLOTI); AgADIn n.º 203 (CELSO DE MELLO); ADIn n.º 205 (ALDIR PASSARINHO); ADIn n.º 527 (NÉRI DA SILVEIRA); ADIn n.º 769 (CELSO DE MELLO); ADIn n.º 811 (NÉRI DA SILVEIRA); ADIn n.º 1640 (SANCHES); ADIn n.º 1658 (VELLOSO); ADIn n.º 1712 (MOREIRA ALVES) ADIn n.º 1716 (PERTENCE); ADIn n.º 1789 (NÉRI DA SILVEIRA) ADIN n.º 1827 (NÉRI DA SILVEIRA), entre outras.

            6. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 643 (medida liminar) Relator: Ministro Celso de Mello. RTJ 139/73.

            7. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 842 (medida liminar) Relator: Ministro Celso de Mello. RTJ 147/545.

            8. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 587 (questão de ordem) Relator: Ministro Celso de Mello. Decisão publicada no DJ em 8.5.1992, ementário n.º 1860-1.

            9. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1262, Relator: Ministro Sydney Sanches, vencido Ministro Marco Aurélio. RTJ 158/34. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 458. Relator: Octavio Gallotti. Decisão publicada no DJ em 11.9.1198 e BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1881. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgado em 3.9.1998.

            10. Op. cit., p. 193

            11. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 3ed. São Paulo : Saraiva, 1999. pp. 162-3.

            12. Tais considerações no âmbito da ADC não se desvelam com a mesma relevância do que na ADIn. Tendo em vista a necessidade de prévia instauração de controvérsia constitucional.

            13. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1508, Relator: Min. Marco Aurélio. Decisão Publicada no DJ em 29.11.1996.

            14. Vedando o conhecimento de atos de natureza privada, assim como se verifica no Brasil, vide PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. ACTC 5952 Relator: Ministro Guilherme da Fonseca. Publicado no Diário da República em 14.12.1995.

            15. Na jurisprudência brasileira, vejam-se Ação Direta de Inconstitucionalidade (medida cautelar) 1758 Relator: Ministro Marco Aurélio. Publicado no D.J.U. em 22.5.1998, Ação Direta de Inconstitucionalidade (medida cautelar) 1176 Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Publicado no D.J.U. em 7.4.1995, dentre outros. Pelo lado português, menciona-se acórdão que, em face da relevância do julgado, conheceu-se de ação cuja norma já havia sido revogada: "I - O Tribunal Constitucional já tem uma extensa jurisprudência sobre a utilidade do conhecimento dos pedidos de fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas entretanto revogadas. Releva aqui o princípio de que nesta matéria, o interesse processual deve traduzir-se na existência de um interesse «com conteúdo prático apreciável» que justifique a utilização de um meio processual que conduza à apreciação genérica e abstracta da inconstitucionalidade de uma norma jurídica. Ora, é este interesse com um conteúdo prático apreciável que o requerente não alega, nem resulta da análise da presente situação." PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. ACTC 5802 Relator: Ministro Nunes de Almeida. No mesmo sentido vejam-se:Processo n.º 85.0054. Relator: Ministro Costa Mesquita. Publicado no Diário da República em 27.5.1986. ACTC 5447 Relator. Ministro Vitor Nunes de Almeida. Publicado no Diário da República em 3.5.1995.

            16. Veja-se CANOTILHO, op. cit., p. 941 e em obra coletiva com VITAL MOREIRA. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3 ed. rev. Coimbra : Coimbra Editora. 1993, p. 975

            17. PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. ACTC 1473. Relator: Ministro Cardoso da Costa – declaração de voto do Ministro Vital Moreira. Julgado em 7.7.1988. Publicado no Diário da República em 26.7.1988.

            18. PORTUGAL. TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ACTC 4726 Relator: Ministro Alves Correia Publicado no Diário da República em 22.4.1994

            19. PORTUGAL TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. ACTC 2655. Relator : Ministro Bravo Serra. Publicado no Diário da República em 19.3.91

            20. CANOTILHO, J. J. Gomes. VITAL MOREIRA. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3 ed. rev. Coimbra : Coimbra Editora. 1993. pp. 896 e segs. Veja-se também CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3a. edição. Coimbra. Livraria Almedina, 1999.

            21. op. cit., p. 191.

            22. op. cit., p; 195.

            23. A composição da AR pela dicção do citado dispositivo não poderá ser menor que 230 deputados, nem maior que 235.



*advogado em Brasília (DF)


OLIVEIRA, Marcelo Ribeiro de. A noção de ato normativo para fins de fiscalização da constitucionalidade em sede abstrata: um estudo comparativo entre Brasil e Portugal. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3355. Acesso em: 22 set. 2006.