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Ações afirmativas e política de cotas são expressões sinônimas?
Dayse Coelho de Almeida*
*Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes - UNIT/SE, advogada, egressa
da Escola Superior do Ministério Público de Sergipe - ESMP/SE, colaboradora de
sites jurídicos (Jus Navigandi, Jus Vigilantibus, Boletim Jurídico),
pós-graduanda em Direito Público pela Pontifica Universidade Católica de Minas
Gerais - PUC/MG.
Em todo o mundo... Minorias étnicas continuam a ser desproporcionalmente
pobres, desproporcionalmente afetadas pelo desemprego e desproporcionalmente
menos escolarizadas que os grupos dominantes. Estão sub-representadas nas
estruturas políticas e super-representadas nas prisões. Têm menos acesso a
serviços de saúde de qualidade e, conseqüentemente, menor expectativa de vida.
Estas, e outras formas de injustiça racial, são a cruel realidade do nosso
tempo; mas não precisam ser inevitáveis no nosso futuro. Grifo nosso
(Kofi Annan, Secretário Geral da ONU, março, 2001).
Ações afirmativas significam a implementação ou incremento de políticas de
discriminação positiva, tendo por objetivo central revisitar o conteúdo
sociológico e jurídico, vislumbrando colocá-lo num patamar de aplicabilidade
real. Ação afirmativa é um gênero da qual a política de cotas faz parte.
A questão requer um conceito de princípio que entendemos ser SILVA
(1989:433) o que melhor exprime o significado aduzindo que:
princípio derivado do latim principium
(origem, começo) em sentido vulgar quer exprimir o começo da vida ou o primeiro
instante em que as pessoas ou as coisas começaram a existir. É, amplamente,
indicativo do começo ou origem de qualquer coisa. No sentido jurídico,
notadamente no plural, quer significar as normas elementares ou os requisitos
primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim,
princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para
servir de norma a toda ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em
qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido. Mostram-se a própria
razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em axiomas.
Compreendido o sentido de princípio na sua acepção jurídica, convém
suscitar a discussão sobre o que é discriminação positiva. O tratamento
discriminatório é o diferenciado. A discriminação negativa é a calcada no
desrespeito à igualdade, ao passo que a discriminação positiva é fundada em
manter ou tornar viável a igualdade. O princípio constitucional da igualdade,
como sabemos, tem dois sentidos: o formal que se consubstancia no tratamento
jurídico propriamente dito, explicitado na igualdade de todos perante a lei,
impondo ao Estado o dever de agir igualitariamente com os administrados, e o
sentido material que implica em oportunidade, acesso aos meios de produção por
intermédio de políticas públicas, ações reais de inserção de todos na
sociedade, o que induz à justiça social.
No sentido formal da igualdade somos todos iguais, porém no sentido
material ainda temos um longo caminhar e este é o desafio para a presente e
para as futuras gerações, que tem como dever imperioso retirar do papel a
igualdade material e pô-la em prática.
A discriminação positiva encontra guarida no campo do sentido material
do princípio da igualdade, impondo ao Estado conduta orientada a suprir essas
desigualdades através de políticas públicas eficazes, que insiram os
prejudicados de maneira plena na sociedade. Estas políticas públicas eficazes
são as chamadas ações afirmativas. O doutrinador constitucionalista lusitano
CANOTILHO (1999:385), vem a demonstrar a importância da discriminação positiva
ou não-discriminação:
Uma das funções dos direitos fundamentais ultimamente mais acentuada
pela doutrina (sobretudo a doutrina norte-americana) é a que se pode chamar de
função de não-discriminação. A partir do princípio da igualdade e dos direitos
de igualdade específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta
função primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado
trate seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. (...) Alarga-se [tal
função] de igual modo aos direitos a prestações (prestações de saúde,
habitação). É com base nesta função que se discute o problema das quotas (ex.:
parlamento paritário de homens e mulheres) e o problema das affirmative actions
tendentes a compensar a desigualdade de oportunidades (ex.: quotas de
deficientes).
A Teoria do Impacto Desproporcional (Disparate Impact Doctrine) é um
dos reflexos doutrinários da tendência mundial a adotar as ações afirmativas.
Esta tem como princípio basilar proteger os cidadãos de toda lei, atitude,
prática ou mesmo costume que estabeleça condições de desigualdade material,
justamente medindo o impacto social desproporcional sobre determinada seara de
pessoas que podem ser negros, homossexuais, mulheres, silvícolas e outros
grupos que historicamente têm sido preteridos nas escolhas políticas e
históricas. Esta teoria é interessante e pode ser entendida como uma proteção à
ditadura da maioria, exigindo respeito aos mínimos direitos fundamentais,
partindo entretanto do viés do resultado e da lesividade causada, o que
reafirma o Estado Democrático de Direito.
Um bom exemplo da utilização da teoria do impacto desproporcional é a
avaliação para ingresso em universidades por exame de proveniência escolar, ou
seja, de quais escolas vem o aluno. Em primeira leitura parece que isto é
absolutamente aceitável, entretanto considerando que a maioria negra provém de
escolas consideradas de péssimo ou baixo nível, a medida toma um novo cunho porque
em resultado possibilitará o ingresso apenas de pessoas brancas, pelo menos em
sua maioria esmagadora. A solução adotada foi a de instituir teste de aptidão
por inteligência, como foi citado por SILVA (2002), utilizando as diretrizes de
análise da teoria apontada.
DIAS (1998:25) frisou que o que se deve atentar não é à igualdade
perante a lei, mas o direito à igualdade mediante a eliminação das
desigualdades, o que impõe que se estabeleçam diferenciações específicas como
única forma de dar efetividade ao preceito isonômico consagrado na
Constituição. A consagração da igualdade advém necessariamente do combate às
desigualdades, que tem como artilharia principal a "positive
discrimination", deixando patente que a realidade fática é muito díspare
da realidade jurídica.
Escolher por adotar ação afirmativa é uma
tarefa árdua porque é essencial a ponderação principiológica, porque o
princípio da igualdade não é de cunho superior aos demais princípios
constitucionais. Imperioso trazer opinião do insigne jurista DWORKIN (1999:492)
sobre a necessidade de apoio da sociedade para que as desigualdades sejam
eliminadas e ele diz isto de forma incidente quando afirma que: é uma atitude
contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os
compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais
compromissos exigem a cada nova circunstância, o que induz a entender que a
posição de certo ou errado irá ficar na pendência da situação concreta.
Embora muito se discuta, acreditando ser assunto no Brasil sobre ações
afirmativas, podemos citar alguns exemplos não recentes de adoção, vejamos:
A. Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que prevê, em
seu art. 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas
individuais ou coletivas.
B. Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que estabelece, em seu art. 373-A, a adoção de
políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualdade de
direitos entre homens e mulheres.
C. Lei 8.112/90, que prescreve, em art. 5º, § 2º, cotas de até 20% para os
portadores de deficiências no serviço público civil da união.
D. Lei 8.213/91, que fixou, em seu art. 93, cotas para os portadores de
deficiência no setor privado.
E. Lei 8.666/93, que preceitua, em art. 24, inc. XX, a inexigibilidade de
licitação para contratação de associações filantrópicas de portadores de
deficiência.
F. Lei 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10, § 2º, cotas para mulheres nas
candidaturas partidárias
A coerência com os fatores sociais, econômicos, políticos, culturais e
históricos é uma premissa inafastável para a formulação das políticas públicas,
de forma que a ações afirmativas caracterizam o amadurecimento do povo, através
de seus representados (na elaboração de leis), para com suas próprias
necessidades e principalmente para corrigir as distorções injustas produzidas
ao longo de nossa história. Este é um compromisso com a evolução da raça
humana.
Neste momento cumpre trazer à colação a opinião de DWORKIN (2000:451)
com relação ao sistema de cotas porque este jurista vivencia a realidade das
ações afirmativas e comenta em especial a adoção da política de cotas para
negros, vejamos:
pode ser que os programas de admissão preferencial não criem, de fato,
uma sociedade mais igualitária, pois é possível que não tenham os efeitos
imaginados por seus advogados. [...] Não devemos, porém, corromper esse debate
imaginando que tais programas são injustos mesmo quando funcionam. Precisamos
ter o cuidado de não usar a Cláusula de Igual Proteção para fraudar a
igualdade.
Este é um risco que se corre quando o debate sobre as ações afirmativas
caminha rumo a demagogia. Michel Foucalt já alertou-nos dizendo que A ficção
consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer ver até que ponto é
invisível a invisibilidade do visível. A frase até pode parecer confusa, mas
tem ele razão ao proclamar que somos permissivos a todo tipo de ação afirmativa
(mulheres, brasileiros natos, deficientes físicos, homossexuais e etc), mas
quando se trata de negros ainda há extrema relutância, que pode ser entendida
sim como discriminação velada, ou extremamente subjetiva. No fundo no fundo
continuamos a assinar a "Lei Áurea", assim como a Princesa Isabel
fez, sem nos preocuparmos com a instrumentalização desta liberdade, desta
igualdade jurídica que continua sempre atrelada ao papel e tão distante dos
nossos olhos. Estes sempre procurando manter invisível o que é tão
pateticamente visível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª
Edição. Coimbra: Almedina, 1999.
DIAS, Maria Berenice. Ações afirmativas: uma solução para a
desigualdade. Revista Del Rey, nº 04, dez/98.
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
__________. Uma Questão de Principio. Tradução de Luís Carlos Borges.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SILVA, Alexandre Vitorino. O desafio das ações afirmativas no direito
brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: .
Acesso em: 24 ago. 2004.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. V.III. Rio de Janeiro:
Forense. 1989.
ALMEIDA, Dayse Coelho
de. Ações afirmativas e política de cotas são expressões sinônimas?
Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=361.
Acesso em: 22 set. 2006.