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Trabalho digno. Um direito fundamental dos povos livres

 

 

            José Augusto Ferreira da Silva*

 

 

 

O presente texto foi extraído da palestra proferida pelo autor nominado por ocasião da realização da III Conferência Internacional de Direitos Humanos, promovida pelo Conselho Federal da OAB, realizada em Teresina, Piauí-Brasil, nos dias 16, 17 e 18 de Agosto de 2006, sob o lema: “Um mundo Livre: Desenvolvimento e Vida com Dignidade”, sendo de se ressaltar que o assunto discorrido “DIREITO AO TRABALHO: UM DIREITO FUNDAMENTAL” se trata de um tema de extraordinária importância e magnitude, tendo, a cada dia que passa maior actualidade. De questão praticamente ignorada, até há alguns anos atrás, passou a estar na ordem do dia.

 

Efectivamente, num mundo em profunda transformação, com níveis de desenvolvimento muito diferenciados, com desigualdades gritantes entre os ditos países ricos e desenvolvidos e os países pobres e subdesenvolvidos ou chamados do “terceiro mundo”; num mundo em que há cada vez mais, alguns, poucos, que concentram toda a riqueza, ao mesmo tempo em que a esmagadora maioria da população mundial vive em níveis de pobreza inimagináveis; onde, simultaneamente, se esbanjam recursos e se morre à fome; onde o desemprego grassa, como uma praga, impedindo que milhões de pessoas tenham um simples trabalho que lhes permita obter os meios mínimos indispensáveis à sobrevivência da sua família, é importante que analisemos a questão do direito ao trabalho, na perspectiva da sua natureza de direito fundamental.

 

O trabalho em geral é, segundo as correntes de pensamento dominantes da nossa sociedade, uma condição de realização do Homem e da sua dignidade. É, pois, uma condição de plena cidadania (2,3).

 

Mas nem sempre foi assim. Como todos sabemos, na Roma e Grécia antigas e mesmo noutras sociedades mais recentes, o trabalho era para os escravos. Os homens livres, isto é, os cidadãos, não trabalhavam.

 

Antes de avançarmos no tratamento do tema convém, porém, que façamos uma delimitação prévia. Na verdade, atendendo ao objectivo desta intervenção e ao tempo, obviamente, limitado de que dispomos, não abordaremos todas as formas de trabalho, mas somente o trabalho subordinado ou por conta de outrém, independentemente das formas específicas que revista. É que é sob esta perspectiva e, em especial, na perspectiva das relações do trabalho com o emprego e com a livre escolha de uma profissão, que emergem os maiores problemas cuja abordagem aqui procuraremos fazer.

 

Na generalidade das Constituições modernas o direito ao trabalho tem consagração no âmbito dos direitos fundamentais. Em regra, no âmbito dos direitos económicos e sociais (4).

 

Daqui resulta que se não trata de um direito qualquer, mas de um direito com dignidade constitucional e que os Estados se obrigam a assegurar, através de medidas que permitam tornar efectiva a sua realização.

 

Mas o trabalho assim consagrado não pode ser um trabalho qualquer, mas sim um “trabalho decente” para usar a expressão feliz da OIT, utilizada igualmente na proposta de texto normativo das” Bases Constitucionales para a América Latina Y el Caribe” (5).

 

Um problema prévio, de índole, sobretudo, filosófica, mas com repercussões a nível constitucional, que se suscita , prende-se com a liberdade de trabalhar, e é o de saber se sendo o trabalho inerente à natureza da própria pessoa humana é possível ser objecto de um contrato. E há mesmo quem entenda que não. E tal questão não é dispicienda. De facto, se se entendesse que o trabalho humano estava fora do comércio jurídico, ou seja, não pudesse ser contratualizado, tal poria, obviamente, em causa, de forma irremediável, toda a organização económica e social mundial. (6)

 

Porém, como diz Thierry Revet (7) o que é objecto do contrato de trabalho não é o próprio homem, mas sim a força humana de trabalho. O que é coisa bem diferente e permite ultrapassar a questão suscitada. (8,9)

 

Mas esta questão da liberdade de trabalhar suscita uma outra que é a de saber se existe um correspectivo dever de trabalhar.

 

Como é sabido, em regra, a todos os direitos constitucional ou legalmente estabelecidos corresponde o dever respectivo.

 

E no que concerne ao trabalho encontra-se generalizada a idéia que existe um dever legal de trabalhar, para além do dever social de o fazer.

 

Parece-nos evidente, porém, que se reflectirmos um pouco sobre a questão não será difícil concluir que tal dever não existe, nem pode existir, numa sociedade democrática. Na verdade, um cidadão não pode deixar de ter o direito a trabalhar ou a não trabalhar. Essa é uma questão essencial à sua liberdade. O que implica que tenha, em princípio, o direito a recusar um trabalho ou, mesmo, a deixar de trabalhar quando bem entender, sujeito apenas às limitações que decorram do contrato que o vincule, quanto a um eventual aviso prévio.

 

Os Estados não podem, pois, ter o direito a impor, por regra, um trabalho obrigatório, que não passaria, vestisse as roupagens que vestisse, de um “trabalho forçado”, (10) proibido pela generalidade das Constituições e das Declarações Universais de Direitos Humanos.

 

Em Portugal o texto constitucional de 1976 estabelecia esse dever prescrevendo no nº 2 do art. 51º, vale a pena citar, o seguinte: “O dever de trabalhar é inseparável do direito ao trabalho, excepto para aqueles que sofram diminuição de capacidade por razões de idade, doença ou invalidez”.

 

Ora, o legislador Constitucional de 1997, em nosso entender muito bem, emendou a mão, tendo eliminado esse “dever de trabalhar” do texto constitucional. (11)

 

Apesar disso, existem ainda muitas situações em que o Estado impõe, na prática, o dever de trabalhar, como acontece com a imposição aos trabalhadores desempregados de um denominado “emprego conveniente”, muitas vezes de forma totalmente arbitrária e sem ter em conta a sua categoria profissional, as aptidões e a formação, cortando-lhe o subsídio respectivo, mesmo em caso de recusa manifestamente legítima.

 

Analisadas estas questões prévias, passemos então a abordar a questão do conteúdo do direito fundamental ao trabalho. Pelo facto de ser o que conhecemos melhor, seguiremos de perto o ordenamento constitucional português, por consagrar, no essencial, soluções próximas das dos demais ordenamentos constitucionais europeus. Teremos presente, de igual modo, o texto do Tratado que estabelece uma “Constituição para a Europa” que, pese embora já não vá entrar em vigor (12), constitui, de algum modo, o documento síntese do pensamento dos governos dos Países que constituem a União Européia e, por isso, das suas classes dominantes. (13)

 

Como acima dissemos, o Direito ao Trabalho, encontra-se consagrado na generalidade das Constituições dos países democráticos, no âmbito dos Direitos Fundamentais de carácter económico e Social.

 

Daí resulta que, sendo estes considerados direitos de segunda geração, exista a tendência para os entender como direitos meramente programáticos, sem natureza vinculativa para os Estados respectivos.

 

Por isso, não podemos deixar de citar Gomes Canotilho quando escreve: “O problema actual dos ‘ direitos sociais’ (Soziale Grundrechte) ou direitos a prestações em sentido restrito (Leistungrecheten im engeren Sinn) está em ‘levarmos a sério’ o reconhecimento constitucional de direitos como o direito ao trabalho, o direito à saúde, o direito à educação, o direito à cultura, o direito ao ambiente. Independentemente das dificuldades (reais) que suscita um tipo de direitos subjectivos onde falta a capacidade jurídica poder (jurídico, competência) para obter a sua efectivação prática (= accionabilidade), não podemos considerar como simples ‘ aleluia jurídico’ (C. Schmitt) o facto de as constituições (como a portuguesa de 1976 e a espanhola de 1978) considerarem certas posições jurídicas de tal modo fundamentais que a sua garantia ou não, não pode ser deixada aos critérios (ou até arbítrio) de simples maiorias parlamentares.”.

 

Ora, na Constituição Portuguesa o direito ao trabalho encontra-se consagrado no art. 58º, sob a epígrafe de Direitos e deveres económicos e no Título III intitulado “Direitos e Deveres económicos, sociais e culturais).

 

No nº 1 do citado art. 58º estabelece-se: “Todos têm o direito ao trabalho”.

 

E no nº 2 do mesmo preceito, impõem-se ao Estado as seguintes incumbências, estabelecendo-se, de forma expressa:

 

“Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover:

 

a) A execução de políticas de pleno emprego;

(b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais;

c) A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos trabalhadores.

 

Isto é, a Constituição Portuguesa não se limita a reconhecer o direito ao trabalho como direito fundamental, impondo ao Estado um conjunto de injunções que tornem possível a sua realização, em 3 aspectos essenciais:

 

- a execução de uma política de pleno emprego;

- a igualdade de oportunidades na escolha de profissão;

- a formação profissional.

 

Como adiante veremos, quer o Estado Português, quer a generalidade dos Estados que se encontram obrigados por injunções de natureza semelhante, orientados por políticas de cariz neoliberal, têm falhado redondamente no cumprimento de tais injunções, em desrespeito flagrante das normas constitucionais a que se encontram adstritos.

 

Como também já referimos acima não se trata de o Estado garantir o direito a um trabalho qualquer, mas antes a um trabalho com direitos, ou um “trabalho decente”.

 

Por isso, quando Bill Clinton proferiu a frase muito celebrada pelos cultores do neoliberalismo: “Qualquer trabalho é melhor do que nenhum” estava longe do ideário das nossas Constituições democráticas e progressivas.

 

Infelizmente, cada vez mais as políticas dos nossos governos vêm apontando no sentido defendido por Bill Clinton.

 

Para que o direito ao trabalho tenha, pois, uma plena realização a nossa Constituição estabeleceu no nº 1 do art. 59º que: “Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas e ideológicas, têm direito”:

 

a) à retribuição do trabalho segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual;

b) A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional, com a vida familiar;

c) À prestação de trabalho em condições de higiene, segurança e saúde;

d) Ao repouso e aos lazeres, a um, limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas;

e) À assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego;

f) A assistência e justa reparação, quando vítimas de acidentes de trabalho ou de doença profissional”.

 

E no nº 2 do mesmo preceito estabeleceu que: “Incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente”. De seguida, discrimina as obrigações correspectivas para tornar viável a realização dos direitos consignados no nº 1 e que pela sua extensão nos dispensamos aqui de transcrever.

 

Também no nº 1 art. 47º a Constituição estabeleceu que “Todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvo as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade”.

 

E no art. 53º definiu um quadro normativo para a Segurança no emprego estabelecendo expressamente: “É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”.

 

Devemos chamar a atenção para o facto de no nº 1 do art. 18º da CRP se estabelecer que: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

 

Ou seja, as normas legais que viemos de citar, não se limitam, como acima já dissemos, a ser injunções formais, ou como disse C. Shmitt, citado por Canotilho, um mero “aleluia jurídico”.

 

Estas normas são de carácter imperativo obrigando quer o Estado, quer os particulares.

 

“A propósito da vinculação dos particulares, nas suas releções recíprocas, a estes preceitos constitucionais, ou seja, da sua “eficácia horizontal” escreveu José João Abrantes:” Assim, os direitos fundamentais devem aplicar-se (também) nas relações entre os particulares, designadamente contra os indivíduos que disponham de uma situação real de poder, como é o caso do empregador para com o trabalhador”.” No contrato de trabalho, a aplicação directa destes direitos é consequência natural da sua própria estrutura, surgindo, aliás, no desenvolvimento deste ramo de direito. O desequilíbrio económico, social e jurídico que nele existe impõe a vinculação do empregador aos direitos fundamentais, dado a empresa não ser um mundo à parte , onde os princípios fundamentais do ordenamento jurídico, centrados na dignidade da pessoa humana, pudessem ser impunemente afastados ...”.

Adiante veremos a importância desta questão a propósito da cidadania na empresa.

 

Ora, apesar de todas as injunções que constitucionalmente lhe foram impostas o Estado (os diversos governos do nosso país) têm vindo a ignorá-las ou, pior ainda, a torneá - las, dando a aparência de que se encontram a legislar em conformidade com a Constituição, na salvaguarda de tais direitos fundamentais, quando, na prática, estão sistematicamente a violá-las, por sujeição a orientações políticas de natureza neoliberal que vêm, cada vez mais, norteando a generalidade dos políticos europeus e, no caso concreto, os governantes portugueses.

 

À cabeça das justificações para tais políticas designadas vulgarmente de “flexíveis” aparece a questão do Emprego/ Desemprego. Em seu nome tudo parece permitido; tudo se mostra justificado. A citada frase de Clinton é, no fundo, a estrela polar que guia os nossos políticos e com a qual investem contra todos os que se opõem à sua política.

 

Mas será que o problema do emprego / desemprego não é real? Que não houve transformações nos modelos de produção que fizeram reduzir necessidades de mão – de – obra em alguns sectores de actividade?

 

É claro que a resposta a estas questões não pode deixar de ser afirmativa.

 

Só um insensato o negaria.

 

De facto, como diz Arnaldo Sussekind “O nosso mundo está vivendo, indubitavelmente, uma fase de transição resultante da nova revolução tecnológica, que se processa de forma acelerada, desde o invento dos chips. A informática, a telemática e a robotização têm profunda e ampla repercussão intra e extra empresa, configurando a chamada época pos- industrial”.

 

Por tudo isso, após um período em que a estabilidade do emprego era um dado mais ou menos seguro por toda a Europa, tendo a generalidade das pessoas um emprego garantido para toda a vida, passou-se a uma situação de profunda instabilidade. E isto, na Europa, sobretudo, a partir da crise económica e social que se seguiu ao chamado “choque petrolífero” dos anos 70.

 

Acontece que, um elevado nível de desemprego, com grande incidência, sobretudo, nos mais jovens, cria condições políticas e sociais para que se imponha a idéia da necessidade de “flexibilizar”.

 

Na verdade, os trabalhadores que têm emprego, mesmo nos sectores tradicionalmente mais sólidos vivem permanentemente na perspectiva de o poderem perder e acabam por aceitar condições de trabalho que noutras circunstâncias nunca aceitariam, com o único objectivo de salvaguardarem o seu posto de trabalho. As próprias associações representativas dos trabalhadores, em especial, os sindicatos são sujeitos à mesma espécie de “chantagem” subscrevendo instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e acordos económicos e sociais absolutamente impensáveis noutras circunstâncias, sempre com o argumento de que assim estarão a contribuir para a criação de maior número de postos de trabalho. Mesmo que, de seguida, como frequentemente acontece, venham a constatar que os sacrifícios impostos aos trabalhadores de nada valeram porque as empresas continuam a fechar, agora com menos encargos para os empresários já que, entretanto, os trabalhadores viram diminuídos os seus direitos.

 

Um dos argumentos também usado pelos nossos governantes é o de criar condições atractivas aos investidores estrangeiros. Trata-se de mais uma falácia uma vez que as empresas se deslocalizam sempre que o entendem necessário em face dos seus interesses económicos, financeiros e fiscais, como tem vindo a acontecer com, inusitada frequência, no nosso país. De facto, por melhores benesses que um país como Portugal possa oferecer existem sempre outros, designadamente, aqueles em que praticamente não existem quaisquer direitos que oferecem ainda mais.

 

Para além de, na base das decisões de deslocalização de grandes empresas multinacionais, estarem motivações de natureza estratégica, incompreensíveis para os cidadãos comuns, mas integradas nas suas políticas de poder a nível mundial.

 

Vem, agora, a propósito referir o que se passou em França com a luta dos jovens franceses contra o denominado “CPE” (Contrato de Primeiro Emprego). Com o falacioso argumento de combater o desemprego que grassa entre os jovens, sobretudo dos arredores suburbanos das grandes cidades e, em especial de Paris e que tinha levado a violentos motins em Novembro de 2005, o Governo de Dominique de Villepin tentou impor um novo contrato de trabalho (CPE) que, na prática, precarizava o emprego de todos os jovens e já não só daqueles que, desde sempre, foram marginalizados. Isso levou a uma revolta sem precedentes que obrigou os Sindicatos a aderir a tal luta. Que acabou com um recuo, também sem precedentes, do Governo Francês, o que é sinal inequívoco que os cidadãos podem evitar violações grosseiras dos princípios e valores constitucionais, por governos ainda que assentes em maiorias parlamentares.

 

Ressalte-se, por ser da maior importância, o que escreveram, na ocasião, Fréderic Lebaron e Gérard Mauger; “O contrato de Primeiro Emprego (CPE) não é um capricho do primeiro – ministro Dominique de Villepin e do seu governo. Tendo aparentemente, os jovens como alvo, inscreve-se, directamente na” Estratégia de Lisboa” da União Européia aprovada , em Março de 2000, pela Cimeira de Chefes de Estado e de Governo e recentemente reactivada...”.

 

Aliás, são políticas como essa que, no fundo se encontram subjacentes ao Tratado que instituiu uma “Constituição para a Europa”. De facto, naquele texto está consagrada uma visão neoliberal da sociedade e do emprego, dando-se pouca atenção aos direitos sociais e económicos dos cidadãos, o que levou os franceses e holandeses a rejeitarem a sua aprovação. E leva a generalidade dos cidadãos comunitários a uma crescente desconfiança nas políticas da Comissão Européia.

 

Mas voltando a Portugal, importa salientar que as políticas flexibilizadoras tiveram a sua expressão maior na aprovação do Código do Trabalho que entrou em vigor em Dezembro de 2003.

 

Na “Exposição de Motivos” o Governo de então escreveu” A orientação que presidiu à elaboração do Código do Trabalho pode ser sintetizada por meio dos seguintes vectores:

 

a) abertura à introdução de novas formas de trabalho, mais adequadas às necessidades dos trabalhadores e das empresas;

b) promoção da adaptabilidade e da flexibilidade da disciplina labora, nomeadamente, quanto à organização do tempo, espaço e funções laborais, de modo a aumentar a competividade da economia, das empresas e do consequente crescimento do emprego”.

 

E tal orientação política trouxe relevantes alterações normativas sempre no sentido da compressão dos direitos dos trabalhadores.

 

Obviamente que não entraremos nas soluções concretas estabelecidas no Código, por extravasarem, manifestamente, o objectivo desta intervenção, mas destacaremos alguns dos aspectos em que aquelas alterações foram mais gravosas, pela sua relevância no que concerne à concretização constitucional do direito ao trabalho:

 

- a alteração das regras da mobilidade geográfica e funcional, que levam, na prática, a um poder quase ilimitado da entidade patronal no que toca à mudança do local de trabalho e à atribuição de funções não compreendidas no objecto do contrato;

- a alteração das regras relativas à adaptabilidade do horário de trabalho que permite o alargamento dos horários diários e semanais de trabalho, para períodos absolutamente incomportáveis, pondo em causa, de forma irremediável, o direito ao repouso e ao lazer e a conciliação da vida profissional com a vida familiar;

- a possibilidade, embora limitada, de não haver reintegração na empresa, na sequência da declaração de ilicitude do despedimento, em contravenção flagrante do art. 53º da CRP;

- o alargamento intolerável da contratação a termo, que atenta também contra o princípio constitucional da segurança no emprego.

- Alterações das normas atinentes à contratação colectiva em grave violação do direito à livre negociação.

 

Apesar de terem sido restringidos, de forma intolerável os direitos dos trabalhadores, as referidas reformas não lograram o propalado objectivo essencial, que era o crescimento do emprego, uma vez que, desde então, o desemprego tem continuado a aumentar, situando-se, hoje, em níveis bem mais elevados do que então.

 

Diga-se, aliás, que apesar das políticas de raiz neoliberal seguidas na generalidade dos países europeus, o desemprego continua em níveis elevadíssimos, o que mostra que não são as políticas de contenção dos direitos dos trabalhadores que resolvem o problema do desemprego. E é bom de ver que os números reais do desemprego não são os que constam das estatísticas oficiais, sendo consabidamente muito superiores.

 

O que comprova a justeza do que escreveu Uriarte: “O fato é que o verdadeiro problema do emprego não é o direito do trabalho nem o sistema de relações de trabalho, cuja incidência no emprego é muito relativa. O verdadeiro problema é um sistema económico que destrói mais do que gera postos de trabalho. A substituição de mão-de-obra por tecnologia, a possibilidade técnica de produzir com menos mão – de – obra, mais a conveniência economicista de manter um desemprego funcional são os reais problemas”.

 

Aliás, a defesa deste desemprego funcional por parte dos teóricos do neoliberalismo, à cabeça dos quais se encontra Milton Freedman, é um dos maiores escândalos a que podemos assistir nos tempos modernos.

 

De facto, os nossos governantes e empresários, embora o não reconheçam de forma expressa, vêm sustentando a necessidade de manter um exército de reserva de desempregados, que possam gerir a seu bel prazer e agitar sempre que disso necessitam, de modo a que constitua um elemento “moderador” das reivindicações laborais. Em violação clara do estabelecido na generalidade das Constituições e das Declarações Universais dos Direitos Humanos.

 

Mas para além deste enorme exército mundial de desempregado, mais ou menos oficial, cujos números são avassaladores, existem muitos e muitos trabalhadores que se encontram falsamente ocupados, uma vez que são considerados trabalhadores autónomos, ou trabalhadores por conta própria, inscritos em termos fiscais e da Segurança Social. Independentemente de terem ou não trabalho; de terem ou não qualquer tipo de remuneração, estes trabalhadores encontram-se formalmente ocupados. Se não têm trabalho, não têm direito a qualquer protecção no desemprego. É uma situação escandalosa, muito comum em Portugal, sobretudo em sectores ligados à construção civil, às madeiras, ao calçado, etc, a que os governos assistem impávida e serenamente sem que tomem medidas efectivas para imporem a regularização da situação laboral destes trabalhadores. São trabalhadores que trabalham na dependência económica e jurídica de um determinado empregador que não aceita formalizar a relação, de modo a não assumir quaisquer obrigações, a poder dar trabalho quando bem entende, sem garantir quaisquer direitos.

 

O que se passa com o alargamento das situações de trabalho ao domicílio e tele trabalho não pode deixar de ser muitíssimo preocupante. De facto, pese embora a existência de alguma legislação recente que veio regulamentar estas actividades, na prática, o que acontece é que estes trabalhadores não têm qualquer garantia de estabilidade de emprego e são objecto de todo o tipo de violação de direitos.

 

Mas existe, ainda, um outro grupo de trabalhadores que têm trabalho regular por conta de outrém, mas que não têm quaisquer direitos. Vivem situações de verdadeira escravatura dos tempos modernos.

 

O que se vem passando com trabalhadores portugueses, por exemplo, na Alemanha, na Holanda e na Espanha é de uma gravidade extrema. Vão chegando freqüentes notícias de casos de trabalhadores que vivem em condições sub - humanas, alguns mesmo em situação de quase cativeiro; outros com salários muitíssimo inferiores ao dos nacionais desses países e sem quaisquer direitos no que concerne à saúde , á segurança social e aos acidentes de trabalho.

 

E se isto se passa na União Européia em relação a trabalhadores comunitários não será difícil imaginar o que se passa com cidadãos extra comunitários, completamente deixados à sua sorte pelos governos e pelas diversas instituições públicas, que fingem ignorar essa realidade.

 

E não se diga que se trata de situações pontuais que alguns exageram com o inconfessado propósito de dizer mal por dizer. As notícias que têm vindo regularmente a lume na imprensa e as denúncias de credíveis Associações Humanitárias e dos Direitos Humanos, não podem deixar de impressionar. E o que se sabe é, infelizmente, sempre bem menos do que aquilo que existe na realidade e permanece oculto pela própria natureza das situações.

 

No quadro que viemos de traçar, é evidente que o princípio constitucional consagrado no art. 47º da CRP respeitante à liberdade de escolha de profissão não tem passado de uma promessa vã. Numa sociedade que não garante os direitos fundamentais mínimos aos que conseguem ter um emprego, obviamente que se não preocupa em garantir tal liberdade de escolhe de profissão. E cada cidadão, acaba por aceitar o trabalho que consegue arranjar, porque, de facto, isso acaba por ser melhor do que não ter trabalho nenhum, uma vez que é fundamental conseguir obter os meios indispensáveis à subsistência própria e da sua família.

 

E isso tem implicações óbvias a nível da própria formação escolar, cultural e profissional e / ou da sua ausência, uma vez que a não escolha livre da profissão ou do curso escolar traz desmotivação que, muitas vezes, é inultrapassável, com consequências nefastas quer para o desempenho profissional, quer para a própria vida pessoal e familiar do trabalhador.

 

Também a consagrada igualdade no acesso à função pública, não passa de uma triste ilusão, minado como está o Estado pelo nepotismo e pelo partidarismo (“jobs for boys”) a que a nossa sociedade vai assistindo de forma complacente, apesar de isso significar a corrosão grave das estruturas do Estado de Direito Democrático.

 

Voltemos, agora, à questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, em especial no que concerne ao contrato de trabalho.

 

Como resulta do art. 18º nº 1 da CRP que acima citamos, os preceitos constitucionais atinentes aos direitos fundamentais são directamente aplicáveis e vinculam, para além das entidades públicas, também as entidades privadas.

 

Por isso, como sustenta José João Abrantes, “O carácter privado do contrato de trabalho não lhe retira a sujeição à ordem constitucional e, por isso, a lógica que lhe está subjacente terá sempre por limite a dignidade humana e os direitos fundamentais. Estes constituem barreiras inultrapassáveis ao poder de direcção do empregador e à correlativa subordinação jurídica do trabalhador, que não podem limitar arbitrariamente esses direitos constitucionalmente garantidos”.

 

“Direitos como o não ser discriminado, o direito à intimidade da vida privada, as liberdades ideológicas e de expressão são directamente aplicáveis às relações entre o trabalhador e a empresa”.

 

Isso impõe que o Estado não só tome medidas legislativas que respeitem os valores e princípios constitucionais, mas que também exerça uma eficaz fiscalização de modo a garantir que também as entidades públicas e privadas, na execução do contrato de trabalho, os cumpram.

 

De modo a que o direito ao trabalho não implique uma restrição inaceitável de direitos, liberdades e garantias fundamentais, com total submissão ao direito de “liberdade de empresa”, exigindo-se antes que exista uma verdadeira “cidadania na empresa”, sendo o trabalhador tratado e respeitado também como cidadão, na plenitude dos seus direitos.

 

Na verdade, o cidadão, pelo facto de ser trabalhador por conta de outrém, não pode deixar de manter os seus direitos civis e políticos como outro qualquer cidadão. As limitações não podem ultrapassar aquelas que derivam da necessidade de cumprimento do contrato.

 

Como escreve José João Abrantes: “... na empresa, a liberdade civil do trabalhador se encontra protegida contra limitações desnecessárias e que qualquer limitação imposta a essa liberdade deverá revestir uma natureza absolutamente excepcional, só podendo encontrar justificação na necessidade de salvaguardar um outro valor (a correcta execução do contrato) que, no caso concreto, se deva considerar superior. Tal liberdade deverá, pois, ser a mais ampla possível, só podendo ser restringida quando e na medida em que, o seu exercício entre em colisão com as exigências próprias da finalidade concreta da empresa e dos deveres contratuais”.

 

O que, infelizmente, muitas vezes não acontece, assistindo-se todos os dias às mais grosseiras violações dos direitos civis dos trabalhadores dentro das empresas.

 

Uma questão essencial no que respeita ao direito ao trabalho consubstancia-se no “direito à ocupação efectiva”. Muitas entidades patronais, carecidas de fundamento para sancionarem os seus trabalhadores e, em especial, para os despedirem, recorrem com frequência, a este tipo de sancionamento indirecto, impedindo o trabalhador de exercer a sua actividade, isolando-o dos demais trabalhadores, ou expondo-o publicamente de modo vexatório e humilhante, visando levar o trabalhador à rescisão unilateral do contrato de trabalho. Ora, o trabalhador não só tem o dever de trabalhar, o que, aliás, constitui o elemento essencial da sua prestação contratual, como também tem o direito a fazê-lo. Tal direito decorre directamente dos art.s 58º e 59º da CRP, como veio a ser entendido, de forma praticamente, uniforme pelos nossos mais altos Tribunais, a partir de determinada altura, na ausência de lei ordinária que o consagrasse expressamente.

 

Também no que concerne à igualdade salarial a Jurisprudência veio defendendo, a aplicação directa da norma do nº 1, al. a) do art. 59º da CRP, que supra citamos, que salvaguarda a proibição de discriminação salarial entre trabalhadores que realizem o mesmo trabalho. De facto, desde que o trabalho tenha a mesma natureza, qualidade e quantidade, isso implica o pagamento de retribuição igual. Ora, como não existia norma legal ordinária que o estabelecesse os nossos Tribunais vieram a fazer a aplicação directa dos preceitos constitucionais.

 

É um facto que não podemos deixar de ressaltar, dado que os nossos Tribunais praticamente ignoram a Constituição e raramente aplicam directamente preceitos constitucionais, na ausência de norma ordinária expressa.

 

É, de facto, uma das graves limitações dos nossos Tribunais para que vem sendo chamada a atenção sistemática sem, que, infelizmente, se sintam ventos de mudança. Como se a Constituição não fosse a lei das leis a que os Tribunais também se encontram vinculados.

 

E, sobretudo, em matérias tão sensíveis como estas a orientações políticas conjunturais, é essencial ter Tribunais atentos e actuantes de modo a garantir o respeito pela Constituição.

 

Para finalizar a nossa intervenção, importa ressaltar algumas conclusões:

 

A primeira, é a de que o direito ao trabalho constitui um direito fundamental inalienável que é condição de realização da pessoa humana e da sua plena dignidade;

 

A segunda, é que o direito ao trabalho, pela sua própria natureza de direito fundamental só tem sentido se for um direito com direitos que permitam uma vida digna para o trabalhador e sua família.

 

A terceira, é a de que o trabalhador, pelo facto de o ser, não perde os seus direitos como cidadão dentro da empresa, devendo impor-se uma cultura de “cidadania na empresa” como condição essencial à sua plena realização.

 

A quarta é que o trabalho terá de ser um fautor de desenvolvimento, de progresso e de realização humana, com o objectivo da sua libertação e não, pelo contrário, um elemento de opressão.

 

Estas não podem deixar de ser as linhas mestras a seguir por aqueles que têm os destinos dos povos nas suas mãos, com vista à realização de um direito que tenha no seu âmago a idéia de realização da pessoa humana e que possa ser um verdadeiro instrumento de Justiça Social, com vista a “UM MUNDO LIVRE: COM DESENVOLVIMENTO E COM VIDA COM DIGNIDADE” que constitui o lema desta III Conferência.

 

Iniciativas como estas da Ordem dos Advogados do Brasil, que mais uma vez saúdo, são fundamentais na luta pela concretização destes ideais.

 

NOTAS

 

(1) Texto da Conferência proferida na III Conferência Internacional de Direitos Humanos, promovida pelo Conselho Federal da OAB , que decorreu em Teresina, Piauí- Brasil, nos dias 16, 17 e 18 de Agosto de 2006, sob o lema: “Um mundo Livre: Desenvolvimento e Vida com Dignidade”

 

(2) Assim o não entendem algumas correntes de pensamento, de raíz anarquista . Ver, a título de exemplo “Manifesto Contra o Trabalho” do Grupo Krisis, Ed. Antígona (Abril 2003) onde se escreve a fls 13” Um Cadáver domina a sociedade – o cadáver do Trabalho. Todas as potências do globo estão coligadas em defesa desta dominação: o Papa e o Banco Mundial, Tony Blair e Jorg Haider , sindicatos e empresários, ecologistas alemães e socialistas franceses. Todos eles só têm uma palavra na boca : trabalho, trabalho, trabalho”.

 

(3) No mesmo sentido já Paul Lafargue tinha escrito, na Prisão , em 1883, no seu “Direito á Preguiça” (ed. Teorema breve, 2ª edição, 1991” Uma estranha loucura está a apossar-se das classes operárias onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta atrás de si misérias individuais e sociais que, há dois séculos, atormentam a triste humanidade. Esta loucura consiste no amor ao trabalho, levada ao depauperamento das forças vitais do indivíduo e da sua prole (...) Na sociedade capitalista, o trabalho está na origem de toda a degenerescência individual e de toda a deformação orgânica”.

 

(4) A título de ex. Cf.art. 58º da Constituição da República Portuguesa (CRP); artº 6º da Constituição da República Federativa do Brasil.

 

(5) art. 88º “La Union Latinoamericana adopta como modelo de organización del mundo del trabajo el paradigma del trabajo decente”.

 

(6) G. Ripper citado por Thierry Revet, in La Liberté du Travail (Libertés et droits fondamentaux), Dalloz, 2005, escreveu: » le travail c’est l’homme même, dans son corps e dans son esprit, et il n’y a pas là l’object possible d’un contrat »

 

(7) obra e local citado 718.

 

(8) O que se passa com o que João Leal Amado, in “Temas Laborais” Coimbra Editora, pág. 35 denomina de” Contrato de Trabalho Prostitucional”, já admitido pela legislação alemã, deve ser motivo de reflexão, sob o ponto de vista que vimos abordando a questão, uma vez que se não vê que nas relações entre a prostituta e o bordel ou prostíbulo, se possa dizer que aquela está a vender somente a sua força de trabalho.

 

(9) Também o que se passa com trabalhadores a quem é exigida disponibilidade total (por exemplo, os denominados “gerentes de conta” de algumas instituições bancárias portuguesas, cujo numero de telemóvel é divulgado aos clientes e que podem, na prática, ser contactados por estes a qualquer hora do dia e da noite) coloca a questão de saber se, no caso específico, o que é objecto do contrato de trabalho é a” força humana de trabalho” ou antes a própria pessoa, ou seja, o seu corpo e o seu espírito.

 

(10) Cf. Thierry Revet, obra e local citados, pg. 722

 

(11) Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, em anotação ao art. 58º da CRP. Veja-se, a propósito o que escrevem Jorge Miranda e Rui Medeiros: “Tornou-se assim claro que o dever social e genérico de trabalhar não legitima, ao contrário do que sucede em face de outros deveres fundamentais, (...) a adopção de medidas específicas compressoras da liberdade individual e, mais concretamente da liberdade de escolha (...) não sendo possível ao Estado, em nome de um dever de trabalhar, impor aos particulares um trabalho obrigatório ou a realização de um certo e determinado género de trabalho ou sancionar penalmente a omissão de trabalhar”

 

(12) O Tratado que institui a “Constituição para a Europa” deveria entrar em vigor em 1 de Novembro de 2006. Porém, os cidadãos Franceses e Holandeses disseram “Não” nos respectivos referendos realizados para a sua ratificação, o que inviabilizou tal entrada em vigor. Assim, o Tratado parece estar irremediavelmente posto em causa, pese embora os esforços que têm vindo a ser feitos para, com algumas alterações de pormenor, o reabilitar.

 

(13) A este propósito ver o nosso artigo, in Temas Laborais Luso – Brasileiros, edição JUTRA – LTR, 2006, pág. 154/161.

 

 

*Advogado em Coimbra ( Portugal), ex- Presidente do Conselho Distrital ( Seccional ) de Coimbra da Ordem dos Advogados Portugueses, Presidente da Direcção - Geral da Associação Luso Brasileira de Juristas do Trabalho ( JUTRA), www.jutra.org

 

 

SILVA, José Augusto Ferreira da. Trabalho digno. Um direito fundamental dos povos livres. Jus Vigilantibus, Vitória, 10 set. 2006. Disponível em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/22451 >. Acesso em: 14 set. 2006.