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O Ministério Público, "ombudsman", defensor do povo ou função estatal equivalente, como instituição vocacionada para a defesa dos direitos humanos: uma tendência atual do constitucionalismo





Marco Aurélio Lustosa Caminha*





1. Introdução

          O crescimento contínuo da população mundial, a disseminação do regime capitalista no mundo inteiro, os avanços tecnológicos, o "neoliberalismo" e sobretudo o fenômeno da globalização, são fatores que influenciam diretamente para o aumento da competitividade entre os homens, para a diminuição da solidariedade entre eles e para a conseqüente multiplicação dos litígios e surgimento de relações jurídicas cada vez mais complexas. A nova versão do capitalismo - o capitalismo globalizado - torna possível que uma só pessoa, empresa ou conglomerado de empresas, se capitalizem em proporções tais que podem assumir dimensão mundial e adquirir poderio econômico que suplanta os de nações inteiras. Com isso surgiu uma nova forma de colonialismo, sem precedente na história, em que se tornou possível que a economia - e, por conseqüência, todos as outras áreas de atuação - de um país seja irremediavelmente arruinada através de simples pregões de bolsas de valores, realizados mediante comunicação por via de computadores, sem necessitar sequer da presença física dos "colonizadores".

          Todos esses fatores, associados a outros pré-existentes, causaram uma assustadora multiplicação das hipóteses de violações de direitos humanos, sobretudo pelo próprio Estado que, no afã de adaptar-se à "nova ordem", cada vez mais procura desmontar sua estrutura de entidade fornecedora das prestações indispensáveis aos seus cidadãos - característica adquirida com o advento das Constituições Sociais - e busca assumir uma posição de mero coordenador das atividades privadas, garantindo tão-somente "os mínimos" que a doutrina neoliberalista considera essenciais.

          Nesse contexto, sobreleva a importância que assume a existência, nas Constituições dos Estados, de uma função estatal que tenha por objetivo a defesa do respeito pela dignidade da pessoa humana, através de mecanismos que lhe permitam cobrar do Estado e dos particulares o respeito à ordem jurídica, aos fins do Estado de direito estabelecidos na Constituição, enfim, cobrar de quem quer que seja (inclusive do Poder Público) o respeito aos direitos difusos e coletivos da população, o cumprimento dos direitos sociais pelo Estado e o respeito aos direitos individuais indisponíveis.

          Trata-se da necessidade premente de que, nas Constituições atuais seja criada - ou posta em ação, naquelas tantas em que já existe - uma função como a do "ombudsman", existente desde 1.809, na Suécia, responsável pela representação dos direitos e garantias fundamentais da cidadania e pela preservação da probidade administrativa e da correta aplicação das leis.

          É da natureza mesma do Poder Judiciário a sua posição estática, para que seja assegurada a sua imparcialidade. Paradoxalmente, quando se analisa a questão por outra ótica, não se concebe, hoje em dia, que um Poder estatal, com missão tão relevante, de realizar a Justiça, não seja apto para iniciar, ele mesmo, as medidas e ações judiciais, para fazer valer os direitos sociais e os direitos e interesses difusos e coletivos da população. Sem essa possibilidade, o Poder Judiciário relega o seu papel e deixa de ser um verdadeiro Poder para ser uma mera função estatal, perdendo espaço para os outros Poderes (Executivo e Legislativo) e abrindo ensejo para o enfraquecimento do equilíbrio entre essas forças que, no Regime Democrático, constitui exatamente a sua "pedra de toque".

          A existência de uma função estatal com essa atribuição(1) torna possível que cheguem ao Poder Judiciário - e que este chegue até elas, fator necessário para que se consolide como Poder, não mera função - as demandas mais importantes: as das massas desfavorecidas, as que visam a tutelar direitos difusos e coletivos da população e aquelas em que se discutem direitos de incapazes, contra quaisquer que sejam os violadores, sobretudo quando este é o próprio Poder Público - pois nessas causas é que se exteriorizam as mais variadas formas de violações de direitos humanos.

          Somente abrindo-se um canal de acesso para que essas demandas mais importantes cheguem ao Poder Judiciário é que se poderão consolidar os objetivos últimos de um Estado de Direito. E não se concebe, atualmente, outro modo de criar tal via de acesso, senão mediante a instituição de uma função - que emane da soberania estatal - com prerrogativas próprias e com o dever de cobrar dos particulares e dos Poderes Públicos, inclusive judicialmente, o respeito àqueles direitos e interesses antes referidos, sem prejuízo de atribuir-se esse mister, concorrentemente, a outras entidades, como as associações e os colégios de advogados.

          Tal constatação induz à conclusão de que o constitucionalismo atual tende para a inclusão, entre as funções essenciais do Estado de direito, de uma instituição encarregada da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, a qual tenha poderes e prerrogativas que lhe permitam bem desempenhar esse mister, sob pena de desconfiguração de um verdadeiro Estado de direito.


2. Direitos humanos

          2.1. Noção

          Para fazer referência aos direitos relativos à dignidade da pessoa humana, têm sido usadas indiferentemente as expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais. As expressões direitos humanos e direitos do homem são mais freqüentes entre autores anglo-americanos e a expressão direitos fundamentais é mais empregada entre os publicistas alemães. Porém, é certo que a expressão "direitos fundamentais" reflete mais precisamente os direitos humanos como direitos positivados, tanto assim que a doutrina contemporânea vem dando preferência ao seu uso, quando deseja fazer alusão àqueles direitos positivados numa Constituição de determinado Estado.

          Segundo Konrad Hesse, (2) direitos fundamentais, numa acepção ampla, são aqueles destinados a criar e manter os pressupostos de uma vida na liberdade e na dignidade humana. Para o mesmo autor, num sentido estrito, direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais.

          Finalmente, Perez Luño(3), com muita propriedade, define os direitos humanos como "um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional".

          2.2. Histórico

          Alexandre de Moraes(4) evidencia que a noção de direitos humanos é bem remota, podendo sua origem ser apontada no antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a. C., onde já eram previstos alguns mecanismos para a proteção individual em relação ao Estado. Talvez tenha sido o Código de Hammurabi (1.690 a.C.) a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes. Outros antecedentes decorreram da propagação das idéias de Buda (500 a. C.); estudos surgidos na Grécia, como a "Democracia Direta de Péricles", e de crença na existência de um direito natural anterior e superior às leis escritas, no pensamento dos sofistas e estóicos (por exemplo, na obra Antígona - 441 a.C. - em que Sófocles defende a existência de normas não escritas e imutáveis, superiores aos direitos escritos do homem).

          Os registros históricos, todavia, apontam que o primeiro povo a criar um mecanismo complexo de instrumentos de defesa dos direitos individuais foram os romanos, sendo a "Lei das doze tábuas" considerada a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão.

          Depois disso, a religiosidade decorrente da difusão do Cristianismo, com a mensagem de igualdade de todos os homens, independentemente de origem, raça, sexo ou credo, também influenciou diretamente na consagração dos direitos fundamentais, enquanto necessários à dignidade da pessoa humana.

          Até mesmo na Idade Média, com a sua organização feudal, em que havia rígida separação de classes, em que vassalos eram subordinados do suserano, diversos documentos jurídicos foram elaborados, reconhecendo a existência de direitos humanos, sempre com o objetivo de limitar o poder estatal.

          Entretanto, em termos de antecedentes históricos, as declarações de direitos humanos fundamentais mais importantes são originárias da Inglaterra. Ali podem ser citados a "Magna Charta Libertatum", outorgada por João Sem-Terra em 15 de junho de 1215, a "Petition of Right", de 1.628, o "Habeas Corpus Act", de 1.679, o "Bill of Rights", de 1.689 e o "Act of Seattlement", de 12 de junho de 1.701.

          Até então, a concepção dos direitos do homem era muito diversa da atual, que é ligada à origem formal do Constitucionalismo, nas Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, em 1787, após a independência das 13 Colônias; e da França, em 1791, a partir da Revolução Francesa, as quais apresentavam dois traços marcantes: organização do Estado e limitação do poder estatal, por meio da previsão de direitos e garantias fundamentais.

          Realmente, o forte desenvolvimento das declarações de direitos humanos fundamentais deu-se somente partir destes últimos documentos, no terceiro quarto do século XVIII até meados do século XX. Assim, na seqüência da evolução dos direitos humanos, encontra-se a participação da Revolução dos Estados Unidos da América, onde podem ser citados vários documentos históricos: Declaração de Direitos de Virgínia, de 16/6/1776; Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4/7/1776; e Constituição dos Estados Unidos da América, de 17/9/1787.

          O caráter universal dos direitos humanos se manifestou pela primeira vez em decorrência do racionalismo francês da Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos Direitos do Homem, de 1789. Paulo Bonavides(5) explica que "a percepção teórica identificou aquele traço na Declaração francesa durante a célebre polêmica de Boutmy com Jellinek ao começo deste século. Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade." E prossegue, lembrando a seguinte justificativa do mesmo Émile Boutmy: "O teor de universalidade da Declaração recebeu, aliás, essa justificativa lapidar de Boutmy: Foi para ensinar o mundo que os franceses escreveram; foi para o proveito e comodidade de seus concidadãos que os americanos redigiram suas Declarações."

          De fato, a consagração normativa dos direitos humanos fundamentais culminou na França, quando, em 26/8/1789, a Assembléia Nacional promulgou a "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", com 17 artigos. Dentre as inúmeras e importantíssimas previsões, podem ser destacados os seguintes direitos humanos fundamentais: princípio da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento.

          Novas formas de controle do poder estatal foram inseridas na Constituição francesa de 3/9/1791, porém, uma melhor regulamentação veio a constar da Constituição francesa de 24/6/1793, o que se pode vislumbrar até pelo teor do seu preâmbulo, segundo o qual: "O povo francês, convencido de que o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem são as causas das desgraças do mundo, resolveu expor, numa declaração solene, esses direitos sagrados e inalienáveis, a fim de que todos os cidadãos, podendo comparar sem cessar os atos do governo com a finalidade de toda a instituição social, nunca se deixem oprimir ou aviltar pela tirania; a fim de que o povo tenha sempre perante os olhos as bases de sua liberdade e da sua felicidade, o magistrado a regra dos seus deveres, o legislador o objeto da sua missão. Por conseqüência, proclama, na presença do Ser Supremo, a seguinte declaração dos direitos do homem e do cidadão."

          A lição francesa se propagou e, com isso, a maior efetivação dos direitos humanos fundamentais continuou durante o constitucionalismo liberal do século XIX, tendo como exemplos a Constituição espanhola de 19/3/1812 (Constituição de Cádis), a Constituição portuguesa de 23/9/1922, a Constituição belga de 7/2/1831 e a Declaração francesa de 1848.

          Estas primeiras Constituições tinham o ideal liberal burguês que orientou a Revolução Francesa, prevalecendo o caráter individual dos direitos humanos assegurados na Constituição e a natureza subjetiva desses direitos, cabendo ao Estado tão-só o papel de garantí-los.

          Mas foi a França, ainda, com a Declaração de Direitos constante desta última Carta (a de 1848), quem esboçou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais, prevendo no seu artigo 13, além dos tradicionais direitos humanos garantidos pela Constituição, também a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados, às crianças abandonadas, aos enfermos e aos velhos sem recursos, cujas famílias não pudessem socorrer. Ao garantir esses outros direitos, a França tinha lançado a primeira das Constituições Sociais.

          Iniciado o século XX, os diplomas constitucionais passaram a ter como traços marcantes as preocupações sociais, como se pode perceber nos principais textos constitucionais dessa fase: Constituição mexicana de 31/1/1917, Constituição Alemã (de Weimar) de 11/8/1919, Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 17/1/1918, seguida pela primeira constituição Soviética (Lei Fundamental) de 10/7/1918 e Carta do Trabalho, editada pelo Estado Fascista italiano em 21/4/1927.

          Finalmente, na atualidade, em que se desenha uma nova espécie de Estado, do mundo globalizado, cujas características definitivas ainda estão longe de serem totalmente delineadas, a única certeza que se vislumbra é a de que reaparecem novas e graves modalidades de desrespeitos aos direitos humanos e exulta a necessidade de reconhecimento em nível constitucional dos direitos dessa natureza e, sobretudo, de criação de instrumentos capazes de torná-los efetivos.


3. Os direitos humanos no constitucionalismo

          3.1. Gerações de direitos humanos

          Como bem assinala Paulo Bonavides, (6) "o lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês, exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais, profetizando até mesmo a seqüência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade."

          De fato, esses três ideais que inspiraram a vitoriosa Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), tornaram-se objetivos comuns de todos os povos, que passaram, daí em diante, a buscar meios de inseri-los nos respectivos ordenamentos jurídicos positivos, ou mesmo inserir outros direitos de conteúdos materiais decorrentes tais postulados.

          Os direitos fundamentais, tal como preconizados pelos franceses, ao longo da história posterior à Revolução, foram sendo positivados nas Constituições dos diversos países, obedecendo a um gradativo processo cumulativo e qualitativo. Exatamente em razão dessa evolução gradativa na positivação dos direitos humanos a nível universal, passaram os constitucionalistas a classificá-los, para efeitos didáticos, segundo o momento histórico em que foram institucionalizados nas Constituições de diversos países, em gerações. Assim é que os direitos são classificados em direitos fundamentais de primeira geração, de segunda geração e de terceira geração.

          Os direitos fundamentais de primeira geração, também denominados direitos civis, traduzem a necessidade de garantir a liberdade do cidadão em relação ao Estado, ou seja, visam a limitar o Poder do Estado. Tiveram origem nas Declarações de Virgínia e Francesa e hoje consistem em direitos consubstanciados nas Constituições como direitos de defesa individuais, tais como o direito de liberdade pessoal de pensamento, de religião, de reunião e de liberdade econômica. O destinatário desses direitos é o indivíduo, com vistas à assegurar-lhe a liberdade.

          Os direitos fundamentais de segunda geração ou direitos econômicos e sociais correspondem ao direito às prestações devidas pelo Estado. Surgiram a partir da concepção de que a atividade estatal é realizada no interesse dos cidadãos e disso decorre o dever deste ente de prestar aos seus súditos determinadas prestações indispensáveis. Sua institucionalização foi iniciada com as Constituições mexicana, de 1917, e alemã, de Weimar, de 1919. Nas Constituições dos diversos países, aparecem como direitos de proteção ao trabalhador, direitos previdenciários, direito à saúde, direito de associação etc.. O titular desses direitos é a sociedade, não o indivíduo. Dirigem-se à busca da igualdade, ou seja, são direitos da sociedade para assegurar no seu seio a igualdade.

          Por fim, os direitos fundamentais de terceira geração são os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito ao meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso (ou, conforme Mbaya(7), direito ao desenvolvimento, tanto dos Estados quanto dos indivíduos, traduzindo-se, quanto a estes, numa pretensão ao trabalho, à saúde e à alimentação adequada), à paz, à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos.

          3.2. Tendência atual: novos direitos de terceira geração e direitos de quarta geração

          É cada vez mais crescente a transformação por que passam os direitos fundamentais. Com o advento do constitucionalismo, universalizaram-se os direitos e garantias contra o Estado; e na primeira metade do século universalizaram-se os direitos às prestações devidas pelo Estado. Porém, estes últimos direitos não lograram concretização, permanecendo maior parte do tempo no campo da abstração, sempre sob a justificativa de que as normas constitucionais que os asseguram são de caráter meramente programático. Porém, deste fim de século em diante, a tendência universal é a de que normas assim não sejam mais tidas como programáticas, assegurando efetivos direitos subjetivos dos cidadãos.

          Karal Wasak(8) e outros teóricos costumam citar vários direitos de fraternidade (ou de solidariedade), ou seja, direitos da terceira geração: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação. Trata-se, no entanto, apenas de um indicativo daqueles direitos que se delinearam em contornos mais nítidos contemporaneamente. O que se quer dizer com isso é que é possível que diferentes autores identifiquem noutros direitos o seu caráter de direito de terceira geração, bem assim que haja outros direitos de terceira geração em fase de gestação, podendo o círculo alargar-se à medida que o processo universalista se for desenvolvendo.

          Para Bonavides(9), a globalização difundida pelo neoliberalismo é somente a econômica, que pretende nitidamente destruir o Estado nacional, afrouxar e debilitar os laços de soberania e doutrinar uma falsa despolitização da sociedade, tudo com o único objetivo de beneficiar hegemonias supranacionais que já estão esboçadas no presente. Porém, na visão desse experiente filósofo político, há uma outra globalização que se dá bastante silenciosa e que as hegemonias não conseguem conter: é a globalização dos direitos fundamentais, a única que interessa verdadeiramente aos povos da periferia e que consiste no único entrave para que não se concretize a servidão do porvir.

          Assim, segundo o mesmo autor, em decorrência do fenômeno da globalização que ocorre também em termos políticos, estão sendo introduzidos na esfera da normatividade jurídica direitos fundamentais de quarta geração, segundo ele, correspondentes à derradeira fase de institucionalização do Estado social. Para o referido autor, são direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo e desses direitos "depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência."

          Para o referido teórico, os três direitos "de quarta geração" (democracia, informação e pluralismo) são interdependentes. A democracia positivada como direito humano de quarta geração é uma democracia direta, que se tornará possível somente se a informação e o pluralismo também vingarem paralelamente, como elementos imprescindíveis àquela, enquanto direito do gênero humano, projetado e concretizado no último grau de sua evolução conceitual. Em suma, uma vez que se concretizem as aberturas pluralistas do sistema globalizado em todos os setores da atividade humana e desde que os avanços tecnológicos permitam que todos tenham acesso à informação correta e livre da mídia manipuladora, estar-se-á garantido a democracia como direito humano.


4. A violação sistemática de direitos humanos como entrave à consolidação de um Estado de direito

          4.1. Estado de direito

          Segundo Kelsen(10), um Estado não submetido ao Direito é impensável, pois o Estado apenas é existente nos atos do Estado, que são atos postos por indivíduos e são atribuídos ao Estado como pessoa jurídica. E tal atribuição só é possível com base em normas jurídicas que regulam especificamente estes atos. Não é o Estado que se subordina ao Direito por ele criado, mas é o Direito que, regulando a conduta dos indivíduos e, especialmente a sua conduta dirigida à criação do Direito, submete a si esses indivíduos. No entanto, o próprio Kelsen(11) adverte que, "se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo", por isso, "ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica."

          Abelardo Torré(12) segue a mesma linha de pensamento, afirmando que no sentido lógico-formal, Estado de Direito é o Estado funcionalizado através do direito (ou regime jurídico). Porém numa acepção histórico-político ou político-valorativo, empregada por antomasia, pode-s afirmar que "Estado de Direito é aquele Estado em que têm vigência os direitos fundamentais do homem", significando que toda pessoa tem um vasto âmbito de liberdade, que não pode ser validamente desprezado pelos governantes.

          Um Estado de direito também tem sido classicamente identificado pelas distintas instituições ou meios técnicos-jurídicos de que tradicionalmente se compõe. O primeiro deles é a Constituição. Por mais elevada que seja a cultura política e a educação de um povo, sempre ocorrerão violações dos direitos fundamentais dos homens, não sendo possível confiar-se somente na virtude dos governantes e no seu sentido de dever para respeitá-los. Daí por que é necessária uma determinada estrutura institucional que o assegure e que veio a se materializar na Constituição.

          Outra característica é a separação entre o poder constituinte e os poderes constituídos. Esta separação é uma dupla manifestação de soberania do povo e tende a uma mais eficaz defesa dos direitos fundamentais do homem, mediante a maior estabilidade que assim adquirem as normas constitucionais. Com efeito, somente o poder constituinte, ou seja, o povo no exercício de tal poder, pode ditar e reformar a Constituição; por sua vez, as atribuições dos poderes constituídos estão limitadas pela mesma Constituição, cuja reforma fica fora de seu alcance.

          Ressalve-se que a exigência da separação entre os poderes constituinte e constituídos como característica de um Estado de Direito, e destes entre si, comporta exceções, como é o exemplo da Inglaterra, em que o Parlamento exerce ao mesmo tempo o poder legislativo ordinário e o poder constituinte, entretanto trata-se, quiçá, do país onde mais se respeitam os direitos fundamentais do homem e no qual as normas que na prática têm hierarquia constitucional alcançam maior estabilidade do que em muitos países formalmente organizados como Estados de direito.

          A terceira instituição que configura um Estado de direito é separação dos poderes constituídos, teorizada por Montesquieu, especialmente a separação do Poder Judiciário em qualquer tipo de regime de governo, já que a separação entre o Legislativo e o Executivo por natureza é e deve ser maior no regime presidencial e menor no parlamentarista. Somente com um Poder Judiciário independente, que tenha poder jurisdicional até mesmo para declarar a inconstitucionalidade das normas ditadas pelos outros poderes, poder-se-á alçar-se um Estado a Estado de direito.

          Ao lado da necessidade de ter uma Constituição, de manter separado o poder constituinte dos poderes constituídos e destes entre si, também é imprescindível para a confirmação de um Estado de direito que sejam asseguradas outras instituições complementares que permitam às pessoas realizarem praticamente os seus direitos fundamentais ou exigirem a sua imediata reparação no caso de violação. São exemplos de tais instrumentos ou ações o habeas corpus e a acción de amparo, na Argentina e, com outras denominações, em praticamente todos os Estados de direito. No Brasil, por exemplo, essas garantias são exercidas por meio de habeas corpus, do mandado de segurança, da ação popular, do habeas data, do mandado de injunção e da ação civil pública.

          Esses são os elementos que, segundo a clássica Teoria do Estado, caracterizam um Estado de Direito. Os tempos atuais, porém, revelam a necessidade de mais um elemento para que se consolide um Estado de direito, que consiste na função estatal acima referida, que tenha a incumbência de fiscalizar e exigir o cumprimento da Constituição e das leis, pelo Estado e pelos particulares, nos casos que versem sobre direitos difusos, sociais e coletivos, bem assim sobre direitos individuais indisponíveis.

          4.2. Estado de direito segundo a ótica da Democracia

          Na atualidade, não se concebe como Estado de direto aquele país no qual se permite a violação dos Direitos humanos de seus súditos. Classicamente, Democracia tem sido definida como o governo do povo, entretanto, atualmente, deve ser entendida genericamente como uma contraposição a quaisquer formas arbitrárias de exercício do poder. Além disso, Democracia é definida como um regime onde as decisões políticas são tomadas através de procedimentos que levam em conta a vontade da maioria, mas também um regime onde os cidadãos têm seus direitos e liberdades assegurados através de garantias jurídicas efetivas.

          Um Estado não se transforma em Estado de Direito (ou democrático) simplesmente com base no resultado das urnas. Somente se o resultado eleitoral realmente refletir uma ordem jurídica constitucional justa é que se terá obtido como resultado das eleições um Estado de direito.

          Existem duas correntes doutrinárias que definem Estado de direito. Para uma primeira corrente, Estado de direito é, pura e simplesmente, um Estado jurisdicizado, ou seja, um Estado em que tudo que se realiza ou se executa é com base no Direito, em leis que o próprio Estado instituiu. Nesse sentido, o Estado de direito poderia conviver com qualquer regime político (Democracia, Monarquia, Aristocracia etc.), pois, para esta corrente, o Estado de Direito é simplesmente um Estado em que não se permite o exercício arbitrário do poder.

          A grande virtude de um Estado assim é o fato de tornar-se possível aos indivíduos pautarem suas condutas em conformidade com as leis, sejam elas justas ou injustas, para evitarem a sanção do Estado, ou seja, traz certa segurança jurídica. Porém, tal concepção de Estado de direito, quando vista pela ótica da Democracia, deixa muito a desejar. Na democracia se exige muito mais, porque ela é pautada numa sólida idéia de direito, sem a qual se torna um sistema extremamente inoperante. Em síntese, a noção anteriormente citada não se presta, por si só, para conceituar Estado de direito, quando se cuida de um regime democrático. Na Democracia, abre-se ensejo para discussão da justiça ou injustiça de determinadas regras jurídicas e, especialmente, para discussão do modo como o Estado deve-se organizar para assegurar cada direito.

          A segunda corrente não associa a idéia de Estado de direito à simples jurisdicização do estado, mas sim a um conteúdo de justiça, ou seja, um Estado de direito é aquele que adota um modo de governo onde a ação dos governantes está estritamente submetida à disposição legal, que lhes é externa e superior. Não se trata de qualquer lei, mas sim da lei justa, entendida esta como aquela que além dos requisitos formais específicos (generalidade, abstração e universalidade), deve guardar um outro conteúdo específico: igualdade e liberdade.

          Refoge aos objetivos almejados nesta monografia a discussão sobre o significado de Justiça e, por conseguinte, de "direito justo". Não obstante, uma maneira fácil de averiguar se um determinado Estado corresponde a um verdadeiro Estado de direito, segundo a ótica da Democracia, é confrontando as características desse Estado com as do conjunto de instrumentos internacionais existentes para a defesa da pessoa humana, o "International Bill Of Rights". Tão mais próximo estará de um Estado de direito aquele Estado cuja Carta constitucional mais se aproxime do padrão constante do "International Bill of Rights".

          4.3. A ineficácia da Constituição como óbice à consolidação de um Estado de direito

          Analisando pormenorizadamente o caso específico do Brasil, Oscar Vilhena Vieira(13), demonstra com bastante propriedade que há duas formas de rompimento da normalidade comum a um Estado de Direito: a primeira é a luta pelo poder, com a vitória de um grupo que impõe a nova ordem, com seu próprio fundamento de validade; e a segunda é quando a ordem jurídica constitucional é, ou se torna, ineficaz.

          Carl Schimitt(14) leciona que as rupturas da ordem do Estado de direito, ficam fora de quaisquer limitações jurídicas ou éticas, quando são decorrentes da vitória de um grupo na luta pelo poder. Tais rupturas poderiam ser chamadas de grandes exceções, pois tornam-se "legalizadas" pelos movimentos que assumiram o poder, criando seu próprio fundamento de validade. Esta concepção está vinculada à idéia de Carl Schimitt, de que soberano é aquele capaz de, no momento de exceção, impor uma nova "normalidade". Não é pertinente nenhum tipo de discussão ética sobre o fundamento ou legitimidade do poder, num Estado que vive sob tais circunstâncias. Aliás, para os contratualistas, essa situação nem se enquadraria no universo da política, consistindo mesmo em um não Estado.

          A outra hipótese de ruptura da normalidade - que interessa ao presente estudo - ocorre quando se verifica a ineficácia da ordem jurídica constitucional na sua função de aplicação da lei, de monopolização e contenção da violência e do arbítrio, em todos os níveis do aparelho estatal, mesmo estando preservada a estabilidade institucional. Este tipo de ruptura faz surgir um regime de exceção diferente daquele que antes foi citado, mas que guarda muitas das suas características. Trata-se de uma excepcionalidade cotidiana, inerente às relações sociais e institucionais, onde a guerra não atinge um grupo político adversário e organizado que busca chegar ao poder, mas a toda uma comunidade difusa de indivíduos que, em diversos momentos de sua trajetória existencial, se encontram totalmente destituídos de personalidade jurídica, ou melhor, de capacidade de ter direitos.

          Em uma situação de conflito dentro de um verdadeiro Estado de direito, existem limites legais aos quais o Estado se submete ao se relacionar ou mesmo ao se defrontar com os cidadãos. Diferentemente, quando num Estado se verifica um espaço de ilegalidade em que prevalece única e exclusivamente a força, temos uma evidente ruptura sob a segunda das formas antes referidas, de que ora se cogita.

          Sabe-se que o Estado é o monopolizador da violência e o garantidor de direitos, no entanto, tomando-se como exemplo o caso do Brasil, pode-se visualizar neste Estado, tranqüilamente, um verdadeiro regime de exceção. De fato, a análise exemplificativa de várias situações que constituem o cotidiano das relações na sociedade brasileira constata-se a prevalência única e exclusivamente da força: por exemplo, dados estatísticos do ano de 1992, citados por Vilhena(15) , revelam que só em confrontos com a polícia de São Paulo, morreram cerca de 4,3 civis por dia naquele ano, o que significa que 1/3 dos homicídios ocorridos em 1992, em São Paulo, foi de autoria da Polícia; nos 28 anos que antecederam o ano de 1992, houve 1.681 casos de morte de trabalhadores rurais em função de conflitos no campo, no entanto, apenas 26 casos chegaram a ser julgados, dos quais apenas 15 resultaram em condenação; outros exemplos, dessas situações de exceção com as quais se convive cotidianamente no Brasil são o extermínio de crianças, os justiceiros e a privatização da Justiça, os morros no Rio de Janeiro dominados pelo narcotráfico, os garimpos com suas próprias leis e ainda as fazendas de trabalho escravo, que apesar do trabalho desempenhado pelo Ministério Público do Trabalho, ainda insistem em ressurgir eventualmente.

          Além da violência física, também há, no Brasil, a violação sistemática de outros direitos humanos, que configuram claramente um regime de exceção. Basta o exemplo notório envolvendo a proteção constitucional aos direitos da criança e do adolescente e as garantias constitucionais de educação e salário mínimo para todos os brasileiros.

          A Constituição do Brasil veda o trabalho de menores de 16 anos de idade (art. 7º, XXXIII), assegura a todo trabalhador "um salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (...)" (art. 7º, IV). "Garante", também, a mencionada Carta, que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência social aos desamparados (art. 6º).

          Na prática, porém, imensa parcela dos trabalhadores recebe remuneração de apenas um salário mínimo, cujo valor legal vigente é próximo de 80 dólares americanos mensais, a qual não proporciona sequer uma alimentação adequada, muito menos vestuário, lazer e outros bens da vida para os quais deveria ser suficiente, segundo a Constituição. Por sua vez, a educação, até hoje não foi efetivamente implantada, pois são insuficientes as vagas nas escolas e grandes parcelas das existentes têm instalações impróprias e não dispõem de corpo docente qualificado.

          Portanto, é claro que, recebendo o salário mínimo (situação da maioria) nacional do Brasil, torna-se difícil para qualquer pessoa até mesmo adquirir a alimentação suficiente para sobreviver, sendo um sonho distante o acesso àqueles outros direitos sociais "assegurados" na Constituição. Assim, nas famílias em que os respectivos chefes recebem apenas um salário mínimo, todos os membros são compelidos a buscarem meios de subsistência, inclusive as crianças ou adolescentes, que ingressam precocemente no mercado de trabalho, sem possibilidade de sequer sonhar com o direito à educação.

          Outro exemplo brasileiro é o caso da Saúde, que a Constituição afirma ser um direito universal, entretanto, na prática, trata-se de um direito ao qual tem acesso somente aqueles que pagam por ele.

          Esses exemplos todos, quando vistos no seu conjunto, permitem afirmar que, para largas parcelas da população brasileira não existe um autêntico Estado de direito, mas sim uma situação ambígua, em que lei e arbítrio, direito e exceção se entrelaçam, parecendo constituir uma situação institucionalizada no País.


5. O Ministério Público como instrumento imprescindível para a
consolidação de um Estado como Estado democrático de direito

          5.1. A evolução do Ministério Público: de "procurador do Rei" a monopolizador da ação penal pública, defensor da ordem jurídica e do regime democrático e promotor- ombudsman ou defensor do povo

          As pesquisas de história do direito não apontam para a existência, no passado, de um paradigma dessa instituição que tivesse as características que ela detém na atualidade, em que integra a organização política do Estado. Ao longo dos tempos, o Ministério Público mudou muito de papel social, tornando-se difícil o estabelecimento de objetivos e rígidos que possibilitem indicar precisamente a sua origem histórica. Por isso mesmo, ao se traçar a história do Ministério Público, muito mais do que buscar institutos idênticos no passado, o que se visa é identificar alguns cargos e funções públicas com atribuições assemelhadas àquelas que hoje lhe são destinadas, de modo a facilitar a compreensão do movimento evolutivo dessa Instituição, até atingir o seu atual perfil.

          Segundo Marcelo Pedroso Goulart(16), para alguns autores, a instituição precursora do Ministério Público remontam à civilização egípcia, há mais de 4.000 anos, representada pelo magiai - procurador-do-rei - consistente num corpo de funcionários com atribuições na âmbito da repressão penal, para castigar os rebeldes, reprimir os violentos, proteger os cidadãos pacíficos, formalizar acusações e participar das instruções probatórias na busca da verdade, bem como na esfera civil, para defender determinadas pessoas, como órfãos e viúvas. Na Grécia clássica teriam existido os temóstetas, responsáveis pelo exercício do direito de acusação. Em Roma, os praefectus urbis, os praesides, os procuratores caesaris, o praetor fiscalis, os curiosi, o iranercha e os stazionarii, são apontados como embriões do Ministério Público, alguns com função na área fiscal, outros na área de repressão a criminosos. Na Idade Média, são apontados como precursores do Ministério Público os saions germânicos, funcionários fiscais, responsáveis por atividades assemelhadas à de Ministério Público, pois, além de defender o erário, intervinham da justiça, na defesa de incapazes e de órfãos. Também na Alemanha, existia a figura do gemeiner Anklager, que, na omissão da vítima, exercia a função de acusador criminal. Os bailios e os senescais tinham a responsabilidade de defender os interesses dos senhores feudais em juízo e também são considerados figuras com atividades análogas às do Ministério Público.

          Porém, reitere-se, há doutrinadores que entendem não ter existido na antiguidade qualquer instituição ou função pública que se assemelhasse ao Ministério Público, sobretudo quando se reportam àquelas figuras gregas e romanas acima referidas. Argumentam assim porque o sistema de organização política da grécia clássica era baseado na pólis e a sociedade estava regida pela democracia direta, fundada na participação popular na tomada de decisões, de modo que isso teria inibido o surgimento de instituições nos moldes do Ministério Público. Quanto a Roma, por sua vez, aquelas figuras apontadas como precursoras do Ministério Público teriam funções apenas administrativas ou jurisdicionais, mas nunca teriam exercido a acusação em nome do Estado Romano.

          Assim, tais instituições seriam apenas algo próximo do que é o Ministério Público, que veio a surgir como tal somente no século XIII, na França, com a consolidação, em 1629, do monopólio jurisdicional da realeza ("Estatutos de São Luís"). Na "Ordonnance" de Filipe, o Belo, datada de 25 de março de 1303, o Ministério Público foi reconhecido formalmente e ganhou contornos definitivos com a legislação pós-revolucionária.

          A institucionalização do Ministério Público está diretamente relacionada com o processo de assunção do monopólio jurisdicional pela realeza. Como ao final do Império Romano o cristianismo foi adotado como religião oficial, a igreja católica passou a ter grande influência política, com hegemonia, na Europa Medieval. Tal fato refletiu-se inclusive na esfera jurisdicional, passando a Igreja a deter parcialmente tal atribuição, nas questões religiosas, através dos tribunais dos bispos, de sorte que suas decisões em tais questões chegaram ao ponto de ter força executória própria. Tal fato deu-se durante boa parte da Idade Média, causando ciúmes a alguns reis, que reagiram, aliando-se aos senhores feudais para enfrentar o poder da Igreja. Os reis criaram os tribunais dos senhores feudais, para enfraquecer o adversário comum, os quais passaram a coexistir com os tribunais dos reis e dos bispos, conseguindo assim enfraquecer o poderio da Igreja. Depois de alcançar este último objetivo, os reis, fortalecidos politicamente, empreenderam a luta pelo monopólio do poder e enfrentaram seus antigos aliados, os senhores feudais. Nessa luta, os reis buscaram a centralização do poder político e retomaram, para esse fim, o direito romano clássico. Na esfera jurisdicional, promoveram uma forte intervenção nos tribunais senhoriais, através dos agentes do rei (missius dominicus, advocatus parte publica, gens du roi), para a defesa dos interesses da coroa.

"roupagem" de estágio para estudantes, para viabilizar o descumprimento das normas de proteção ao contrato de trabalho e a sonegação dos encargos incidentes sobre os salários pagos; a fraude da contratação de empregados pelo Poder Público sem obediência à exigência de prévio concurso público; a sonegação de salário pelo menos igual ao salário mínimo legal, exigido na Constituição etc.;

          b) por meio do Ministério Público Federal (que deve agir em matérias cíveis "lato sensu" e em matérias criminais, e tem legitimidade para oficiar somente perante a Justiça Federal Comum), o resultado da atuação do Ministério Público da União pode ser claramente festejada pela população brasileira nas ações movidas contra depredadores do meio ambiente, nas ações contra as medidas governamentais que atentam contra os direitos adquiridos dos segurados da previdência pública, nas ações para coibir o desrespeito à exigência de concurso público para ingresso em cargos e funções públicas, nas ações destinadas à reparação de danos causados ao erário por administradores públicos criminosos, independentemente da promoção da ação penal; nas ações contra o Poder Público, para que forneça as prestações mínimas relativas à saúde e à educação; nas ações contra Instituições de Ensino Superior públicas ou privadas, para que respeitem os critérios legais destinados ao oferecimento ao público das vagas em seus diversos cursos; nas ações para postular a aplicação de reajustes do valor monetário de depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço dos empregados celetistas, dos quais a União é depositária e gestora; além de inúmeros outros exemplos;

          c) no que concerne ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, que tem atuação judicial restrita ao âmbito da Justiça do Distrito Federal e Territórios, tem, juntamente com em igualdade de condições com os Ministérios Públicos dos Estados, funções ainda mais relevantes, pois, além daquelas atribuições que tem o Ministério Público Federal, tem ainda muitas outras, o que lhe torna de suma importância para a sociedade. Os resultados obtidos é que ainda deixam a desejar, tendo em vista que setores retrógrados da Instituição, ainda inconscientes da sua independência garantida constitucionalmente, se permitem ceder a influências políticas, mormente por parte dos chefes de Executivo estaduais, que também não se deram conta de que - por imposição constitucional - não podem ingerir nessa Instituição; mesmo assim, sua ação pode ser sentida em casos como o da promoção de ações contra o Poder Público, para impedir criação ou lançamento irregular de tributos; na promoção de ações para cobrar do Poder Público vagas nas escolas públicas; ações para cobrar do Poder Público e de particulares a não poluição ambiental etc.;

         d) quanto ao seu ramo denominado Ministério Público Militar, não tem verdadeira atribuição de "defensor do povo", pois, ressalvada a atribuição de promover a acusação criminal naquela Justiça Especializada Federal, de resto se limita a exarar pareceres perante o Tribunal de Justiça Militar, função essa (de parecerista) há muito considerada sem importância social, a não ser quando se trata de ações que versem direitos ou interesses indisponíveis;

          II - O Ministério Público dos Estados:

          Nos Estados, conforme já comentado ao tratar do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, os respectivos Ministérios Públicos são os que têm atribuições mais relevantes, entretanto, paradoxalmente, é o que menos tem tido liberdade de ação, haja vista que ainda não se impôs adequadamente em relação aos demais Poderes do Estado. Sua competência é para as mesmas ações cabíveis ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, valendo aqui aqueles mesmos exemplos de atuações em prol do povo, ressalvando-se, porém, que se restringem, como visto, ao âmbito das respectivas Justiças Estaduais.


7. Conclusão

          Como se viu, atualmente processam-se infinitas modificações nas relações entre os Estados Estrangeiros, com a crescente tendência para a globalização em termos econômicos, o que faz multiplicarem-se, das mais diferentes formas, as violações de direitos fundamentais dos cidadãos, mormente pelos próprios Estados, ao adotarem medidas para adaptarem-se ao modelo econômico (neo-liberal) imposto de fora para dentro.

          Todavia, paralelamente à globalização econômica, silenciosamente se universaliza a fortificação da concepção de que é imprescindível o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, ou seja, estes ganham cada vez maior relevância. A maior parte da populações é constituída de pessoas que estão à margem dos mínimos essenciais aos quais seus Estados, através das respectivas Constituições, se obrigaram a lhes proporcionar, inclusive à margem do acesso à Justiça, para que possam cobrar esses "mínimos".

          O Poder Judiciário, em regra, nos vários países encontra-se estruturado ainda do modo como foi preconizado por Montesquieu, de sorte que, embora tenha por função a prestação da tutela jurisdicional, constitui-se numa função inerte do Estado, no sentido de que não tem o poder prestar a proteção jurídica senão quando devidamente provocado, através do processo legal. Daí porque se torna de vital importância, no contexto atual, em que se engrossa a massa dos marginalizados por todo o mundo, que exista mais uma função, própria da soberania do Estado, a quem a Constituição atribua a incumbência de promover a defesa dos direitos e interesses difusos e coletivos das populações, especialmente para cobrar do Estado as mínimas prestações "prometidas" na Constituição e que tenha o poder-dever de cobrar judicialmente tais prestações, bem assim o cumprimento da Constituição por quem quer que seja o violador.

          Traçado um paralelo da história dos direitos humanos com a história da instituição que no Brasil corresponde ao Ministério Público, na Suécia ao "ombudsman", na Espanha ao "Defensor del Pueblo" etc., pode-se perceber que essa instituição, sem dúvida alguma, já vem paulatinamente assumindo o papel acima preconizado e, no século atual, já se confirma a sua imprescindibilidade em toda e qualquer Constituição de Estado que se proponha a ser verdadeiramente um Estado Democrático de Direito.

          Daí por que se conclui, finalmente, que a criação de "ombudsmans" constitui uma tendência inegável do constitucionalismo moderno.


NOTAS

  1. Essa função pode ser mais um Poder do Estado, paralelo aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ou mesmo um braço da Magistratura, a Magistratura de Pé - magistrados do "parquet"-, ao lado da Magistratura Assentada - juízes - , como se dá, por exemplo, em Portugal.

  2. "apud" Paulo Bonavides, Curso de Direito constitucional, p. 515.

  3. Derechos humanos, Estado de derecho y constitucion, p. 48.

  4. Direitos humanos fundamentais, p. 24-32.

  5. Op. cit., p. 516.

  6. Op. cit., p. 516.

  7. "apud" Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 523.

  8. "apud" Paulo Bonavides, op. Cit., p. 523 .

  9. "idem", p. 524.

  10. Teoria pura do direito, p. 346.

  11. Ibidem.

  12. Introducción al derecho, p. 592.

  13. "A violação sistemática dos direitos humanos como limite à consolidação do Estado de Direito no Brasil" - Direito, Cidadania e Justiça, p. 189-195.

  14. "Apud", Oscar Vilhena, op. Cit., p. 191.

  15. Op. Cit., p. 193.

  16. Ministério Público e democracia, p. 1-19.

  17. Democracia y constitucion, p. 149.

  18. Teoria e prática da promotoria pública, p. 23.

  19. O acesso à justiça e o Ministério Público, p 146.

  20. ibidem.


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*procurador do Trabalho da 22ª Região, professor efetivo de Direito na Universidade Federal do Piauí, mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina)


CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. O Ministério Público, "ombudsman", defensor do povo ou função estatal equivalente, como instituição vocacionada para a defesa dos direitos humanos: uma tendência atual do constitucionalismo. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=279>. Acesso em: 20 ago. 2006.