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A humanização dos
serviços e o direito à saúde
Humanization
of healthcare services and the right to healthcare
Paulo de Tarso PucciniI; Luiz Carlos
de Oliveira CecílioII
ISecretaria de Saúde de Itapecerica da Serra, Itapecerica da Serra,
Brasil
IIFaculdade de Ciências Médicas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil
RESUMO
O artigo discute as
possibilidades e limites das proposições humanizadoras
na área da saúde. Utiliza como referências teóricas o conceito de "reificação" como explicação da determinação do
processo de estranhamento do homem com seu mundo e o de "necessidades
radicais" como possibilidade de superação de um humanismo tradicionalista
para uma práxistransformadora. A partir dessas
concepções, procura-se entender as dificuldades e as contribuições do movimento
pela humanização, destacando-se a interdependência e os limites das mudanças
setoriais na área da saúde frente às concepções e valores gerais da sociedade.
Finalizando, o artigo sugere que uma diretriz da humanização/satisfação,
ao aproximar a crítica sobre questões gerais da sociedade às dificuldades
cotidianas dos serviços, pode manter em aberto a abrangência do direito à saúde
para além dos limites das relações sociais vigentes, favorecendo uma
contraposição à tendência restritiva das políticas públicas mínimas na área da saúde.
Prestação de Cuidados de
Saúde; Política Social; Direito à Saúde
ABSTRACT
This article discusses the possibilities and limits of proposals for the
humanization of healthcare. The theoretical references utilized are the concept
of "reification" as a causative explanation for the process of man's
estrangement from his world and the concept of "radical needs" as a
possible way of overcoming traditionalist humanism to achieve transformative
practice. From these notions, an understanding of the difficulties and
contributions of the movement towards humanization is sought, highlighting the
interdependence and limits of sectoral changes within healthcare in light of
society's concepts and general values. The article concludes by suggesting that
guidelines for humanization/satisfaction, in bringing together the critique of
society's general questions concerning the daily difficulties of healthcare
services, may keep the comprehensiveness of the right to healthcare open beyond
the limits of current social relations, thereby favoring a stance that opposes
the restrictive trend of minimal public policies towards healthcare.
Delivery of Health Care; Public Policy; Right to Health
Introdução
Muitas podem ser as
compreensões ou definições de qualidade. Vuori 1 avalia que a noção de qualidade varia com o
interesse dos diferentes grupos sociais, que podem ter pontos de vista
diferentes sobre o que constitui qualidade. Para Donabedian,
a conceituação de qualidade coloca-se como construção de um modelo normativo
para avaliar os serviços de saúde, capaz de monitorar e induzir um balanço cada
vez mais favorável entre benefícios e riscos. Assim, para esse autor, a
qualidade da atenção à saúde se define como um arranjo ideal de um vasto conjunto
de elementos presentes na estrutura, no processo e no resultado 2.
Qualidade é uma aspiração
declarada, com distintos objetivos, de empresas privadas e das instituições do
setor público, bem como do consumidor de determinado produto. Sempre foi um
objetivo a ser alcançado que, na realidade cotidiana do fazer, era modulado
pelas possibilidades da ação prática, dos estilos gerenciais e dos interesses
de um determinado corpo proprietário ou dirigente.
Entretanto, a partir das
formulações da teoria da "Gestão pela Qualidade Total", a qualidade,
em si, vem se afirmando como um conceito paradigmático para a formulação de
modelos gerenciais, desenvolvidos como resposta a certas dificuldades das
empresas privadas e que, também, são, muitas vezes, transpostos de forma acrítica para o setor público. Assim, a idéia geral de
qualidade como qualificação do fazer, naturalmente expressando diferentes
significados conforme a posição social do seu proponente no processo produtivo,
estreita-se com o movimento pela "Qualidade Total", e vai ganhando um
sentido mais comprometido e articulado com os interesses do sistema social
produtor de mercadorias.
Neste movimento
"renovador", os conceitos de qualidade e de satisfação do consumidor
parecem ganhar autonomia e potencialidade determinística
sobre o fazer. É como se tudo que se pensava ter feito bem, em correspondência
a determinadas necessidades, fosse uma ilusão, um turvamento das ações pela
presença de outros interesses na organização empresarial (particularmente dos
trabalhadores), que impregnavam negativamente os produtos ou os serviços
prestados. Não se tinha o êxito almejado na satisfação das necessidades porque
não se concentrava e motivava em fazer com qualidade, não se trabalhava
adequadamente.
O envolvimento de todos os
trabalhadores, um dos princípios fundamentais do modelo de "Gestão pela
Qualidade", é entendido como a busca do alto desempenho da organização,
por meio do estímulo à colaboração e ao compromisso dos trabalhadores para
atingir objetivos e metas da organização; exemplificando com as proposições do
programa brasileiro de qualidade e produtividade " (...)
o agente público e o Estado não se bipartem, sendo a vontade e a ação dos
agentes a representação da vontade e da ação do Estado. Essa relação orgânica
existente entre organizações públicas e seus servidores/empregados
evidencia a importância vital da atenção vigorosa à gestão das pessoas"
(p. 56)," (...) toda organização pública, para atender sua missão,
precisa funcionar como um organismo integrado, com todas as suas ações
sistematizadas e direcionadas para a consecução de objetivos comuns. De forma
geral, a gestão de processos compreende a definição, execução, avaliação,
análise e melhoria dos processos organizacionais"
(p. 62).
Como afirma Lukács 4 (p. 103): "em
conseqüência da racionalização do processo de trabalho, as propriedades e
particularidades humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como simples
fontes de erro, racionalmente calculado de antemão. (...) O homem não aparece,
nem objetivamente nem no seu comportamento, em relação ao processo de trabalho
como verdadeiro portador desse processo (...)".
Um aspecto característico
dessas novas escolas da teoria geral da administração (TGA) é o interesse pelas
condições sob as quais o trabalhador pode ser mais bem induzido a cooperar no
esquema de trabalho organizado. Amargamente, reclama-se das características de
uma população trabalhadora que os próprios "gerentes científicos"
modelaram para ajustar-se aos seus fins, mas não encontraram, e incessantemente
procuram um jeito de produzir trabalhadores que sejam ao mesmo tempo degradados
em seu lugar no processo de trabalho e também conscienciosos e orgulhosos de
seu trabalho. A qualificação e a competência exigidas pelo capital muitas vezes
objetivam de fato a confiabilidade que as empresas pretendem obter dos
trabalhadores, que devem entregar sua subjetividade à disposição do capital 5,6.
Discutindo determinados
tipos de produção científica, Lukács 4 (p. 22) propõe que "a ciência que
reconhece, como fundamento do valor científico, o modo como os fatos são
imediatamente dados e, como ponto de partida da conceituação científica, a sua
forma de objetividade, esta ciência coloca-se muito simples e dogmaticamente no
campo da sociedade capitalista, aceitando sem crítica sua essência, a sua
estrutura de objeto, as suas leis, como fundamento imutável da 'ciência'".
Em todo desenrolar das
grandes teorias da TGA, a contradição essencial entre capital e trabalho fica
oculta mesmo quando questões políticas, como o conflito e o poder, são
discutidas 7. Essa condição não é,
portanto, exclusividade desse movimento pela qualidade. A ocultação da
realidade concreta, mantida nas sucessivas atualizações da TGA, é elemento
indissociável de suas proposições, e essa teoria gerencial da qualidade não
foge à regra. Isso não significa que esse movimento não tenha contribuições,
algumas de valor operacional considerável, mas sim que a modernização proposta
está inapelavelmente reificada pelos valores da
sociedade capitalista. Reificação é aqui entendida
como a situação resultante do tipo de processo produtivo da sociedade, e por
ele caracterizada, sobretudo, no sistema capitalista, em que o trabalho humano,
cuja base é uma relação entre pessoas, se realiza de modo que produza coisas que
são separadas dos homens, para se transformarem em mercadorias independentes ou
imaginadas como tal, que, em vez de serem intermediárias entre indivíduos,
convertem-se em realidades soberanas que passam a governar a vida social,
submetendo a atividade humana que se torna estranha ao próprio homem 4.
Sugere-se, então, numa
aproximação esquemática ao tema da qualidade e dos modelos gerenciais pela
qualidade, que, a depender da visão de mundo sob a qual são analisados, pode-se
compreendê-los como uma busca fenomenológica de uma resposta ética ao
consumidor, num plano mercadológico; ou como a definição de normas de um
padrão-ouro no uso da técnica; ou, ainda, pelo prisma de uma visão
contra-hegemônica, buscar criticamente os significados desses temas na relação
com a totalidade concreta revelando seus interesses mais profundos, inseridos
nos próprios impasses da produção e reprodução do sistema social 8. Com a intenção de uma abordagem crítica,
adota-se o caminho metodológico enfatizado por Kosik 9,
segundo o qual, sem a compreensão da realidade como totalidade concreta - que
se transforma em estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos -,
o conhecimento da realidade concreta não passa de mística, ou coisa
incognoscível em si. A concreticidade não nega o
conhecimento da existência ou da objetividade dos fenômenos, mas reconhece que
é necessário articulá-los com uma totalidade concreta, para compreendê-los a
partir de suas mútuas determinações. A pseudoconcreticidade
é justamente a pretensa existência autônoma dos produtos do homem e a redução
do homem ao nível da práxis utilitária. A realidade social não é
considerada totalidade concreta se o homem, no âmbito da totalidade, é
considerado apenas objeto, e se na práxis histórico-objetiva
da humanidade não se reconhece a importância
primordial do homem como sujeito.
A adoção formal dos
conceitos da "Gestão pela Qualidade" no setor público brasileiro teve
início com a criação, em 1991, do Programa Brasileiro de Qualidade e
Produtividade. Configurou-se como o Programa 2.057 do Plano Plurianual
2000-2003 (http://qualidade.planejamento.gov.br,
acessado em 20/Jul/2001). O Departamento Nacional de
Auditoria do Ministério da Saúde colocou-se como um núcleo de propagação e
organização desse movimento gerencial nos diferentes níveis governamentais do
Sistema Único de Saúde (SUS). Esse expressivo movimento de "Gestão pela
Qualidade Total", também presente na área da saúde pública, tem convivido,
por vezes de forma complementar e em outras em disputa, com as proposições
voltadas para a humanização dos serviços. De fato, algumas características do
movimento humanizador o impulsionam para uma possível
diferenciação com o ideal da "Qualidade Total". O movimento pela
humanização é, em última instância, também uma busca pela qualificação da
produção ou prestação de serviços, mas delineia-se, na sua implementação, uma
força e um potencial de crítica e ruptura com um compromisso mercadológico
obrigatório de tudo ou, ainda, com uma normalização institucional que diga
respeito, apenas, à lógica tecno-burocrática e à
busca obtusa pelo desempenho produtivo.
A humanização é um
movimento com crescente e disseminada presença, assumindo diferentes sentidos
segundo a proposta de intervenção eleita. Aparece, à primeira vista, como a
busca de um ideal, pois, surgindo em distintas frentes de atividades e com
significados variados, segundo os seus proponentes, tem representado uma
síntese de aspirações genéricas por uma perfeição moral das ações e relações
entre os sujeitos humanos envolvidos. Cada uma dessas frentes arrola e classifica um conjunto de questões práticas, teóricas,
comportamentais e afetivas que teriam uma resultante humanizadora.
Nos serviços de saúde,
essa intenção humanizadora se traduz em diferentes
proposições: melhorar a relação médico-paciente; organizar atividades de
convívio, amenizadas e lúdicas como as brinquedotecas
e outras ligadas às artes plásticas, à música e ao teatro; garantir
acompanhante na internação da criança; implementar novos procedimentos na
atenção psiquiátrica, na realização do parto - o parto humanizado e na atenção
ao recém-nascido de baixo peso - programa da mãe-canguru; amenizar as condições
do atendimento aos pacientes em regime de terapia intensiva; denunciar a "mercantilização" da medicina; criticar a
"instituição total" e tantas outras proposições.
Assim, com as propostas
de humanização, cresce uma valorização das inter-relações humanas, como uma
trincheira de resistência contra o avassalador convencimento da superioridade
moral do mercado, e eleva-se a um valor superlativo a busca da dignidade
humana. Por outro lado, seu desenvolvimento fragmentado, segundo diferentes experiências,
e o fato de cada um de seus singulares realizadores tentar explicar as
dificuldades do mundo com um horizonte de análise reduzido têm colocado as
razões e motivações de tal movimento humanizador em
caminhos diferentes e até mesmo conflituosos.
Os distintos caminhos das proposições humanizadoras na saúde
Compilando alguns
trabalhos publicados nas revistas científicas da área de saúde - Rocha &
Simões 10, Trezza 11, Oliveira 12,
Fernandes 13, Manrique & Altuna 14, Bozzo &
Martínez 15, Santos 16, Aires et al. 17, Montoya 18,
Kloetzel et al. 19,
Zusman 20, Caprara
& Franco 21, Soares 22, Gallian
23, Ministério da Saúde 24, Zaicaner
25, Martins 26 -, constatam-se algumas direções
fundamentais dessa preocupação com a humanização e satisfação do usuário: ora
aparece com uma noção de amenização da lógica do sistema social, centrado sobretudo numa crítica à tecnologia e como tentativa de
criar um "capitalismo humanizado"; ora como a busca de uma essência
humana perdida, ou seja, como um movimento de restauração moral; ora como uma
negativa existencialista da realidade concreta, imaginando uma autonomia das
emoções e afetividades individuais da práxis humana; ora como processo
de organização institucional que valoriza a escuta no ato assistencial; ora
como valorização de direitos sociais.
Uma das características
mais expressivas desse movimento na área da saúde, sobretudo nas considerações
sobre a prática médica, é a crítica à tecnologia. Veja-se um exemplo: "em
razão do acelerado processo de desenvolvimento tecnológico em medicina, a
singularidade do paciente - emoções, crenças e valores
- ficou em segundo plano; sua doença passou a ser objeto reconhecido
cientificamente. O ato médico, portanto, se desumanizou" 26
(p. 27).
Na defesa de uma "reumanização" da medicina, outro autor afirma: "os
grandes avanços científicos e técnicos no campo das ciências experimentais
aplicadas à medicina e às ciências da saúde em geral vêm trazendo uma série de
transformações nesses campos. O processo de desumanização
é uma das conseqüências do divórcio entre a medicina e as humanidades que
ocorreu, principalmente, a partir de fins do século XIX (...) As causas das
doenças, portanto, deveriam ser buscadas não apenas no órgão ou mesmo no
organismo enfermo, mas também e principalmente no que há de essencialmente
humano no homem: a alma, esse componente espiritual que distingue o homem dos
outros organismos vivos do planeta" 23 (p. 5). E conclui com atualíssimo tom bucólico: "homem
culto, o médico romântico aliava seus conhecimentos científicos com os
humanísticos e utilizava ambos na formulação dos seus diagnósticos e
prognósticos. Conhecedor da alma humana e da cultura em que se inseria, já que
invariavelmente andava muito próximo de seus pacientes - como médico de família
que era -, esse respeitável doutor sabia que curar não era uma operação
meramente técnica (...)" 23 (p. 6).
Como contraponto a essas
idéias, não é demais citar uma aguda observação de Kosik
9 (p. 55-6): "o iluminismo elimina
a falsa consciência da história e descreve a história da falsa consciência como
história de erros que na realidade não deveriam ter ocorrido se os homens
tivessem sido mais perspicazes e os soberanos mais sábios; a ideologia
romântica, ao contrário, considera verdadeira a falsa consciência porque só ela
teve eficácia, efeito, influência prática e, portanto, só ela foi realmente
história".
Assim, o caminho proposto
de uma "reumanização" da medicina guarda forte apego bucólico, limitando-se à questão da formação médica
e seu caráter clássico perdido por força da tecnologia. Reduz a questão a um
problema no interior da epistemologia médica, procurando retomar, por meio da
volta ao passado, o caráter técnico e moral perdido, restaurando um médico
idealizado na literatura romântica. Avalia-se, assim, que essa discussão, sem a
devida articulação com a evolução das relações sociais, sem a presença da
concepção da totalidade concreta, dos interesses, das classes sociais, da
cultura, do Estado moderno, não consegue ultrapassar uma saudade idealizada,
uma inconformada racionalidade religiosa perdida.
Após analisar uma
variedade de inovações tecnológicas e de automação do trabalho, Braverman 5 conclui que
o aspecto unificador é o mesmo: a eliminação progressiva das funções de controle
pelo trabalhador, tanto quanto possível, e a transferência desse controle para
um dispositivo que é controlado pela gerência externa ao processo imediato. "Não
é a força produtiva da maquinaria que enfraquece a espécie humana, mas a
maneira pela qual ela é empregada nas relações sociais capitalistas. (...) É,
sem dúvida, este 'senhor', por trás da máquina, que domina, drena a força de
trabalho viva" 5 (p. 197). Mas,
enfatiza o autor, tornou-se elegante atribuir à maquinaria os poderes sobre a
humanidade que decorrem, de fato, das relações sociais. A sociedade, segundo
esse modo de ver, nada mais é que uma extrapolação de ciência e tecnologia.
Esta é a coisificação de uma relação social, um
fetichismo, no sentido que Marx dá ao termo.
Com base num enfoque mais
psicológico, Zusman 20 (p. 946) diz: "a
humanização admite o reconhecimento da realidade interna, implica a aquisição
de valores que levam ao refinamento da consciência moral, da sensibilidade ao
sofrimento alheio, da compaixão, da capacidade empática, da tolerância ao
sentimento de culpa e à consciência da finitude e fragilidade humanas. Implica a admissão estóica ou resignada
dos 'sofrimentos intrínsecos ao viver'".
Proposições como essa
reforçam a necessidade de valorizar as questões subjetivas envolvidas,
particularmente no processo de realização dos cuidados de saúde. Mas é
importante incorporar esse tipo de contribuição sem ultrapassar seu limite de
possibilidades, entendendo que os índices de valor com características
ideológicas, ainda que exteriorizados por um indivíduo, constituem índices
sociais de valor, com pretensões ao consenso social. A consciência adquire
forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas
relações sociais. É, portanto, indispensável que o objeto adquira uma
significação interindividual; somente então é que ele
poderá ocasionar a formação de um signo. Evidentemente, o signo não é
determinado pelo arbítrio individual, pois o signo se cria entre indivíduos, no
meio social. Eles são o alimento da consciência individual, a matéria de seu
desenvolvimento. Como afirma Bakhtin 27 (p. 48), "é
impossível reduzir o funcionamento da consciência a alguns processos que se
desenvolvem no interior do campo fechado de um organismo vivo. Os processos
que, no essencial, determinam o conteúdo do psiquismo desenvolvem-se não no
organismo, mas fora dele, ainda que o organismo individual participe deles. O
psiquismo subjetivo do homem não constitui um objeto de análise para as
ciências naturais, como se tratasse de uma coisa ou de um processo natural. O
psiquismo subjetivo é o objeto de uma análise ideológica, de onde se depreende
uma interpretação sócio-ideológica". " (...)
A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base
econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura
ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos.
(...) A consciência individual é um fato sócio-ideológico" 27
(pp. 35-6).
É certo que as
modificações existenciais contribuem para as mudanças sociais, mas, como afirma
Kosik 9 (p. 90), "na
modificação existencial o sujeito do indivíduo desperta para as próprias
potencialidades e as escolhe. Não muda o mundo, mas muda a própria posição
diante do mundo. A modificação existencial não é uma transformação
revolucionária do mundo; é o drama individual de cada um no mundo".
Para uma crítica do movimento humanizador
Será que no decorrer do
tempo a espécie humana, envolvida na luta pela sobrevivência, perdeu a sua
"essência humana"? O que seria então essa
essência? Em que remoto tempo e lugar ela estaria trancada e esquecida, de modo
que um mutirão da boa vontade precisasse urgentemente resgatá-la desta situação
de refém da razão? Seria um novo ribombar do pecado original? Perdemos a fé e
estamos pagando pela nossa dissidência com o transcendental? Maltratamos tanto
a natureza que acabamos perdendo a noção da nossa própria conduta natural
biológica?
Com essas indagações, que
são hipóteses explicativas do movimento humanizador,
procura-se alertar para uma dificuldade em se conceituar uma avalanche de
intenções que, situadas no campo dos justos e politicamente corretos, trabalham
com concepções de mundo muito diferentes, resultando em distintas propostas de
humanização que, no fundo, só coincidem enquanto slogan de propaganda. Nesse
sentido, muitos programas de instituições da área da saúde vêm inserindo
atividades sob a denominação do clichê "humanização". Assim, fixados
na propaganda dos efeitos de uma situação que é explicada com noções genéricas,
que estão mais ao alcance do que as realidades a que correspondem, iniciativas
pontuais correm o risco de substituir a totalidade da realidade por essas
noções elementares dos fatos, freqüentemente supervalorizados com motivação demagógica.
Esse proceder estabelece um novo véu que se interpõe entre a realidade das
coisas e os homens, mascarando-a, bem como às condições determinantes daquilo
que se pretende mudar 28. Ou, ainda, essa significação social do
movimento humanizador, com base em somatório de
fatos, resulta na sobreposição fenomenológica da aparência à essência das
coisas, pela perda do sentido da totalidade concreta como estrutura
significativa para cada fato ou conjunto de fatos 9.
Esse movimento de
exigência de humanização das atividades humanas não é, absolutamente, novidade
na área da saúde nem na sociedade em geral. Ele expressa o estranhamento do
homem diante de seu mundo. Entretanto, embora isso seja rotineiro, é
interessante observar o alto risco de seu tom discursivo redundante, tal como
de um culto religioso, pois já sendo as ações humanas (sejam elas julgadas boas
ou más) pertencentes ao homem, por que então falar em humanizá-las? Para
explicar esse paradoxo, é necessário cautela para não
valorizar as subjetividades abusivamente, ultrapassando o alcance de sua
potência transformadora e produzindo uma "psicologização"
do processo social. Konder 29, discutindo
aspectos da alienação, afirma que o refúgio na vida privada não impede que a
dilaceração do humano sacrifique a unidade e promova a confusão. O mundo
psíquico atomiza-se tanto quanto o social e perde o
sentido da totalidade, e este choque é inautenticamente
vivido sob a forma caricatural de um conflito entre a "razão e os
sentimentos", como uma manifestação da cisão entre o singular e o
universal, entre os indivíduos e a espécie no interior dos indivíduos. Assim,
sem a percepção do que há de comum com os outros, as diferenciações individuais
passam a ser observadas independentemente da história
concreta e das condições materiais de vida dos homens.
Nessa diversidade
conceitual de intenções e motivações, cresce uma tendência a se considerar a
concretização da humanização e suas possibilidades de alcance como um processo
dependente da incorporação de algo trazido de fora do homem como ser social,
quer pela noção de Deus como origem ou fonte de uma essência perdida, quer da
natureza com seus instintos racionais de qualidade, quer pelo resgate de uma
essência humana eterna e imutável inerente a todos os indivíduos da espécie. O
que têm em comum esses três caminhos é a resposta a problemas reais, com base
em diagnósticos causais e soluções que diluem o caráter histórico-social tanto
dos problemas como da própria idéia de humanização. Isto é, o entendimento da
humanização como um aspecto da realidade humana mutável com o tempo, tal como o
homem, que, por sua natureza histórica e social, é um ser cuja "característica
é a de estar se fazendo ou se autoproduzindo
constantemente tanto no plano de sua existência material,
prática, como no de sua vida espiritual, incluída nesta a moral" 30 (p. 25).
Mas, afinal, o que
significa a idéia de humanizar diferentes aspectos da vida social e das ações
de saúde em particular? Para responder a essa questão, é preciso optar por um
entendimento desse movimento humanizador que procure
articular coerentemente, numa perspectiva transformadora, tudo o que haja de
positivo em cada uma das inúmeras novas experiências e contribuições em
diferentes atividades. A primeira tentação é dar por resolvida essa
insuficiência, reafirmando a definição genérica do humanismo clássico entendido
como qualquer atitude ou teoria que afirme que a dignidade humana é o valor
supremo e deve, portanto, ser tão favorecida quanto defendida dos ataques
procedentes dos poderes políticos, econômicos e religiosos. Mas essa definição
implica uma definição preliminar do homem (de uma essência do homem anterior à
sua existência prática), o que pode acarretar paradoxalmente a exclusão de
certos seres humanos da humanidade no sentido nobre. Por isso, em defesa do ser
humano, o humanismo tradicional foi tão atacado por propostas filosóficas que "podem
ser indiferentemente qualificadas de anti-humanismo - pelo fato de recusarem a
situação à qual o homem chega historicamente - e de humanismo - pelo fato de
proporem um devir mais digno para o ser humano" 31 (p.
233).
Não se adotou, neste
trabalho, o entendimento de humanização como busca da "essência
humana" perdida. Optou-se pela conceituação que compreende a essência
humana não como algo abstrato e imanente a cada indivíduo ou como algo
universal que se manifestaria nos indivíduos, mas como o conjunto das relações
sociais. Não é no indivíduo que podemos encontrar a essência humana, mas sim
nas relações sociais, das quais ele mesmo é um produto. Assim, a essência
humana passa a ser compreendida como algo que só pode ser desvendado no
conjunto das relações sociais, que produzem tanto a natureza do homem social
como a de indivíduos, pois o indivíduo à margem dessas relações é uma
abstração, e a essência humana, concebida como atributo individual, é tão abstrata quanto ele 32.
A essência humana,
portanto, não é o que "esteve sempre presente" na humanidade, mas a
realização gradual e contínua das possibilidades imanentes à humanidade, dos
valores próprios do gênero humano, como o trabalho, a socialidade,
a universalidade, a consciência e a liberdade. A expressão e a hierarquia dos
valores explicitam ou são as condições de explicitação, em
cada época, de uma determinada essência humana 33.
A liberdade do homem e a
produção do mundo humanizado são, por conseguinte, a consciência histórica da
necessidade, mas não se reduzem a isso, não se reduzem a transformar a
escravidão espontânea e cega numa escravidão consciente de necessidades, não
são assunto apenas teórico, pois estão ligadas ao desenvolvimento do homem como
ser prático, transformador ou criador de um devir mais digno para o ser humano
contextualizado e capaz de recusar a passividade ante o reino das necessidades
"necessárias" 32.
O homem, este ser
sócio-histórico, tem a capacidade de objetivar suas carências e poderes no
processo de sociabilidade e historicidade; assim, em cada objeto concreto,
condensa os processos de trabalho como processos de reprodução social 34.
Marx 35 (p. 40) enfatiza a compreensão da produção histórica das necessidades:"(...) satisfeita esta primeira
necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido
conduzem a novas necessidades - e esta produção de novas necessidades é o
primeiro ato histórico".
A espiral desse processo
vai estabelecendo, em cada período, em cada sociedade e em cada grupo de homens
ou classes dessa sociedade, de modo sempre dinâmico, um conjunto de
necessidades que se costuma denominar de necessidades "necessárias".
Essas são, portanto, históricas. São sempre conscientes uma vez que
individuais, embora sócio-historicamente produzidas.
Prisioneiros das
necessidades "necessárias", os homens alienaram-se ao domínio das
coisas sobre eles, quando as relações inter-humanas aparecem como relações
entre coisas, e as necessidades não são governadas pelas necessidades de
desenvolvimento e auto-realização do indivíduo 36. Essa condição
permite compreender a alienação do homem como fato intrínseco da ação reificadora das relações sociais capitalistas, fonte
primeira deste estranhamento, produzida e reproduzida pelo sistema nos
diferentes campos da vida social. Assim, é que o movimento da "Qualidade
Total" fixa um compromisso intrínseco de uma metodologia operativa com o
sistema produtor de mercadorias em correspondência às chamadas necessidades
"necessárias".
Portanto, o que importa
sobre o movimento humanizador, como contribuição para
o provimento de necessidades, não é julgar seu status moral ou seu grau
de compromisso com uma eficiência operacional dirigida pelas "necessidades
necessárias"; o que está em jogo é a finalidade, o potencial e a direção
desse movimento para o enriquecimento humano capaz de colocar socialmente em
questão as amarras culturais, sociais, políticas e econômicas que travam a
conquista de novos padrões universais e solidários de qualidade de vida 36.
Para tanto, seria
oportuno introduzir o conceito de necessidades radicais que, segundo Heller 36,
não deixam de ser partes da constituição orgânica das necessidades
"necessárias" do corpo social do capitalismo, mas sua satisfação é
impossível dentro desta sociedade e, precisamente por isso, motivam a práxis
que transcende a sociedade que as determina. Não são sonhos ou receitas morais
utópicas, pois têm origem nos próprios conflitos e insuficiências da estrutura
das necessidades "necessárias". Destacam-se do conjunto dessas
necessidades sócio-historicamente produzidas, objetivadas, conscientes,
individuais, como um subconjunto com essas mesmas características, mas que se
opõem, porque opõem seus portadores ao modo de reprodução histórica da
sociabilidade. Configuram, para seus portadores, a efetivação das
possibilidades imanentes de "enriquecimento humano" e expansão como
sujeitos de forma congruente com sua gênese e diferenciação. Expressam a busca
de confluência entre causalidade (objetividade das coisas e das
"circunstâncias") e teleologia (as finalidades a que aspiram os
homens) e exigem a remoção dos obstáculos sócio-históricos à sua satisfação 34,36.
Ou seja, não é na dimensão interna do trabalho morto, das tecnologias e sua
causalidade implícita que uma necessidade se torna ou não radical, no sentido
proposto. Para tal confluência, exige-se a expressão dos sujeitos coletivos, de
suas finalidades postas como questionamentos à ordem das coisas e como
constituição do bloco de forças capaz de encaminhar as mudanças exigidas.
As necessidades radicais
não são nem mais nem menos verdadeiras ou reais do que as necessidades
"necessárias", mas encarnam o questionamento aos limites de progresso
imposto pelo conjunto das relações sociais numa dada formação
social, econômica e política. Esta potencialidade de ruptura e de
geração de forças sociais pela mudança estabelece sua vinculação prática com um
processo político radical e de ampla participação pela transformação da ordem
vigente.
Possibilidades e limites do movimento
de humanização na saúde
Optou-se, neste trabalho,
por ancorar a discussão do movimento de humanização na saúde, apesar das
distintas visões existentes, com a idéia apresentada das necessidades radicais.
Isto é, uma opção de entendimento que transforma a doutrina humanista clássica
atravessando-a com o pulsar histórico dos carecimentos
humanos concretos construídos socialmente.
Assim, tal movimento
ganha característica de práxis humana radical, e não apenas uma
existência no campo das predicações morais. Recusou-se, assim, o entendimento
da humanização limitada a uma coletânea de ações para a amenização das
contradições sociais. Este caminho não difere do movimento da "Qualidade
Total" e não traz nada de novo em relação a ele, acrescentado apenas um
toque romântico e sensível no seu proceder.
Articulando o movimento humanizador na saúde com a questão do reconhecimento e da
valorização social das necessidades radicais, concebe-se uma linha de
identidade das diferentes experiências desse movimento como tentativas de
rupturas, de ir além das necessidades "necessárias", de valorizar a
autonomia dos sujeitos e as diferenças. Compreende-se o imperativo da
incorporação do outro, segundo seu patamar real de acesso aos bens materiais e
culturais, com a humildade de ponderar as verdades tecno-científicas.
Abandona-se o foco da preocupação epistemológica de construção de uma ciência
isenta, neutra e reconciliada internamente com o
humanismo clássico, para se procurarem respostas no processo social e político
dialógico entre os sujeitos. Abandonam-se os nobres e elevados horizontes de
compreensão do mundo e dos valores morais, recitados religiosamente, para recolocá-los segundo os limites da vida real, das condições
cruentas e primárias da sobrevivência material, cultural
e moral dos homens, segundo as diferentes vivências da alienação, das
desigualdades sociais e da sua reprodução sistêmica.
Na perspectiva dessa práxis
transformadora, ganha importância a relação entre profissionais de saúde e
usuários: passagem do ambiente relacional de individualismos com
individualismos para o ambiente relacional de sujeitos sociais com sujeitos
sociais. Isto é, o subjetivo extravasa o plano dos afetos íntimos, sem abdicar
dele, e ganha, também, significado e expressão como parte integrante de um
projeto social e de seus objetivos. Na área da saúde, a perspectiva da
conquista social do direito à saúde constitui a busca de um estágio mais
avançado de autonomia, definido como capacidade das pessoas de não apenas
eleger e avaliar informações com vistas à ação, mas de criticar e, se
necessário, mudar as regras e práticas da sociedade a que pertencem 37.
No ato de reconhecer e
valorizar as necessidades radicais está a fundamental diferença entre o
provimento mínimo e o básico do direito à saúde, momento no qual se constituem
as alianças sociais na defesa para que o alcance e a abrangência das políticas
públicas não sejam reduzidos ao mínimo. O ótimo no provimento de um direito
social é, certamente, um ponto sempre em fuga, mas o mínimo e o básico não são
a mesma coisa; do ponto de vista prático, conceitual e político, são noções
assimétricas. O mínimo tem o significado de menor, de menos, identificado com
patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção,
acompanhado por supressão ou cortes de atendimentos. Já o provimento do básico
expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve
de base de sustentação indispensável ao que a ela se acrescenta. O básico
requer investimentos sociais de qualidade que preparem o terreno para o
surgimento de outras necessidades, que questionem os limites da própria
estrutura social e das relações sociais vigentes 38.
À medida que o movimento
pela humanização se eleva da predicação moral para uma preocupação operativa do
direito à saúde, com a reorganização dos serviços e das práticas em saúde, ele
incorpora de maneira simbiótica a categoria da
satisfação dos usuários. A novidade característica da humanização/satisfação
radical é, portanto, a possibilidade de abrir a organização para o cidadão indo
além da mensuração de graus quantitativos de satisfação, incorporando a opinião
e reivindicações da população neste processo de mudanças e contribuindo para
uma tomada de consciência mútua dos profissionais e cidadãos de novas
finalidades e projetos comuns para a saúde 8.
A humanização, esvaziada
desses conteúdos, restringe os sentidos e as conseqüências da sua ação
operacional ao limite da metodologia da "Qualidade Total" com sua
preocupação restrita, focada internamente na organização, nos seus processos e
no exercício da modulação organizacional, segundo as necessidades
"necessárias". Assim, o movimento da humanização também aparece
restrito, focado na organização, exaltando conhecimentos, técnicas e
habilidades interacionais dos profissionais. Nesse
caso, apesar de alguma diferença vernácula, se tal preocupação não encontrar um
fundamento mais amplo e aberto, poderá limitar-se ao mesmo horizonte do
movimento da qualidade. Reconhece-se que isso, sem dúvida, já é um ganho em
relação ao rígido fechamento da organização para o seu ambiente de atuação, mas
representa o abandono de uma visão mais ampliada e potencialmente emancipadora.
O movimento da
humanização radical tem natureza mais flexível, pois está focado para além da
qualificação. O ir além da qualificação do fazer numa estrutura social fixada
representa a dimensão característica do movimento radical de humanização e
satisfação. Essa característica condiciona e limita o alcance autônomo desse
movimento, pois ele não se resolve nos limites setoriais, exigindo um projeto
político-social amplo.
Humanização radical e o direito à saúde
As novas condições para a
organização das ações de saúde no Brasil, concretizadas com a regulamentação do
SUS, na Constituição de 1988 e na legislação ordinária que se seguiu (Lei
8.080/90 e Lei 8.142/90), inauguraram um novo ciclo de disputas,
qualitativamente distinto das questões e problemas que tomavam conta da agenda
político-social da área da saúde, no período anterior. A saúde como direito
social é a mudança fundamental anunciada pelo SUS. A reconstrução do sistema de
saúde em novas bases, portanto, não é tarefa simples, pois ultrapassa um questionamento conceitual interno da área, restrito apenas aos
seus técnicos e profissionais. Assim, para a sua consolidação, torna-se
gradativamente insuficiente apenas o posicionamento crítico em relação ao
conceito limitado da saúde ou em relação à forma de organização dos serviços - dicotomizada entre as ações individuais e as coletivas e
entre prevenção e cura, características da situação anterior. A nova arena
exige mais. Tomando a conceituação ampla sobre a saúde, a nova arena exige que
se criem formas que materializem social e politicamente uma ação cuidadora integral, como direito de cidadania.
No processo de busca da
superação do modelo médico-privatista e da saúde
pública campanhista e controlista
enfrentam-se polêmicas recorrentes com as concepções restritivas representadas
pelas propostas de provimento mínimo do direito à saúde, focadas na rede básica
simplificada, com equipe mínima, cumpridora de uma
"oferta organizada" unilateral e "tecnicamente"
definida, oriundas da concepção da "atenção primária à saúde" e,
também, com as concepções da "Gestão pela Qualidade" que,
comprometida com a funcionalidade do "Estado Gerencial", tende a
dissolver as arenas de disputa política pela abrangência dos direitos sociais e
pela qualidade de vida. Segundo Oliveira 39, os defensores da crise
atual do Estado não propõem o desmantelamento total da função do fundo público
como antivalor. O que propõem é a destruição da
regulação institucional com a supressão das alteridades entre os sujeitos
sócio-econômico-políticos. Ao contrário das teses de que o "tamanho"
do Estado, aparentemente, pode ter chegado a limites que ameacem a acumulação
de capital, o que está em jogo é exatamente a disputa dos lugares de utilização
e distribuição da riqueza pública.
Assim, é necessário reconhecer
que há uma integração entre as ações realizadas na esfera pública e a lógica do
sistema social e sua reprodução, mas, também, que a luta social tem conquistado
a ampliação da ação pública na prestação de serviços sociais, segundo
princípios do bem comum, como "antimercadorias e
antivalores", a despeito dos interesses
imediatos do capital 5,39. Essa situação,
sempre muito instável e cheia de avanços e reveses, apresenta-se nos dilemas e
dificuldades da implementação do SUS, na disputa pelo provimento mínimo versus
o básico do direito à saúde, na disputa pelos fundos públicos. Isto é, a ética
do direito à saúde abrangente e radical é, no seu âmago, antagônica à lógica
social de funcionamento do sistema capitalista.
Nessas condições, é ainda
mais decisiva a questão da finalidade do processo de trabalho nos serviços
públicos de saúde, pois os valores da ordem social do sistema estão
cotidianamente disputando com os valores contra-hegemônicos do bem comum, do
interesse geral. Essa disputa é fundamento para viabilizar o SUS, segundo os
princípios do direito à saúde e, também, determinante na desalienação
do trabalho dos servidores públicos e na renovação do processo de trabalho de
forma conjunta com os usuários. Sugere-se, assim, que essa disputa social e política,
ampla e difusa, é uma questão imprescindível, particularmente nesse setor, para
uma renovação do processo de trabalho, o qual não pode operar essa mudança
radical com um foco exclusivo nas discussões e mudanças tecnogerenciais
limitadas a reformas das "direcionalidades"
tecnológicas, do como organizar a assistência.
Uma mudança na saúde,
ainda que setorial, está de forma permanente interagindo e dependente da
disputa dos valores gerais na sociedade na qual se insere. Isto é, novos fins
do trabalho em saúde no setor público, sob a ótica do direito social, só
encontram sua afirmação democrática com a incorporação do cidadão na definição
de projetos, na afirmação do tipo de sociedade que se deseja, na ação política
como materialização das possibilidades de gestação de projetos de interesse
geral.
Para todos os que têm
difundido proposições humanizadoras, há uma intenção
de debater e influenciar os rumos desse movimento, disputando a direção das
transformações na área da saúde. Assim, esse movimento humanizador
tende a ganhar musculatura, exercitado pela crise real do estranhamento do
homem diante de seu mundo, que, em suas linhas gerais e pouco precisas, ele
denuncia. Seus diferentes proponentes estão construindo esse movimento, são parte dele e nele disputam suas concepções de mundo.
Essa é uma tendência
particularmente forte na área da saúde pelas suas características próprias.
Toda a assistência se funda numa inter-relação pessoal muito intensa. A saúde,
mais do que outros serviços, depende de um laço interpessoal particularmente forte e decisivo para a
própria eficácia do ato. O usuário é um fornecedor de valores de uso
substantivos, de tal modo que ele é co-partícipe do
processo de trabalho e co-responsável pelo êxito ou malogro da ação terapêutica
40. Trata-se, portanto, de entender a relação sujeito-objeto como
uma relação cognitiva, em que o sujeito e o objeto se determinam mutuamente, se
modificam reciprocamente, se transformando no processo 41.
Na dimensão da
organização dos serviços e das práticas, os princípios do SUS, em especial o da
integralidade das ações, são qualificadores do direito social, são elementos
que impulsionam a expressão de novas necessidades. Isto é, se no plano mais
geral da política o embate dos projetos da saúde concentra-se na disputa pelos
princípios da universalidade, da autonomia crítica do controle social, da
formatação da eqüidade e da conseqüente política de financiamento do sistema;
no plano da organização cotidiana dos serviços e das práticas, é sobre a
integralidade do cuidado que se trava a disputa entre o mínimo e o básico.
Assim, sugere-se que, sob
a influência do movimento de humanização, a integralidade assistencial pode ser
desenvolvida não, apenas, como superação de dicotomias técnicas
entre preventivo e curativo, entre ações individuais e coletivas, mas
como valorização e priorização da responsabilidade pela pessoa, do zelo e da
dedicação profissional por alguém, como outra forma de superar os lados dessas
dicotomias. Isto é, a humanização induz a pensar que não é possível equacionar
a questão da integralidade sem valorizar um encontro muito além de soluções com
modelos técnicos de programação de "oferta organizada" de serviços.
A integralidade do
cuidado deixa de ser, portanto, uma simples junção técnica das atividades
preventivas e curativas, individuais e coletivas. Os diferentes saberes e
práticas, o cuidado e a atenção dispensados a uma pessoa pelos profissionais de
saúde são necessários para a sua realização. A integralidade, para
concretizar-se, depende do reconhecimento e da valorização do encontro singular
entre os indivíduos, que se processa no necessário convívio do ato cuidador. Esse reconhecimento espalha-se como rastilho de
afetividades e de necessidades radicais dos indivíduos, contaminando a atmosfera
tonal do convívio cotidiano com uma nova força estruturante
e de defesa dos princípios do direito à saúde. Integralidade e cuidado reúnem,
portanto, em um mesmo novo princípio, uma nova tendência de reconhecimento do
outro, um direcionamento da materialização do direito à saúde que não é mais a
simples soma aritmética de aspectos técnicos das ações de saúde 8.
Conclusões
"Já lhe dei meu
corpo, minha alegria; já estanquei meu sangue quando fervia; olha a voz que me
resta; olha a veia que salta; olha a gota que falta pro desfecho da festa; por
favor; deixe em paz meu coração; que ele é um pote até aqui de mágoa; e
qualquer desatenção, faça não; pode ser a gota d'água" (Chico Buarque, Gota d'Água).
Num mundo de muitos potes
de mágoa e sofrimentos, qualquer desatenção, particularmente, quando o assunto
é o próprio corpo, a própria vida, torna-se de forma abrupta uma questão
agressiva. A tensão entre o geral e o particular desaba sobre o convívio singular
dos atos cuidadores, e os afetos tornam-se reativos
diante do estranhamento que todos vivem. São cúmplices e ao mesmo tempo vítimas
insatisfeitas com a situação diuturnamente reproduzida. Reconhecida essa
situação, resta saber que tipo de projeto aquela gota a mais do cotidiano dos
convívios vai detonar. Individualista, mesquinho, insensatamente agressivo ou
coletivo e solidário? Conformista, demagogicamente reparador de conflitos, ou
transformador?
Um dos momentos que exige
uma resposta rápida, sob pena de implodir o SUS e com ele o direito à saúde, é
certamente o desencontro, o descrédito e a desconfiança dos usuários em relação
aos serviços públicos de saúde. Essa situação corrói a base de sustentação do
SUS, para contentamento dos inimigos da saúde como direito social. É um momento
de inflexão no qual todos os defensores do SUS, em especial os envolvidos na
sua organização, têm que demonstrar que o direito à saúde é para os homens, e
não para a racionalização do Estado. Como afirma Fleury 42, expondo um
dos grandes desafios na construção do SUS: evitar que as perspectivas da
reforma sanitária sejam filtradas pelo Estado apenas nos aspectos racionalizadores dessa proposta, minando a sua base
política, é o dilema reformista, "enigma que poderá
ser decifrado a partir da afirmação da saúde como núcleo permanentemente
subversivo da estrutura social, o que indica uma possibilidade sempre inacabada
no processo de construção social" 42 (p. 45).
Será a
concepção teórico-prática da humanização/satisfação
radical uma via para contribuir na afirmação da saúde com essas
características? Este artigo procurou problematizar em que medida uma diretriz
de humanização e satisfação pode contribuir ao aproximar as referências do
interesse geral com a reflexão crítica e com a ação sobre as dificuldades
cotidianas existentes nos serviços de saúde. Assim, a humanização radical pode
criar possibilidades de induzir transformações, mobilizar para novas questões e
reconhecer novas necessidades, mantendo em aberto a abrangência do direito à
saúde e orientando-o para além dos limites da própria estrutura social e das
relações sociais vigentes.
Colaboradores
P. T. Puccini
realizou pesquisa bibliográfica e elaborou o artigo. L. C. O. Cecílio realizou
revisão crítica do artigo.
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